Cenário pós-pandemia indica aumento da capacidade de vigilância de corporações e Estados

por Maria Vitoria Pereira de Jesus em 20 de maio de 2025, Comentários desativados em Cenário pós-pandemia indica aumento da capacidade de vigilância de corporações e Estados

O contexto da Covid-19 foi, de modo geral, marcado pelo aumento de tecnologias de vigilância em diferentes âmbitos da vida social. Passamos a trabalhar e estudar em casa, realizar mais compras online, fazer consultas médicas remotas e inúmeras outras atividades. Tudo isso por meio de plataformas, gerando uma grande quantidade de dados que, ao serem coletados e analisados, possibilitam o controle sobre as nossas ações e comportamentos.

Imagem gerada por inteligência artificial generativa utilizando palavras-chave: cidade e vigilância digital

No período da pandemia, vimos aplicativos serem criados para monitorar quadros de saúde, contabilizar o número de casos, notificar usuários que tiveram contato com pessoas contaminadas e identificar as principais zonas de contágio. No Brasil, o aplicativo utilizado foi o Coronavírus-SUS, lançado em 2020, que pretendia reduzir a circulação da doença por meio do rastreamento de contatos. Outros foram lançados ao longo da pandemia, como o MonitoraCovid-19, pela Fiocruz.

Se, por um lado, os aplicativos para monitoramento da Covid-19 auxiliaram no controle da doença, por outro, aumentaram a capacidade de vigilância dos Estados e das empresas desenvolvedoras, que tiveram acesso a dados não só de saúde, como também pessoais. Em artigo publicado na Surveillance & Society, Elise Rancine, da Universidade de Oxford, afirma que o uso de aplicativos para o monitoramento da Covid-19 permitia o acesso a número de telefone, endereço, biometria facial e histórico de localização. Na pesquisa intitulada “The Far-reaching Implications of China’s AI-powered Surveillance State Post-COVID”, ela se debruça mais especificamente sobre o aplicativo Ali Health Code, desenvolvido pela empresa chinesa Alibaba. Segundo a pesquisadora, outros dados coletados pelos aplicativos podem ser utilizados para outras finalidades, assim como para fortalecer aparatos de vigilância, inclusive do próprio Estado, que pode aumentar as suas ferramentas de controle social.

No Brasil, o MonitoraCovid-19 foi estudado por pesquisadores da Universidade Federal da Bahia, Pontifícia Universidade Católica do Paraná e Fundação Getulio Vargas, que, no artigo “Smart Pandemic Surveillance? A NeoMaterialist Analysis of the ‘Monitora Covid-19’ Application in Brazil”, também alertaram sobre a coleta de dados pessoais sensíveis pelo aplicativo. De acordo com André Lemos, Rodrigo Firmino, Daniel Marques, Eurico Matos e Catarina Lopes, o acesso ao MonitoraCovid-19 era feito mediante o fornecimento de informações como nome completo, CPF, tipo de assistência médica, data de nascimento, nome da mãe, sexo, e-mail, telefone e endereço completo. Além disso, o seu pleno funcionamento dependia da concessão de permissão do aplicativo a dados de geolocalização, atividade física e SMS. Todos foram coletados sem a menor garantia de que estariam seguros e não seriam compartilhados com terceiros, ou utilizados para outras finalidades.

Segundo Rancine, na China, na cidade de Hangzhou, autoridades já consideram fazer uso do aplicativo para pontuação de saúde dos cidadãos a partir de informações como se são fumantes ou ingerem bebidas alcoólicas. Já na província de Henan, o aplicativo foi usado para restringir movimentos de alguns residentes após a ocorrência de protestos na região. Para a autora, esses outros usos do aplicativo podem não apenas aumentar as possibilidades de disciplina e controle sobre os corpos, como também fixar padrões de saúde com base em práticas de consumo e modos de vida. Além disso, esses usos revelam outras possíveis aplicações, que vão além da proposta original.

A autora do estudo cita outros países que também aplicaram metodologias parecidas, como o Zimbábue. A empresa local CloudWalk Technology utilizou a base de dados do governo com informações biométricas para desenvolver sua tecnologia de reconhecimento facial, sem o consentimento das pessoas envolvidas.

A despeito das preocupações sobre vigilância e possível manipulação política das populações, há uma clara gramática de colaboração entre governos e setor privado, em que dados populacionais são o grande ativo. No caso da China, seria essa cooperação com o Alibaba. No Brasil, seria com a Novetech. Por fim, no Zimbábue, seria com a CloudWalk. Em todos os casos não houve necessariamente uma supervisão legal clara ou uma discussão pública sobre riscos e as possíveis formas de mitigá-los.


Para ler o artigo: https://doi.org/10.24908/ss.v21i3.16111

Lavits

Esta nota faz parte do projeto “Inteligência Artificial e Capitalismo de Vigilância no Sul Global”, financiado pela Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade e realizado pelo Labjor - Unicamp | Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo