Há neste momento um lugar da internet onde muitas pessoas disputam simultaneamente uma mesma partida de Pokemon.
A ideia partiu de uma coisa razoavelmente simples. Um computador processa um jogo de Game Boy ligado ao Twitch (um serviço de vídeo para streaming de partidas de videogame em tempo real, com comentários), e um software transforma a audiência do Twitch no jogador da partida. O experimento se chama Twitch Plays Pokemon, e funciona assim: o computador com o emulador de Game Boy roda uma partida de Pokemon vinte e quatro horas por dia, que é transmitida ao vivo no Twitch, que tem sua caixa de comentários tornada uma espécie de joystick a partir de um software que processa os comandos escritos pelo público e os transforma em direções para o avatar do jogo. Por exemplo, a audiência comenta “direita”, ou “esquerda”, ou “botão a”, ou “start”, e o sistema processa o todo dessas informações, o que é transformado em ações dentro do jogo (os comandos, em inglês, são predeterminados).
É verdade que boa parte do resultado disso tem a ver o personagem do jogo andando em círculos, indeciso, capturando e distribuindo pokemons numa jornada sem muito sentido. Mas a partida prossegue com resultados satisfatórios apesar de tudo, e em algum lugar no meio do caos seu protagonista tem conseguido vencer chefes de fase e avançar rumo ao fim da partida.
O criador do experimento é um programador australiano anônimo, e estaria realmente surpreso com o universo de participação em torno do projeto. O que é compreensível – quando tentei ajudar o pequeno avatar a fazer novos amigos e vencer sua grande jornada rumo ao panteão dos treinadores de pokemons, dividi o controle do joystick com pouco mais de oitenta mil pessoas, e todo mundo parecia ter alguma opinião bastante forte sobre qual seria o melhor próximo passo. Mas o entusiasmo sobre o experimento, com sua aura de amostra grátis do poder da web e das novas tecnologias de comunicação para a emergência da sabedoria das multidões, não é uma iniciativa especialmente nova.
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Em 1991, numa convenção de especialistas em computação gráfica realizada nos EUA, um experimento meio parecido foi colocado em ação. Kevin Kelly, um dos caras que inventaram a cultura do Vale do Silício, registrou o evento mais ou menos assim (a tradução é minha, e o trecho é meio longo):
Em uma sala de conferências escurecida de Las Vegas, uma audiência animada acena com bastões de papelão no ar. Cada bastão é vermelho de um lado e verde do outro. De longe, na parte de trás do enorme auditório, uma câmera analisa os participantes frenéticos. Uma câmera de vídeo liga as manchas coloridas dos bastões a computadores programados pelo mago dos efeitos visuais Loren Carpenter. O software personalizado de Carpenter localiza cada bastão vermelho e verde no auditório. Na noite de hoje, há pouco menos de cinco mil participantes. O computador exibe a localização exata de cada bastão (e sua cor) em um imenso mapa, detalhado em um vídeo na frente do palco, que todos podem ver. Mais importante, o computador conta o total de bastões vermelhos ou verdes, e usa esse valor para controlar o software. Conforme o público agita os bastões, a tela mostra um mar de luzes dançando loucamente no escuro, como um desfile punk à luz de velas. Os espectadores se veem no mapa – eles são ou um pixel vermelho ou verde. Mexendo seus bastões, podem mudar instantaneamente a cor de seus pixels projetados.
Loren Carpenter dá início a um antigo jogo de Pong na tela imensa. Pong foi o primeiro videogame comercial a tocar a consciência pop. É um arranjo minimalista: um ponto branco quica dentro de um quadrado, com dois retângulos móveis em cada ato lado como raquetes virtuais. Em suma, ping-pong eletrônico. Nesta versão, mostrando o lado vermelho de seu bastão você move a raquete para cima. Verde, para baixo. Mais precisamente, a raquete de Pong se move conforme o número de bastões vermelhos aumenta ou diminui no auditório. Seu bastão é apenas um voto.
Carpenter não precisou explicar muito. Cada participante da conferência de especialistas em computação gráfica de 1991 foi, provavelmente, viciado em Pong algum dia. Sua voz amplificada ressoa no salão: “Ok caras. O pessoal no lado esquerdo do auditório controla a raquete para a esquerda. O pessoal no lado direito, a raquete direita. Se você acha que está na esquerda, então você realmente está. Ok? Vai! ”
O público vibra de alegria. Sem hesitar, cinco mil pessoas estão numa partida razoavelmente boa de Pong. Cada movimento da raquete é a média de vários milhares de intenções dos jogadores. A sensação é enervante. A raquete geralmente faz o que você pretende, mas nem sempre. Quando não acontece, você se vê gastando tanta energia jogando quanto tentando prever a bola recebida. Um é definitivamente ciente da inteligência do outro online: é uma multidão aos gritos.
Esses quatro parágrafos são de Out of Control, livro de Kevin Kelly que se tornou um dos marcos iniciais da cultura da web. Kelly é um dos fundadores da Wired, um formulador que ajudou a organizar o caldo de cultura que misturou hippies, engenheiros, autores e artistas experimentais, ancorando a noção de cibercultura à ideia do experimentalismo dos anos 60 e ao hobby computacional dos anos 70 e 80. Não seria exagero dizer que Out of Control é uma das obras que inspiraram a teoria da Singularidade, e é sempre curioso lembrar que o livro foi uma das obras que os irmãos Wachowski assumem como centrais à construção do universo de Matrix.
Em Out of Control, Kelly acena com um certo entusiasmo por uma noção de consciência holística vitaminada por novos dispositivos de comunicação e informação. Uma crença no poder de uma multidão redimida a partir de um grande filtro tecnológico, um motor que ajudaria a tornar o grande sentido das ações de todo mundo uma coisa boa. Ele chama esse conceito de “hive mind” (em português, algo como “mente de colmeia”), uma noção que defenderia basicamente que todos estamos no mesmo barco, e que no fundo gostaríamos todos de remar pro mesmo lado. Faltaria apenas o software pra organizar isso tudo – uma vez organizado, a geração de riqueza e bem estar e tecnologia floresceriam em progressão geométrica, e nem perceberíamos que a coisa estaria rolando.
A proposta de Kelly ancora à observação de fenômenos naturais a noção de uma grande consciência universal, e é cheia de paralelos entre iniciativas colaborativas mediadas por tecnologia e o comportamento coletivo de insetos e animais. Para Kelly, há um certo padrão maior a emergir da constante negociação entre os indivíduos de uma comunidade, um fenômeno que poderia ser acelerado/modulado por dispositivos tecnológicos, alcançando sua plenitude apenas em espaços de liberdade total e irrestrita. A partida gigante de ping-pong seria, essencialmente, como experimentar com dinâmicas de interação entre livre mercado e tecnologia dentro de um tubo de ensaio.
É difícil não concordar que a ideia oferecida por Kelly é bastante sedutora. Um universo de invenções e riqueza brotando das dinâmicas de interação entre todo mundo, como subproduto de um novo e gigantesco tipo de organismo híbrido formado por homens e máquinas. A partir da implementação dos tipos certos de software e hardware, a humanidade poderia deixar para as máquinas o trabalho pesado e as decisões complicadas, bastaria reduzir as regras ao mínimo e deixar as pessoas fazerem o que achassem que deveriam fazer.
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O determinismo tecnológico abraçado por Kevin Kelly foi extremamente influente na formulação do que viria a se desenhar como a cibercultura (vale lembrar que, em sua obra, Kelly atua essencialmente como porta-voz de um programa construído ao longo das décadas passadas por coletivos experimentais e grupos técnicos). A noção de trabalho-colaborativo-horizontal-mediado-por-máquinas veio a se confundir com a própria noção do que seria entendido como ação cibercultural ou ativismo digital – o que, hoje, poderia ser verificado na dificuldade encontrada para situar politicamente não poucas iniciativas que se dizem associadas à cibercultura.
Disso tudo, surge uma questão que vai além da tentativa de, na marra, associar processos naturais a uma mecanização lógica que poderia ser emulada por softwares: a questão sobre como seriam entendidos os processos políticos nesse novo ecossistema, e como não existiria, em algum sentido, uma tentativa de terceirizar para as máquinas a política – um fenômeno que, para o crítico Evgeny Morozov, poderia ser chamado de “solucionismo”.
Morozov é um sujeito controverso, mas sua proposta crítica tem um ponto. A partir da ideia do solucionismo, ele lança ao debate algum ceticismo à noção de que a solução de problemas diversos da humanidade estaria no fim do arco arco-íris, num pote cheio de softwares e ferramentas de comunicação. Tipo, “Problemas de peso? Um app para emagrecimento deve dar um jeito”; “Crise na representação e participação política? Alguma plataforma colaborativa para levantamento e tabulação automática de informações cidadãs resolve.”
Em sua crítica central, o solucionismo busca recolocar em discussão as relações de poder, reafirmando-as como motor de esferas entrelaçadas da sociedade e da cultura, e permanentemente transformadas numa dinâmica de tensões e negociações. Por mais que um app possa facilitar a vida de profissionais atarefados e automatizar processos da burocracia pública, sua criação, implementação, uso e efeitos são parte de uma cadeia política e econômica que influencia desde o funcionamento do código de programação (por conta do resultado das políticas de trabalho para os programadores de uma determinada startup, por exemplo) até o preço do café em alguns bairros da cidade (como no caso de São Francisco, que tem passado por um processo avassalador de gentrificação por conta do dinheiro catalizado por empresas de tecnologia). No fundo, é uma ideia que tem a ver com a noção de que coisas como os relacionamentos, a vida do dia a dia, a cultura e a política são fenômenos não exatamente passíveis de terceirização ou modulação via máquinas e softwares. O que coloca na mesa, também, a dúvida sobre o projeto de uma nova era de boas novas à experiência humana através de um tipo de determinismo tecnológico supersônico.
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Alguns dias após seu início, o jogo coletivo de Pokemon mudou suas regras. Além das variáveis básicas ao comando da partida, seu criador passou a oferecer ao público o comando sobre dois novos parâmetros: democracia ou anarquia.
A motivação, especula-se, teria a ver com uma espécie de amortecedor que neutralizasse a ação de trolls (quando o jogo virou notícia, não poucos jogadores começaram a entrar na partida apenas para agir como uma força disruptora, enviando comandos sem muito sentido pra travar seu andamento). Pelas novas regras, a coisa funcionaria a partir de duas possibilidades. Na anarquia, o jogo processa mais ou menos automaticamente o universo de comandos, e se um monte de gente mandar o personagem ir pra direita e pra esquerda e soltar um pokemon e mudar de ideia, ele talvez faça algo disso ou talvez rode em círculos. Pela via democrática, todo mundo vota no comando que ofereceria o melhor destino pro protagonista da partida e, após alguns segundos, o jogo computa o total dos votos e o personagem toma a ação decidida pela maioria.
Pode parecer quase a mesma coisa, mas o funcionamento dos dois mecanismos oferece percepções bastante distintas sobre o funcionamento do jogo. Na anarquia, você apenas insere comandos tentando ajudar e torce para que algo se manifeste da coisa toda. Na democracia, há uma nova dinâmica – todos veem quais seriam os movimentos preferidos e os que não seriam tão populares para a próxima rodada, o que, em tese, poderia ajudar os jogadores a pensar em seus comandos de modo que pudessem colaborar com alguma possibilidade real de organizar o rumo da partida. Por exemplo, você poderia achar que mandar o personagem andar pra cima no mapa seria a melhor solução, mas, ao ver os votos computados, perceberia que ir pra direita tem uma boa possibilidade de se dar bem na próxima rodada, e que talvez valesse a pena apostar num voto útil.
Agora, aqui fica a pegadinha: a decisão sobre o sistema político do jogo, se é anarquia ou democracia, fica também a cargo dos jogadores, funcionando no mesmo nível dos outros comandos. O que, na prática, significa que um comando “botão b” tem o mesmo peso de um voto “democracia” (o sistema de votação é inclusive o mesmo, basta inserir “anarquia” ou “democracia” em inglês na caixa de comentários). O maior número de votos a favor de um ou outro sistema vai empurrando uma espécie de termostato político na tela do jogo para um lado ou para o outro, definindo seu andamento.
É interessante pensar que, com esse salto no funcionamento do jogo, novos participantes talvez tenham começado a participar da partida apenas para inserir comandos tentando transformar o regime político do universo pokemon (pelo menos um conhecido meu disse ter entrado na partida só para votar na anarquia por um tempo). Do mesmo modo, é bem louco ver, a partir daí, a possibilidade de uma partida de Pokemon dividida entre níveis distintos de jogadores: os que ficariam mandando o personagem andar ou apertar botões; os que ficariam mandando votos a favor de alguma das possibilidades de arranjo político; e, quem sabe, um terceiro tipo de jogador, que trabalharia nas ações do jogo ao mesmo tempo em que tenta orientar o projeto político da partida para um lado ou para o outro. São muitos os possíveis arranjos e estratégias.
Ao final, a grande partida de Pokemon talvez se desenhe essencialmente como um grande experimento político. Por mais animador e reconfortante que seja o determinismo tecnológico e seu projeto de deixar para as máquinas algumas partes chatas e desconfortáveis da experiência humana, o universo de relações simbólicas e estruturais presentes na construção do código de computador (e na sua sedimentação como rede comunicacional, e como linguagem, e como espaço de produção de informação e riqueza) talvez tenha um tanto de dificuldade para transcender a lógica de conflitos e mediações gravadas no firmware humano. Ao sugerir uma automatização dos processos comunitários que construiriam a prática política, o Twitch Plays Pokemon pode, ao fim, ter criado uma arena que jogaria com a complexidade das experiências políticas e da utopia junto ao seu público – mais que automatizando, criando questões através da máquina.
De todo modo, eu vou lá votar de novo na democracia, só pra garantir.