como o Zuckerberg vai quebrar a net neutra (acho eu) pagando de bom moço e fichando o mundo todo

por Rafael Evangelista em 28 de agosto de 2013, 6 comments

Perdoem pelo post no estilo Tio Rei, mas achei essa entrevista do Zuckerberg dada ao Steven Levy (simplesmente o autor de Hackers: the heroes of the computer revolution, o melhor trabalho de investigação sobre as origens culturais do Vale do Silício que já li) extremamente interessante. Então quero analisá-la e recheá-la com comentários sobre o que penso ser a ideologia desses caras (Ideologia Californiana, mais ou menos nos termos do Richard Barbrook).

Escrevi um monte de elucubrações aí no meio da entrevista. Mas o ponto importante é: Zuckerberg está usando de uma aparente intenção humanitária – Internet para todos, para o planeta inteiro – para propor alterações nos princípios básicos e fundamentais da rede, alterações que são a consequência lógica inerente dos objetivos estabelecidos. O pano de fundo disso, o contexto ideológico, é uma construção utópica em que todos os problemas do mundo (TODOS) seriam no fundo derivados de um problema comunicacional. Eliminando o ruído, estabelecendo a comunicação plena, tudo poderia ser resolvido.

No último dia 20, Zucker lançou uma coalizão de empresas, hospedadas no sugestivo domínio internet.org. E lançou um vídeo bonitinho. E um documento mais longo, igualmente vazio.

Na segunda a Wired publicou essa entrevista dele, detalhando a coisa.

Wired: Por que formar uma coalizão para espalhar a conectividade global?

Zuckerberg: A Internet é uma base importante para melhorar o mundo, mas não se faz sozinha. Nos últimos anos, temos investido mais de um bilhão de dólares em conectar pessoas em países em desenvolvimento. Temos um produto chamado Facebook For Every Phone, que fornece o nosso serviço em telefones associados, que tem 100 milhões de usuários. Mas ninguém, empresa ou governo, pode construir um conjunto completo de infra-estrutura para rodar isso ao redor do mundo. Então, você precisa trabalhar em conjunto com as pessoas. Desde que nós temos anunciado Internet.org, temos ouvido, de operadoras de todo o mundo e de governos, que querem trabalhar com a gente. Isso vai dar um impulso para fazer este trabalho durante os próximos 3 a 5 anos, ou o tempo que for preciso.

A pergunta é bastante objetiva, mas recebe uma resposta parcial. “A internet é uma base para melhorar o mundo” e logo se vai para ~como fazer isso~* e se percebe que esse é um processo político, que não passa pelo livre mercado (o que necessita mais do que ele). Só que o processo político, nunca chamado por esse nome, vira um processo de ~entendimento~, uma coalizão entre Estados frágeis dos páíses-alvo com diferentes players do mercado.

Wired: Você diz que a conectividade é um direito humano – lá em cima com a liberdade de expressão, estar livre da fome e outros direitos essenciais. Você pode explicar?

Zuckerberg: A história do próximo século é a transição de uma economia industrial, baseada em recursos, para uma economia do conhecimento. Uma economia industrial é de soma zero. Se você possui um campo de petróleo, eu não posso ir no mesmo campo de petróleo. Mas o conhecimento funciona de forma diferente. Se você sabe alguma coisa, então você pode compartilhar isso – e, em seguida, todo o mundo fica mais rico. Mas enquanto isso não acontece, há uma grande disparidade na riqueza. O 500 milhões mais ricos têm muito mais dinheiro do que o próximo 6 bilhões combinados. Você resolve isso fazendo com que todos estejam online e na economia do conhecimento – através da construção de fora da Internet global.

É um conjunto bem interessante de simplificações e de silogismos equivocados. Mas, em resumo, o que ele está dizendo é que os 6 bilhões mais pobres são assim porque tem menos conhecimento (ou acesso a ele) do que os 500 milhões que estão no topo. Como se o poder não existisse, nem relações de opressão, dominação e consequente exploração. A história teria apenas nos levado a um contexto de assimetria de informações, o que caberia resolver com a internet. Pra isso ele se vale de uma metáfora até verdadeira – a da possibilidade de compartilhamento infinito do conhecimento –, somada a outra ideia parcialmente consistente – a de que o caminhamos para uma economia do conhecimento – , para afirmar que este é apenas um momento de transição para o mundo da riqueza de todos. Utopia da comunicação e do conhecimento “cuspida e escarrada”.

Wired: Mas nós temos uma economia do conhecimento funcionando aqui nos Estados Unidos, e a disparidade de renda nunca foi pior. Também parece mais polarizada.

Zuckerberg: A transição tem, naturalmente, que acontecer. Eu dei aula em uma escola local, este ano, e uma grande quantidade de estudantes lá não têm acesso à Internet em casa. Portanto, há um monte de trabalho que precisamos fazer em os EUA. Não vai ser como, “Estale os dedos, todos tem a Internet, e agora o mundo está resolvido.” A Revolução Industrial não aconteceu em uma década. Você precisa de uma base para que a mudança pode acontecer.

A réplica vai direto ao ponto, mesmo no paraíso da sociedade da informação a diferença só aumenta. Para alguém que não está em campanha ideológica a conclusão é evidente: só internet não basta. Mas Zucker  insiste, reforça a ideia de que o momento é de transição, reafirma a utopia e aponta a incompletude do projeto mesmo em território doméstico.

Wired: Se você faz um consórcio de empresas os telefones vão ficar mais baratos ou não?

Zuckerberg: Só porque smartphones estão mais baratos não significa que as pessoas que os têm podem ter acesso de dados. Por exemplo, o custo de para ter um  iPhone, nos EUA,  por dois anos, é de US$ 2.000 – US$ 500 para o telefone e os outros US $ 1.500 para tráfego de dados. Os dados são mais caro do que o telefone. Assim, o maior problema é fazer o acesso a dados mais barato, tentando descobrir como fornecer esse básico da Internet de graça [ele usa a expressão dial tone para dizer isso, como se coisas básicas da Internet fossem como o tom de discar de um telefone, custando o mesmo que o que se paga para ter a própria linha], e, em seguida, a construção de um modelo de negócios em cima disso.

Aqui temos o descortinar do projeto político que antes aparecia nublado pelo bom-mocismo e pela utopia da comunicação/informação/conhecimento. A ideia é oferecer uma internet básica a preços baixos ou irrisórios, sustentada por conteúdos mais elaborados (que usam mais banda). Na prática, isso significa pleitear o fim da neutralidade de rede, permitir a discriminação dos pacotes que circulam pela net. Assim, os provedores poderiam, por exemplo, tornar seu YouTube ou sua Netflix mais lentos se você não pagar uma taxa extra para o serviço “premium”. Com isso, a indústria conseguiria concentrar ainda mais a distribuição de conteúdo, minar as iniciativas concorrentes marginais e aumentar as taxas de lucro. Eles podem fingir que vêem um mundo pretensamente igualitário – onde a desigualdade estaria na distribuição das informações ou conhecimento -, mas sabem muito bem montar estratégias de negócio calcadas no poder e no controle das estruturas (no caso, dos cabos e dos softwares onde interagimos).

Wired: Como você torna os dados mais baratos?

Zuckerberg: Passamos muito tempo tentando fazer com que nossos aplicativos rodem mais rápido, caiam menos e tenham menos bugs, mas, até este ano, não tínhamos gasto enorme quantidade de tempo buscando entregar a mesma experiência com menos dados. Isso não era importante para um monte de pessoas que utilizam nossos serviços em países desenvolvidos. Mas é extremamente importante para os próximos bilhões. No início deste ano, em média as pessoas usava cerca de 12 megabytes para o Android app no Facebook, e acho que ao longo dos próximos dois anos vamos ser capazes de conseguir derrubar isso para até um megabyte por dia, com muito poucas mudanças. Uma vez que um megabyte ainda é muito para uma grande parte do mundo a questão torna-se se podemoschegar a metade de um megabyte, ou um terço?

Wired: você pode fazê-lo de modo que uma Internet baseada em texto seja quase de graça?

Zuckerberg: O texto, no documento que escrevi, ocupa menos de um décimo de um megabyte. Mas um vídeo de 30 segundos como o que fizemos para Internet.org pode ter facilmente 50 a 100 megabytes, e isso mesmo tirando proveito de uma série de investimentos feitos em tecnologias de compressão. Mas o número que eu dei para o documento de texto não envolve compressão. Portanto, não há mais oportunidade de fazer mais pela compressão para os serviços básicos do que há para espaço de evolução para coisas como vídeo.

Reforço da ideia anterior. Essa internet baseada em texto, extremamente básica, estaria dentro da ideia do que é essencial. Dá para imaginar também que, para um serviço de fichamento global, o texto de fato é o que basta.

WIRED: Certamente as operadoras de telecomunicações podem ajudar com isso fornecendo mais largura de banda a preços mais baratos. Agora, eles não estão em seu consórcio. Será que isso muda?

Zuckerberg: Com certeza. Mais pessoas vão juntar-se ao longo do tempo, tanto as operadoras quanto outras.

Wired: Outras empresas de Internet voltadas ao consumidor, como Google, Amazon, Microsoft não estão em seu consórcio agora. Você os convidou, espera que eles eventualmente venham a participar?

Zuckerberg: Muitas empresas estão muito bom trabalho nessa área. Nós conversamos com Google e Microsoft. Acho que ao longo do tempo algumas dessas empresas irão optar por participar. As coisas que eu estou focado para Internet.org exigem colaboração entre as empresas.

Wired: É estranho ouvir falar em voltar para modelos de texto, de baixo consumo de dados, quando a direção do Facebook tem sido o oposto – a adição de mídia e serviços mais ricos.

Zuckerberg: Depois de ajudar a todos a entrarem na Internet e a terem acesso básico, em seguida o próximo desafio será conseguir que todos tenham acesso à rede que usa muita banda, por isso o consórcio não pára.

Wired: O seu documento fala sobre a criação de novos modelos de negócios para espalhar a conectividade. Pode dar um exemplo?

Zuckerberg: Eu tenho um plano em que você pode pegar um telefone em qualquer lugar e, mesmo se você não tiver um plano de voz, você ainda pode ligar para o 911 para obter serviços básicos. Acho que podemos chegar a um modelo onde muitas dessas coisas são gratuitas para pessoas que não podem pagar por eles. Estou falando de coisas como mensagens, Wikipedia, sites de busca, redes sociais, acesso às condições do tempo, o preços das commodities. Eu chamo isso de o tom de discagem [dial tone] da Internet. Queremos fazer serviços que funcionem, onde qualquer pessoa – mesmo quem não podia pagar por dados no modelo antigo – pode entrar em uma loja, pegar o telefone e obter este tom de discagem da Internet para esses serviços básicos.

Wired: Quem vai pagar por isso?

Zuckerberg: O que é valioso sobre redes sociais e motores de mensagens e de busca é que eles são portais para mais conteúdo. Ao fazer o acesso básico a essas coisas livres as pessoas realmente acabam descobrindo mais conteúdo em uma base sustentável, então acessarão e usarão mais dados do que usavam antes. Acabaria sendo um modelo muito rentável para as operadoras. Os operadores vão ganhar mais dinheiro com as novas pessoas que podem pagar do que vai custar-lhes oferecer os serviços gratuitos.

Tem uma coisa muito muito cruel nisso, tenho a impressão (mas este sou eu o paranóico). Zucker captou bem a ideia – que deve ser do marketing ou de alguma disciplina especializada em sugar sempre mais das pessoas – de que a alienação total do mundo ocidentalizado-capitalista simplesmente não interessa. É preciso jogar todo mundo na rede, estabelecer um mínimo de contato cultural, de ponte de comunicação, para que essas pessoas possam se sentir impulsionadas e cativadas a consumirem cada vez mais (tanto faz se objetos físicos ou informação-entretenimento). É um plano de expansão dos negócios, não só de Zucker (e por isso ele acredita que mais empresas entrarão na coalizão) mas de todo o complexo da tecnologia da informação. Integrar e expandir e, para isso, é preciso criar linhas diferenciais na internet, os caminhos de terra gratuitos e as highways informacionais cheias de pedágios.

Wired: O Facebook quer assumir o papel de fornecer identidade on-line para estes novos milhões de usuários?

Zuckerberg: Em muitos países em desenvolvimento é difícil saber persistentemente quem é seu cliente. Se você é um operador na Índia e alguém compra seu serviço em uma loja de varejo, pagando com dinheiro e colocando créditos no chip, você não sabe muito sobre quem é essa pessoa. Ser capaz de criar um relacionamento de longo prazo com o cliente seria muito valioso. Eu não quero fingir que somos a única empresa que pode fazer isso, mas se nós podemos criar algum valor ali, esta seria sem dúvida algo que eu estaria interessado em fazer.

Não dápra negar que Zuckerberg é transparente. O objetivo final de seu negócio é identificar pessoas/consumidores e comercializar os dados dessa pessoa. Esse consumidor marginal, que tem 4 chips, diversas identidades online, é difícil de controlar, de produzir metadados consistentes e comercializáveis. Se esgueira numa deep web, ironicamente aberta mas ainda assim difícil de controlar.

WIRED: Por que não fazer isso como uma fundação ou sem fins lucrativos?

Zuckerberg: Este problema não vai ser resolvido só por meio de altruísmo. Dezenas de bilhões de dólares por ano são gastos na construção desta infra-estrutura. É demais para ser sustentado pela filantropia. Tem de haver um modelo sustentável. Há um monte de empresas cujo trabalho é para entregar isso. Até agora, um monte desse trabalho meio que aconteceu por si só. Mas para tornar este plano real as empresas precisam trabalhar juntas. Internet.org pode ajudar.

WIRED: Seus críticos estão dizendo que Internet.org é um jeito auto-interessado de o Facebook construir sua base de usuários.

Zuckerberg: Claro, nós queremos ajudar a conectar mais pessoas, então teoricamentenos beneficiamos disso. Mas essa crítica é meio louca. As bilhões de pessoas que já estão no Facebook tem muito, muito mais dinheiro do que as próximas 6 bilhões de pessoas juntas. Se quiséssemos nos concentrar em apenas ganhar dinheiro a estratégia certa para nós seria nos concentrarmos exclusivamente nos países desenvolvidos e nas pessoas que já participam do Facebook, aumentando seu engajamento ao invés de colocar essas outras pessoas para participar. Nosso serviço é gratuito, e os mercados de anúncios não são desenvolvidos em muitos desses países. Assim, por muito tempo isso pode não ser rentável para nós. Mas eu estou disposto a fazer esse investimento porque eu acho que é muito bom para o mundo.

Wired: O que o liga pessoalmente a esse esforço?

Zuckerberg: É muito claro que qualquer pessoa que tenha um telefone deveria ser capaz de acessar à Internet. Muitas vezes as pessoas falam sobre quão grande foi a mudança cultural produzida pelas mídias sociais aqui nos EUA. Mas imagine quanto maior é a mudança quando um país em desenvolvimento fica on-line pela primeira vez. Nós usamos coisas como Facebook para compartilhar notícias e manter contato com nossos amigos mas, nesses países, eles vão usar isso para decidir que tipo de governo eles querem ter. Ter acesso a informações de saúde pela primeira vez na história. Estar conectado a alguém a uma centena de quilômetros de distância em uma aldeia diferente, que eles não viam há uma década. Este é um dos maiores desafios da nossa geração e é maravilhoso ver as empresas se unirem para tentar resolvê-lo.

O quanto essa visão do Terceiro Mundo é caricatural e simplista é difícil expressar em palavras. Opa… o Zucker conseguiu bem aí em cima. O trecho sobre a acesso a informação sobre saúde é exemplar sobre o quanto os cidadãos dos países desenvolvidos diminuem o problema alheio transformando-o em uma questão de ignorância. O ponto sobre mudança política é preocupante, em especial, ao mostrar como o Vale do Silício vê os sistemas políticos não-ocidentalizados como simplesmente derivados de um hipotético bloqueio das comunicações. E como claramente se coloca no papel de agente da transformação desses sistemas, erroneamente imaginando que uma infraestrutura comunicacional semelhante à ocidental vai desembocar num sistema político igualmente ocidentalizado. “Decidir o tipo de governo que eles querem ter” é mera frase de efeito que esconde a expectativa de emergência de um sistema em alguma medida similar (ou que atenda aos interesses) dos países mais fortes. Nisso, importa pouco se Zuckerberg efetivamente acredita no que diz. O fato de que esse é um discurso que funciona com pelo menos parte do público é evidência suficiente da existência desse tipo de ideia no senso comum.

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