A financeirização digital é a nova fronteira de geração de lucro e controle no capitalismo de vigilância. A fusão dos reinos digital e financeiro tem tomado uma escalada cada vez maior, contando com a colaboração entre a burocracia estatal e o poder das big techs, principalmente no Sul Global, onde adquire caráter de colonização contemporânea.

Ghazal Mir Zulfiqar, pesquisadora da Universidade de Lahore University (UOL) do Paquistão, analisa esta perspectiva no artigo “Digital financialization and surveillance capitalism in the Global South: The new technologies of empire”, publicado na revista Organization, voltada para estudos de inovação. A autora argumenta que é essencial analisar como as novas tecnologias estão colonizando os espaços cotidianos no Sul Global, sob o pretexto de inclusão e desenvolvimento.
A financeirização digital está presente no cotidiano, seja na proliferação de fintechs, oferecendo serviços que antes eram exclusividade dos grandes bancos, seja na capacidade de outros intermediários realizarem transações financeiras, como o caso das carteiras do Google e da Apple que permitem pagamentos através do celular ou do smartwatch.
Mas há outras camadas que Zulfiqar alerta como um sinal de avanço do domínio colonial sobre o Sul Global. À medida que a financeirização digital é vendida como inclusão de pessoas desbancarizadas, como uma forma de realizar transações “modernas”, o Estado passa a promover as tecnologias de vigilância – controladas por empresas no Norte Global – a fim de que mais pessoas estejam aptas a participar da ciranda financeira. Essa campanha por “modernização” é perpetrada também por órgãos e agências internacionais como Banco Mundial, ONU e PNUD. Agências de desenvolvimento e os próprios Estados se transformam em indutores e implementadores destas políticas.
A autora cita dois casos bem concretos: um deles é a Índia, em que o Aadhar, um projeto de identificação digital, atingiu mais de um bilhão de pessoas. É uma sequência de 12 dígitos, vinculada a informações biométricas e demográficas, que torna possível o acesso aos serviços do Estado, como saúde e educação, mas também a realização de pagamentos. Uma questão semelhante já foi objeto de texto no site OplanoB “’Só fiz a tecnologia’: setor privado estimula tecnovigilância na Índia”, sobre um artigo que faz parte do livro Policing and Intelligence in the Global Big Data Era.
O outro caso é o próprio PIX brasileiro, uma pequena evolução da forma de transação financeira que permitiu que milhares de pessoas utilizassem o sistema bancário para pequenos pagamentos e recebimentos, se utilizando, principalmente, do telefone celular.
A crescente dependência dos países do Sul Global dessas tecnologias representaria um novo imperialismo digital, onde dados e identidades financeiras são integrados a redes globais de monitoramento e exploração. As ferramentas de vigilância, controle e, em última instância, repressão, se tornam mais integradas, cujos poderes tentaculares se estendem nos diferentes modos de vida.
Embora a inclusão de pessoas em sistemas de pagamento possa facilitar a vida das pessoas em muitos sentidos, o autor busca destacar o caráter pernicioso quando esta inclusão faz parte de um contexto em que grandes empresas monopolistas da tecnologia do Norte e os países do Sul submetem suas populações a novas formas de exploração.
“Situo as finanças digitais dentro do contexto mais amplo de “financiamento da pobreza” (…) No nível familiar, a financeirização da vida cotidiana explica como essas novas formas de dívida são cada vez mais usadas para financiar a reprodução social, à medida que os salários continuam a cair e a capacidade do Estado de fornecer bem-estar social diminui com os ajustes estruturais exigidos dos países do Sul por instituições multilaterais.”
A despeito de qualquer benefício sobre a financeirização digital, o autor ressalta que, durante o período colonial, bancos e mercados de crédito serviam principalmente aos interesses da metrópole, deixando a maior parte da população sem acesso aos seus serviços. A digitalização financeira estaria seguindo um padrão semelhante: grandes corporações e instituições utilizam a inclusão digital como uma forma de expandir mercados, perpetuando desigualdades históricas.
Ainda que mais pessoas participem dos mercados financeiro, só estariam incluídas a partir da monetização e exploração dos seus dados em outros círculos, por meio de corporações do Norte Global. Ainda assim, mesmo que haja uma pequena inclusão de novas pessoas nos mercados, isso significa, na prática, acesso a créditos de alto custo que resultam, na maioria das vezes, em mais endividamento familiar, ajudando a exponenciar os lucros das instituições financeiras.
Em resumo, Zulfiqar descreve as três principais características interconectadas que tornam a colonização digital possível: primeiro, as big techs e seu caráter monopolístico; segundo, a associação das big techs com agências de desenvolvimento para implantar infraestruturas de vigilância; e, finalmente, em terceiro lugar, as parcerias das big techs com os próprios setores de vigilância, para monitorar todos os passos e ações das pessoas. Essas três formas, combinadas, imporiam as novas formas de imperialismo econômico e sociopolítico do Norte ao Sul, abrindo a possibilidade de que os governos possam espionar seus próprios cidadãos com maior facilidade.
Para ler o artigo: https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/13505084231183033

Esta nota faz parte do projeto “Inteligência Artificial e Capitalismo de Vigilância no Sul Global”, financiado pela Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade e realizado pelo Labjor - Unicamp | Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo