Netflix joga entre entretenimento e big tech para desfilar no tapete vermelho do Oscar (e desviar da regulação)

por Fabricio Solagna em 11 de outubro de 2024, Comentários desativados em Netflix joga entre entretenimento e big tech para desfilar no tapete vermelho do Oscar (e desviar da regulação)

A Netflix, uma das maiores plataformas de streaming do mundo, tem investido fortemente em produções próprias, tanto em lançamentos globais como em mercados locais. As suas estratégias tem chamado a atenção por conseguir competir com grandes estúdios de Hollywood.

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Foi o que ocorreu no México com o filme Roma, um longa-metragem, produzido em preto e branco, que retrata a história de uma empregada doméstica (Yalitza Aparicio como Cleo) numa casa de classe média no bairro Roma, na Cidade do México. O drama, vencedor de três Oscars, foi um pivô para impulsionar diferentes objetivos da Netflix.

O filme “funcionou como uma estratégia para quebrar as regras e o domínio da distribuição global de Hollywood”, escrevem os pesquisadores Rodrigo Gómez e Argelia Muñoz Larroa, do departamento de Ciências da Comunicação da Universidade Autónoma Metropolitana-Cuajimalpa, na Cidade do México. O artigo foi publicado na revista Television & New Media, publicação na área de televisão e novas mídias.

Os autores enfatizam o quanto a distribuição tradicionalmente é o principal lugar de poder e lucro, em detrimento da produção em si. Porém, a entrada da Netflix neste cenário, segundo eles, altera a equação, principalmente quando a empresa decide investir boa parcela do seu faturamento em novas produções, para além do licenciamento, entrando no terreno adversário. A estratégia significa jogar nos dois campos, assim conseguindo reconhecimento local e global.

A sua expansão nos mercados emergentes, principalmente na América Latina, é notável. A empresa se vale do seu grande catálogo e da rede de CDNs para firmar acordos com provedores que oferecem assinaturas em seus serviços. Os CDNs são servidores especiais que armazenam e distribuem conteúdo multimídia, localizados estrategicamente em backbones ou pontos de troca de tráfego.

Essa transformação na Netflix, tornando-se uma empresa de entretenimento, e que tem marcado a última década, pode ter também outras motivações. A empresa se intitulava como uma plataforma de tecnologia, que utilizava inteligência artificial para alimentar seu algoritmo de recomendação e passou por muito tempo alimentando o mito do big data. “Houve um reposicionamento estratégico de empresa de tecnologia para empresa de entretenimento, com cada vez mais valorização da escolha humana e a intuição”, segundo a pesquisadora Karin van Es, professora associada de Estudos de Mídia e Cultura da Universidade de Utreque, em outro artigo publicado na mesma revista, em 2023.

O discurso utilizado em propaganda ou nos discursos de seus gestores, apontando que a capacidade de fazer sugestões de qualidade dependia do seu bom algoritmo, tem sido minimizada ou substituída por uma valorização da curadoria humana.

Essa ambivalência entre entretenimento e empresa de tecnologia é percebida também como uma forma de se esquivar de regulações específicas e continuar se expandindo. Aqui no Brasil, por exemplo, se discute uma lei que visa cobrar uma taxa das plataformas de vídeo sob demanda, que pode atingir até plataformas de redes sociais como TikTok.

A depender de como sopram os ventos por algum tipo de regulação, as plataformas tendem a se adequar – ou se moldar – para fugir de qualquer tipo de obrigação.


Para ler os artigos: https://doi.org/10.1177/15274764221082107 e https://doi.org/10.1177/15274764221125745

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Esta nota faz parte do projeto “Inteligência Artificial e Capitalismo de Vigilância no Sul Global”, financiado pela Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade e realizado pelo Labjor - Unicamp | Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo

Nigéria mostra como é possível lutar contra a colonialidade com leis sobre privacidade

por Fabricio Solagna em 9 de outubro de 2024, Comentários desativados em Nigéria mostra como é possível lutar contra a colonialidade com leis sobre privacidade

Nos últimos anos, houve um grande esforço global em busca de parâmetros mínimos, em termos jurídicos, para a transformação digital, principalmente se tratando de privacidade. É o caso da General Data Protection Regulation (GDPR), na Europa, ou a Lei Geral de Proteção de Dados (LGDP), no Brasil. Não tem sido diferente na Nigéria, país que se destaca na África do ponto de vista de desenvolvimento econômico e uso de tecnologias digitais.

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Recentemente, o país aprovou o Nigeria Data Protection Act (NDPA), ou o ato de proteção de dados nigeriano, e o Migration Information and Data Analysis System (MIDAS), ou o sistema de análise de dados e informações de migração. As duas legislações sofreram influência externa, reproduzindo conceitos e práticas de legislações do Norte Global – principalmente da lei europeia sobre proteção de dados. Entretanto, o MIDAS se destacou por incorporar questões pós-coloniais, mesmo que em uma legislação delicada de controle de fronteiras.

É sobre esse paralelo entre legislações que se debruça artigo publicado na revista acadêmica Social & Legal Studies, por Samuel Singler, da Universidade de Essex, e Olumide Babalola, da Universidade de Portsmouth, ambas instituições do Reino Unido. O periódico de excelência na área do direito nasceu com o compromisso de abordar questões feministas, anticoloniais e socialistas.

Os autores do artigo utilizaram uma metodologia qualitativa, com entrevistas realizadas com pessoas-chave em 2021. Entre essas pessoas, altos funcionários nigerianos e estrangeiros envolvidos com o tema no país. Além disso, também realizaram análise de dados coletados nos debates para elaboração das propostas legislativas.

Uma grande contribuição da pesquisa foi desafiar os aspectos pretensamente universais, que são promovidos globalmente por Estados e organizações internacionais do Norte. Um dos exemplos é o “direito à privacidade”, que pode se transmutar em discursos colonialistas ou interagir “com entendimentos e agências locais para produzir novas constelações de práticas legais e políticas em torno de direitos individuais”, segundo os autores. É nesse sentido que assinalam o quanto a NDPA foi fortemente influenciada pelos conceito europeus da GDPR, mesmo contrariando princípios da própria constituição nigeriana no que se refere a privacidade. Ao mesmo tempo, o MIDAS passou por um processo de incorporação de exceções que pudessem contemplar questões de privacidade condizentes com o regramento local.

Desde 2007, a Nigéria expandiu sua capacidade de coletar dados biométricos nas fronteiras usando o sistema MIDAS. Ainda que uma parte do discurso público tenha se concentrado na “modernização” na implementação desse sistema, o auxílio da Organização Internacional para as Migrações (OIM) também ajudou no convencimento de que o software seria vantajoso por ser menos dependente de corporações estrangeiras. O sistema da OIM é gratuito para seus estados-membros no Sul Global, por meio de projetos financiados principalmente por Estados do Norte Global.

Os autores deixam claro que o argumento do estudo “não é que os direitos de privacidade sejam de alguma forma indesejáveis”. Mas, “invocar a colonialidade do conhecimento relacionado aos direitos humanos universais visa problematizar a posição privilegiada reivindicada pelos atores do Norte para determinar como os direitos humanos devem ser conceituados”.


Para ler o artigo: https://doi.org/10.1177/09646639241287022

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Plataformas de vigilância do trabalho se tornaram o panóptico supostamente necessário

por Fabricio Solagna em 8 de outubro de 2024, Comentários desativados em Plataformas de vigilância do trabalho se tornaram o panóptico supostamente necessário

A vigilância e supervisão do trabalhador são formas tradicionais de extrair o máximo de mais valia no processo de produção desde o princípio da manufatura capitalista, as quais foram intensificadas posteriormente com o fordismo. A ideia é que cada minuto deve ser aproveitado, sem distrações. Em tempos de economia digital, com o trabalho remoto e vínculos trabalhistas frágeis, houve uma proliferação de softwares e plataformas que promovem a vigilância ostensiva sobre o trabalhador, a distância, a fim de supostamente garantir produtividade e reduzir o tempo ocioso remunerado.

Essas formas de controle podem operar no sentido mais genérico, permitindo o administrador estabelecer e controlar a jornada de trabalho ou de forma mais invasiva, controlando totalmente o dispositivo do trabalhador, coletando dados e evidências.

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Há outras formas que podem funcionar para tentar prevenir supostas supostas ações suspeitas, que são consideradas como potenciais ameaça para a segurança do contratante, como roubo de dados corporativos.

É sobre esses softwares e tecnologias que se debruça uma pesquisa publicada por Fabricio Barili, vinculado ao Digilabour, projeto sediado atualmente na Universidade de Toronto – mas com origens no Sul do Brasil – e que foca em plataformas, dados e IA. O artigo foi publicado na International Journal of Communication, importante revista acadêmica com foco em assuntos relacionados à comunicação. Barili estudou duas plataformas de monitoramento: o Time Doctor e o Teramind. Ambas têm clientes globais e vendem seus serviços a partir de categorias de uso e possibilidades diferentes de vigilância.

Os bossware, como são chamados esses tipos de software, fazem parte de uma categoria não recente de algoritmos executáveis que rastreiam a interação homem-máquina. Eles podem funcionar através de sistemas biométricos, rastreadores ou sistema de IA que auxiliam a tomada de decisão. É a versão moderna do capataz, do encarregado, que se presta a controlar a massa laboral a favor da produção. Entretanto, os novos dispositivos, como os estudados por Barili, se diferenciam por interagirem com outros softwares ou plataformas – via APIs – e por incorporarem uma série de outros algoritmos de predição. Buscam assim coletar mais dados e aumentarem o grau de abrangência de suas análises. Além disso, não se vendem mais como simples espiões do patrão, oferecem um certo nível de transparência – como avisos, lembretes e análises coletivas e premiações individuais – a fim de aumentar a competitividade entre membros da mesma equipe.

Um relatório da Big Brother Watch, uma organização que luta por direitos civis em função da privacidade, faz um apanhado um pouco mais amplo desses sistemas e também aponta algumas orientações para minimizar os riscos e garantir direitos frente aos empregadores.

Como também demonstram outras pesquisas – como a de Le Ludec, Cornet e Casilli, do Instituto Politécnico de Paris, já abordado neste blog anteirormente – no cenário em que o trabalho está cada vez mais distribuído em diferentes espaços e países, as plataformas de monitoramento laboral adicionam só mais uma nova pitada de algoritmização opaca a fim de classificar, controlar e extrair mais valia, ofertando um panóptico plataformizado em prol da expropriação do trabalho.


Para ler o artigo: https://ijoc.org/index.php/ijoc/article/view/21365

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Em tempos de comunicação plataformizada, desinformação explora vulnerabilidades do jornalismo

por Fabricio Solagna em 30 de setembro de 2024, Comentários desativados em Em tempos de comunicação plataformizada, desinformação explora vulnerabilidades do jornalismo

O termo “hackear” se tornou corrente nas últimas décadas como sinônimo de explorar limites de algo a fim de subverter seu propósito, seja para o bem ou para o mal. O jornalismo poderia estar sofrendo um hackeamento dos seus próprios princípios, valores e práticas através das estratégias de grupos que propagam desinformação e fake news, principalmente com pauta política.

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Este tema é desenvolvido pelo jornalista Marcelo Träsel em um artigo publicado na Liinc em Revista, do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia. Ele explora os acontecimentos da política brasileira e demonstra que tanto figuras publicas como Jair Bolsonaro, quanto seus apoiadores, utilizaram técnicas consagradas no jornalismo, porém subvertendo-as, a fim de propagar pautas da extrema direita, utilizando o alto alcance de espalhamento de notícias através das plataformas das Big Techs. A pesquisa usa dados coletados entre 2018 e 2022 no Brasil, porém outras pesquisas já identificaram como grupos do Norte e do Sul, muitas vezes compartilham técnicas e estratégias.

Essas técnicas se utilizariam fontes de grande prestígio para difusão de alegações falsas, de forma enviezada ou distorcida, gerando matéria-prima para propaganda. Outro valor subvertido seria o da objetividade, o qual se aproveita de um jornalismo baseado em declarações, que se vale de falsas equivalências – colocando em pé de igualdade uma opinião de um cientista e de um terraplanista, por exemplo. Além disso, a relevância conferida às polêmicas em redes sociais, ou a relevância tributada às métricas das plataformas (como número seguidores), ajudou a moldar pautas que redundaram na amplificação de ideias favoráveis ao ex-presidente.

A incorporação de técnicas e valores no processo de criação de notícias em modo industrial são marcas importantes de meados do século passado, mas que se tornaram corrosivas em alguns casos, a partir do atual ecossistema de redes digitais e plataformização da comunicação. A atualidade do tema é inconstentável, e o apoio explícito de plataformas como o X, de Elon Musk, à candidatura de Donald Trump, tornam o tema ainda mais urgente.

Como afirma Träsel , há alguns antítodos e algumas iniciativas promissoras que podem prevenir estes cenários. Os manuais de redação, por exemplo, poderiam incorporar procedimentos que ajudem a neutralizar a exploração dessas práticas por indivíduos ou grupos interessados em manipular o conteúdo noticioso. Numa perspectiva mais de longo prazo, seria necessária a revisão dos valores e princípios do jornalismo a fim de “tensionar a centralidade do pensamento europeu moderno enquanto fundamento das práticas de produção de notícias”. Além disso, ele afirma que preciso regular as plataformas. O que faz sentido, já que o ambiente algoritimizado dessas empresas tem alta penetração popular, com as big techs agora ocupando o espaço de mediadoras do consumo de informações.


Para ler o artigo: https://revista.ibict.br/liinc/article/view/6625

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Capitalismo prosumer na Nigéria é uma das faces do colonialismo digital

por Fabricio Solagna em 25 de setembro de 2024, Comentários desativados em Capitalismo prosumer na Nigéria é uma das faces do colonialismo digital

A Nigéria é uma das maiores economias africanas e com uma população similar à do Brasil. São mais de 130 milhões de usuários de Internet no país, que tem a terceira maior produção de filmes do mundo, a conhecida “Nollywood”. Obviamente, há diversas dificuldades, entre elas as desigualdades sociais, a falta de acesso à tecnologia e a baixa educação formal. Ao mesmo tempo, intensifica-se uma grande penetração das grandes Big Techs, que chegaram a pagar cerca de US$ 1 bilhão em impostos só em 2022.

Paul A. Obi, pesquisador do Departamento de Comunicação de Massa da Universidade Baze, em Abuja, capital da Nigéria, afirma haver um enorme contingente de pessoas que se envolvem em atividades de prosumo nas plataformas digitais. O termo designa uma atividade em que produção e consumo se fundem e o trabalho em redes sociais, como criadores de conteúdo e influenciadores, talvez seja a melhor expressão contemporânea.


É sobre esta característica que Obi considera que há pouca reflexão acadêmica – e também pouca preocupação estatística -, principalmente para compreender melhor como funciona uma das camadas do colonialismo digital em seu país. Os achados de pesquisa estão em artigo na Triple C: Communication, Capitalism & Critique, uma revista acadêmica editada por pesquisadores referência na área, como Christian Fuchs.

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No contexto das plataformas digitais, o capitalismo prosumer também significaria trabalho não pago, ou seja, uma expropriação do trabalho humano por corporações do Vale do Silício, as quais são responsáveis por expandir o poder geopolítico do Norte sobre o Sul. Essa seria uma das faces do colonialismo digital, conceito trabalhado também por outros autores como Michael Kwet.

As plataformas estariam lucrando com a extração de dados, enquanto os trabalhadores ganham apenas uma pequena parte por meio da criação e manipulação de conteúdos com venda de anúncios.  As políticas de Estado priorizam a taxação e não tanto o controle dos processos econômicos das Big Techs, consolidando uma política extrativista semelhante ao colonialismo histórico, agora de forma digitalizada. Segundo ele, “a África pós-colonial fica atrasada na negociação de poder dentro da dinâmica da economia política do capitalismo digital”, já que as relaçõesentre as empresas eo Estado nem sempre são vistas pelo prisma da exploração.

O artigo busca recolocar a questão do trabalho prosumer na ótica do colonialismo digital, fazendo uso de lentes decoloniais. Apontando ainda a necessidade de maior esforço empírico na área e faz relação com esforços semelhantes na América Latina e na Ásia, tendo o capitalismo de vigilância como pano de fundo.

Para ler o artigo: https://doi.org/10.31269/triplec.v22i1.1451

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Pós-colonialismo crítico pode neutralizar armadilhas da era digital

por Fabricio Solagna em 23 de setembro de 2024, Comentários desativados em Pós-colonialismo crítico pode neutralizar armadilhas da era digital

Ao mesmo tempo que proporciona oportunidades de expressão e contato entre comunidades marginalizadas, a “era digital” aprofunda desigualdades e refaz estruturas de poder coloniais. Navegar por essas contradições requer fazer uso de um pós-colonialismo crítico, que “desafie legados coloniais, promova justiça social e crie uma sociedade global mais inclusiva e equânime”.

Se a “era digital” abriu inúmeras possibilidades, também preservou legados coloniais embutidos nas tecnologias desta época. A reflexão está no ensaio “Post-Colonialism And The Digital Age”, de Ghada Fayez Refaat Abu Enein, publicado no Journal of Namibian Studies. Doutora em Literatura Inglesa, a autora é ligada à Faculdade de Educação de Ciências e Artes da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente (UNRWA) em Amã, na Jordânia, e tem uma longa bibliografia que aborda a questão colonial e os conflitos sobre gênero e imigração.

A partir de uma metodologia que mistura análise bibliográfica detida com um destrinchar do assunto em tópicos, Ghada Enein muitas vezes abre eixos que segundo ela mesma necessitam de melhor investigação, em mais profundidade. Um dos pontos altos do texto é examinar como várias das questões estão sendo incorporadas e compreendidas por autores fora do eixo da Europa-EUA. O artigo cita, por exemplo, o livro Cyberculture and the Subaltern, de 2014, editado por Radhika Gajjala, que traz vários casos da Africa e da India, sobre como realidades offline são moldadas por hierarquias online, em relatos etnográficos.

O ensaio estabelece dois enquadramentos de análise: pós-colonialismo digital; e liberação digital. Neles, desdobra desafios e oportunidades. Como, por exemplo, a “era digital” ser ao mesmo tempo espaço para o diálogo online de comunidades e identidades diaspóricas de resistência, enquanto também é espaço potencial para práticas neocoloniais, como o imperialismo digital e a dependência econômica. Sobre esta última ameaça, a autora ressalta o papel da “concentração de poder nas mãos dos gigantes tecnológicos globais”.

Ghada Enein reflete ainda sobre as limitações e a possível cooptação do ativismo digital. “Discussões sobre preservação cultural, representação e a ética da digitalização precisam se centrar nos direitos e na agência das comunidades pós-coloniais”, conclui, apontando para a ação realmente autônoma dos grupos políticos.

Para ler o artigo: https://namibian-studies.com/index.php/JNS/article/view/5370

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Soberania digital na América Latina propõe futuro planetário alternativo

por Fabricio Solagna em 19 de setembro de 2024, Comentários desativados em Soberania digital na América Latina propõe futuro planetário alternativo

Por um lado, o termo soberania digital vem mobilizando diversos grupos que antagonizam com as Big Techs. Por outro, a expressão evoca sentidos a depender dos atores em questão e suas localizações. Sebastián Lehuedé olha comparativamente para o debate na periferia global, como a América Latina, e para centros tecnológicos mais desenvolvidos e dominantes, como China e União Europeia. O cenário mais interessante e promissor está no Sul Global, onde a sociedade civil faz uma apropriação de baixo pra cima do termo, buscando a promoção da paz e a coexistência com meio ambiente.

Imagem gerada por inteligência artificial generativa utilizando palavras chave: América Latina e inteligência artificial.

“An alternative planetary future? Digital sovereignty frameworks and the decolonial option” foi publicado na Big Data & Society, revista estadunidense de acesso aberto que é uma das mais importantes publicações interdisciplinares no campo do digital. Lehuedé é professor no King’s College de Londres e membro da Tierra Común, rede de ativistas e pesquisadores sobre dados e decolonialidade.

Uma das principais questões do artigo se refere ao possível caráter transformador da soberania digital. É ela uma forma de se pensar futuros planetários alternativos ou meramente uma troca de atores que mantém o status quo? Para Lehuedé, em algumas áreas as formulações de China e União Europeia exacerbam colonialidade, seja por serem discursos que partem principalmente de Estados, seja porque, ainda que esses atores busquem uma ordem mais policêntrica, esta ordem continua “ligada a um único sistema interconectado global, nomeadamente o capitalismo mundial, baseado na criação de periferias para a exploração e extração”.

A questão de soberania, originalmente ligada à consolidação dos Estados-nação, nesse sentido anterior tende a se referir mais a questões governamentais, sobre fronteiras e seus respectivos direitos. Atualmente, pode abarcar o reconhecimento da diversidade de populações, etnias e culturas.

As iniciativas da América Latina, mais incipientes e a maioria oriunda da sociedade civil, constituiriam uma promissora opção por serem registros que opõem tentativas não capitalistas a formulações industrialistas e produtivistas. Ainda assim, isso não significa que são, de fato, políticas consolidadas ou consensuadas nos seus respectivos territórios, sendo alvo de disputas.

Lehuedé se utiliza de uma abordagem decolonial fundamentada principalmente em Walter Mignolo, autor conhecido por desenvolver o termo colonialidade, além de fazer parte do Terra Comum, uma iniciativa que tem como foco a “descolonização de dados”, cujos fundadores são Nick Couldry, Paola Ricaurte e Ulises Ali Mejías. No material de pesquisa de Lehuedé estão relatórios sobre o tema, principalmente produzidos pelos próprios Estados, no caso de China e União Europeia, somados a entrevistas com atores locais, realizadas na América Latina durante 2022.

Para ler o artigo: https://doi.org/10.1177/20539517231188723

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Uso de IA pode significar somente trabalho mal remunerado no Sul Global

por Fabricio Solagna em 15 de setembro de 2024, Comentários desativados em Uso de IA pode significar somente trabalho mal remunerado no Sul Global

Há uma grande preocupação se a incorporação de Inteligência Artificial (IA) no nosso cotidiano pode gerar desemprego. Menos incerto, porém, é o dado concreto sobre a IA servir como ferramenta de exportação de trabalho para países que pagam salários menores.

Nesse sentido, Clément Le Ludec, Maxime Cornet e Antonio Casilli demonstram uma nova demanda por trabalhadores de dados para alimentar aplicações de IA. A pesquisa se debruça sobre as relações de trabalho e terceirização entre França e Madagascar, e foi publicada na Big Data & Society, revista estadunidense de acesso aberto que é uma das mais importantes publicações interdisciplinares no campo do digital. Eles investigaram duas startups – uma que trabalha com refeições prontas e outra com câmeras de vigilância – para compreender de forma mais ampla a transformação nas cadeias de produção a partir do uso de IA.

Imagem gerada por inteligência artificial generativa utilizando palavras chave: Áfria e inteligência artificial.

Os casos em questão não se utilizam micro tarefas, como as gerenciadas por plataformas como a famigerada Amazon Mechanical Turk, a líder nesse tipo de terceirização. A análise trata de relações diretas entre equipes especializadas nos país do Norte, que desenham o sistema e encomendam as tarefas, e equipes no Sul, que executam tarefas em plataformas próprias a fim de enriquecer dados para tornar a experiência do usuário mais automatizada. As empresas recrutam os trabalhadores por meio de companhias parceiras locais.

A pesquisa demonstra como em ambos os casos estudados há trabalhadores mal pagos em Madagascar e a participação de consumidores trabalhando de graça na produção das atividades produtivas das IA, gerando uma externalização por cascata similar ao que existe na manufatura. “A digitalização, a terceirização e o trabalho do consumidor são três tendências que permitem que as empresas de IA prosperem”, segundo os autores, numa cadeia de invisibilização de trabalho.

Esses casos não são únicos e são recorrentes. A própria Amazon, por exemplo, chegou a anunciar lojas sem funcionários – as Amazon Fresh – como grande inovação. No entanto, reportagens do Wall Street Journal e do The Information revelaram que as compras eram revisadas remotamente por funcionários da empresa na Índia.

As soluções de IA, em muitos casos, estão mais ligadas à montagem de modelos complexos, trabalho a distância, onde os trabalhadores chegam a emular o próprio funcionamento do algoritmo, buscando automatizar tarefas na ponta.

Para ler o artigo: https://doi.org/10.1177/20539517231188723

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Não há idade para ser influenciador (desde que o capital continue circulando)

por Fabricio Solagna em 11 de setembro de 2024, Comentários desativados em Não há idade para ser influenciador (desde que o capital continue circulando)

“Dá um like e compartilha” é um mantra vocalizado por aspirantes e pelos já estabelecidos influenciadores. Eles precisam convocar a audiência para que o processo de engajamento dos seus seguidores continue e seja ampliado. Há uma expectativa de que o trabalho de criação de conteúdo possa trazer dividendos, mesmo que de forma indireta, a partir da capacidade de aglutinar um público cada vez maior. Mas, para além dos bordões, quando neste circuito estão crianças cabe perguntar que lugar que elas ocupam nessa lógica que é, acima de tudo, capitalista.

Imagem gerada por inteligência artificial generativa utilizando palavras chave: criança, influencer e rosto não identificável.

Questionando a importância dos influenciadores-mirim para a circulação de capital e mercadorias e como se tornam mascotes do capitalismo em tempos de redes sociais, a artista plástica e pesquisadora Veridiana Zurita e o economista José Paulo Guedes Pinto publicaram um artigo na Eptic, importante revista acadêmica nacional sobre economia política da comunicação. Como descrito no trabalho intitulado “Influenciadores-mirins digitais e sua função na circulação do capital”, eles acompanharam alguns perfis no Instagram e canais no Youtube de crianças entre 7 a 10 anos, com milhares de seguidores, para compreender como acontece a dinâmica do trabalho – nesse caso, infantil – e, principalmente, a relação entre os influenciadores e seus seguidores.

O processo de monetização no Youtube – receber dinheiro por visualizações – foi iniciado em 2012. No Instagram, a forma de faturar é indireta, dependendo de publicações patrocinadas ou de vendas em loja controlada pelo influenciador. O interesse dos pesquisadores se deu sobre a performance dos influenciadores, assim como sobre o processo do trabalho para o engajamento dos seguidores. O influenciador-mirim é alguém que estaria respondendo à aceleração da circulação do capital na era informacional e, para isso, seria preciso, desde cedo, estabelecer método, tempo e resultados. “Ao performar, o influenciador anima cotidianamente o engajamento de seus seguidores que, por sua vez, produzem atenção traduzida em dados digitais”, escrevem.

O problema é concreto: há uma evidente exploração infantil capitalista na sua forma digital, mascarada como diversão ou uma simples atividade criativa. Não há uma regulação clara e o sistema de proteção legal, como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), fica subsumido pelos termos de uso das plataformas.

Como já demonstrado por outras pesquisas com influenciadores brasileiros adultos, a auto-exposição online funciona como componente central da geração de valor, se tornando um ativo na economia digital que se baseia na capacidade dos indivíduos de cativar grandes públicos.

No influenciador, há um desejo de performance que se realiza na disponibilidade constante em estar em frente as câmeras produzindo (ou reproduzindo) algum conteúdo para seus seguidores – esse é seu trabalho. Para quem é criança, isso serviria como um processo de internalização de uma racionalidade sobre como acontece a circulação do capital. “Ele já não é mais somente um usuário, consumidor ou produtor (ou prosumer) mas peça intrínseca para o funcionamento de um sistema produtor de dados e engajamento responsáveis por acelerar a circulação do capital”, como concluem os pesquisadores.

Para ler o artigo: https://periodicos.ufs.br/eptic/article/view/19089

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O paradigma educacional tecno-utopista na Coreia do Sul

por Fabricio Solagna em 11 de setembro de 2024, Comentários desativados em O paradigma educacional tecno-utopista na Coreia do Sul

A pandemia de COVID-19 acelerou o processo de digitalização em diversas áreas e abriu uma avenida para as big techs. A educação foi uma área bastante impactada com as ideias tecno-solucionistas, envernizadas como salvação para o atraso do Sul em relação ao Norte, conjugadas com vigilância e datificação.

Este cenário na Coreia do Sul é estudado pela pesquisadora Saemi Nadine Jung, da Escola de Comunicação da Universidade Simon em Vancouver, no Canadá, cujo trabalho foi publicado em artigo na International Journal of Communication, importante revista acadêmica multidisciplinar, com foco em assuntos relacionados à comunicação. Ela realizou uma pesquisa de 2021 a 2023 sobre as políticas educacionais geradas principalmente em resposta à pandemia, lançadas sob o guarda-chuva de “Korea New Deal”.

A intenção do estudo não foi fazer uma avaliação qualitativa das políticas, mas enfatizar como o trabalho de definição de uma agenda verticalizada em torno do uso tecnologia na educação foi impulsionada e justificada por mitos de modernização e progresso tecnológico, emulando políticas do ocidente.

Ao revisar os planos produzidos pelo Ministério da Educação, Jung demonstra como os documentos sul-coreanos são dominados por um enquadramento explicitamente neoliberal, que sugere aos indivíduos “investir em uma vida empreendedora”, por exemplo, e que, ao mesmo tempo, recupera palavras-chave do pós-guerra. Assim, ela afirma que há um deslocamento dos valores da educação para promover “o crescimento individual e da criatividade” e para mobilizar “talentos digitais” para “resolver desafios internacionais”, a despeito de valorizar a formação do pensamento crítico.

Outra parte da análise da pesquisa se dedica a estudar uma peça publicitária em formato de vídeo no canal oficial do governo no Youtube sobre o aniversário do New Deal coreano. Nela, é anunciada o novo modelo de escola futurista chamada “Escola Verde Inteligente do Futuro”, que se utiliza de inteligência artificial, reconhecimento facial e tecnologias algorítmicas para análise preditiva de desempenho. Questões de privacidade e autonomia das crianças são desconsideradas, ao passo escola que é retratada como um espaço utópico “onde coisas mágicas acontecem”, segundo a pesquisadora.

Com referências que evocam Harry Potter e de Hogwarts, as escolas fictícias se diferenciariam por oferecer tecnologias de aprendizagem personalizada. Esta personalização é calcada em profunda datificação para avaliação algorítmica, o que leva à conclusão da pesquisa que “o discurso de reforma educacional liderado pelo Estado é muito similar aos discursos encontrados na indústria tecnológica”.

Aqui no Brasil também houve um extenso estudo sobre o impacto atual das tecnologias na educação, publicado pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br). O livro está disponível para download e também é possível solicitar a versão impressa: Educação em um cenário de plataformizaçãoe de economia de dados. O material foi fruto de um grupo de trabalho que analisou as plataformas na educação remota e traz um olhar sobre os desdobramentos do período da pandemia até o momento.

Para ler o artigo: https://ijoc.org/index.php/ijoc/article/view/21145


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