Esquemas de pirâmides em plataformas e a lógica da exploração perpétua

por Fabricio Solagna em 22 de junho de 2025, Comentários desativados em Esquemas de pirâmides em plataformas e a lógica da exploração perpétua

Os modelos de negócios baseados em marketing multinível ou marketing de rede não são novos e se tornaram mais populares depois da Segunda Guerra. No Brasil, há diversos tipos de empreendimentos e marcas que se utilizam deste modelo como Avon, Herbalife, Mary Kay, Jequiti, entre outras.

Em geral, são negócios que funcionam por meio de esquemas similares às pirâmides, onde um promotor de vendas, além de vender os respectivos produtos da marca, também é responsável por recrutar novos vendedores. Um percentual das vendas dos recrutados é revertido para o recrutador, formando assim uma cadeia em que na maioria das vezes vender o produto é uma pequena parte do processo. É necessário manter uma rede de pessoas atuantes, motivadas e mobilizadas, promovendo a marca e aliciando novos vendedores, formando uma exploração descendente em que, no final das contas, quem ganha mais é o controlador da marca.

Este tipo de negócio também entrou na era digital e se complexificou. Para além dos negócios relacionados a moda, beleza e utilidades domésticas, emergiram as pirâmides financeiras ou negócios de marketing multinível plataformizados, que prometem riqueza, liberdade e comunidade, mas, na verdade, organizam indivíduos em ciclos de extração de valor. Ou seja, não existe sequer um produto físico em jogo, o modelo de negócio é, supostamente, oferecer cursos e formação para obter ganhos no mercado financeiro. Mas exatamente para quem? Ou quem está ganhando dinheiro com isso?

Imagem gerada por inteligência artificial generativa utilizando palavras-chave: piramides, influencers, plataformas

Segundo os pesquisadores Jacob Ørmen, Andreas Lindegaard Gregersen, Anne Mette Thorhauge e Linea Munk Petersen, ambos vinculados ao Center for Tracking and Society da Universidade de Copenhague na Dinamarca, é uma rede complexa que envolve diversas plataformas, desde venda de serviços, perfis em redes sociais até plataformas afiliadas de pagamentos. Todos esses serviços online se relacionam e se complementam para formatar um “perfil empreendedor” e extrair o máximo de valor de pessoas empenhadas em investir tempo e dinheiro em construir um certo tipo de imagem, almejando obter retornos financeiros. Os dados da pesquisa estão disponíveis no artigo “Perpetual precarity: Cycles of value extraction in the platformised multi-level marketing scheme”, publicado na revista Platforms & Society.

O caso de estudo são players globais do setor como a iGenius, SER e IM Academy/IYOVIA. O artigo apresenta uma pesquisa empírica mais elaborada sobre a iGenius, uma plataforma que funciona principalmente no mercado dinamarquês, mas que tem atuação global. É interessante perceber como este mercado também depende de serviços e plataformas sediadas em países periféricos e do Sul Global. As plataformas de pagamento estão baseadas em paraísos fiscais, assim como as plataformas de criptomoedas, como Revolut e CoinZoom. Algumas plataformas de trading estão baseadas no Oriente Médio, tudo isso em função de regulamentações mais brandas ou menos obrigações de transparência.

O principal produto que estas plataformas revendem são pretensos cursos, ou material financeiro educativo, de qualidade questionável e sem valor prático, os quais geram uma subscrição, uma mensalidade, necessária para o aspirante entrar no “universo de investimento” e se tornar um trader. Essas mensalidades mantêm a principal extração de valor do público alvo e geram uma certa dependência da rede de marketing multinível entre promotores e novos recrutados. São caminhos para estabelecer outras redes de relações, mas, principalmente, solidificar vínculos com pessoas de pretenso sucesso na “arte dos negócios” de alto risco e de investimentos voláteis.

Os serviços pesquisados não se tratam de esquemas fraudulentos diretamente, ainda que muitos estejam em investigação em alguns países pela característica do modelo de negócio de pirâmide. O caso em questão não tenta enganar por completo, ainda que prometa muito mais do que realmente consegue entregar. A promessa é uma nova vida de sucesso na operação financeira, por lucros através da manipulação de um dinheiro que, em algumas situações, nem é da própria pessoa – mas a qual assume o risco da eventual perda. O resultado, na maioria das vezes, são gastos excessivos para se manter nestas plataformas, girando a roleta para tentar obter mais lucros na próxima negociação, numa dinâmica muito próxima de um jogo.

A iGenius, especificamente, atua em quatro níveis nos quais sua operação é quase que completamente externalizada. Num primeiro nível, perfis de redes sociais, no Instagram e no TikTok, são utilizados para recrutar potenciais clientes mediante narrativas aspiracionais de riqueza, liberdade e sucesso financeiro. Este primeiro nível serve como porta de entrada para chats privados – que geralmente acontecem em grupos de Telegram -, onde são oferecidos as oportunidades de ganhos através da plataforma própria. No segundo nível, opera a plataforma da própria iGenius, que promove educação financeira. Nesse nível é que o aspirante precisa fazer aportes mensais significativos para ser introduzido na rede de investidores. Num terceiro nível, há as plataformas afiliadas, em que é possível realizar o trading especulativo de alto risco, em que o aspirante usa seus próprios recursos ou de terceiros, mas como forma de empréstimo. No último nível estão as plataformas de pagamento e gestão financeira, onde estes ganhos são revertidos em moeda ou, na maioria das vezes, criptomoedas.

Há uma clara desigualdade de oportunidades e vantagens entre negociadores profissionais, institucionais, e o tipo de perfil aspirante que este tipo de mercado tenta recrutar. Não é só a experiência, há também diferença de taxas – desvantajosas para negociadores de curto prazo, por exemplo. No final das contas, essa massa de pessoas que adentra no mercado financeiro tentando obter lucros numa atividade altamente financeirizada e não produtiva, acaba servindo de uma espécie de colchão para outros perfis com mais conhecimento ou com estratégias de longo prazo. “Os traders profissionais, que são muitas vezes as contrapartes dos traders de varejo, prosperam com o influxo dos inexperientes como fornecedores de dinheiro burro nos mercados financeiros”, escrevem os pesquisadores.

Os esquemas de marketing multinível plataformizado operam pouco na esfera da extração de valor por meio de coleta e monetização de dados. A ação é mais tradicional, atuando no roubo de renda ou das reservas financeiras dos negociadores. Há uma dependência direta em tentar reverter investimentos iniciais – que são altos – num mercado volátil que sempre é desfavorável. Como forma de manter um controle social, as comunidades (grupos de Telegram, por exemplo), reforçam as aspirações e esperanças de ganhos futuros, para manter o seu público alvo motivado a fazer girar a roda. A relação aparente aqui com esquemas de BETs e Tigrinho, no caso brasileiro, não é só similar, como revela que as práticas e estratégias destes modelos de negócios são intercambiáveis, visando a dilapidação dos recursos financeiros dos aspirantes em nome de um modo de vida vendido em perfis de redes sociais dos recrutadores.

Esses modelos de negócio compartilham e escancaram uma precariedade de relações de trabalho não pago a partir de uma mobilização de aspirações, vendendo-se como uma oportunidade de melhora de condição de vida que, infelizmente, raramente se realiza.

Para ler o artigo: https://journals.sagepub.com/doi/epub/10.1177/29768624251335549

Lavits

Esta nota faz parte do projeto “Inteligência Artificial e Capitalismo de Vigilância no Sul Global”, financiado pela Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade e realizado pelo Labjor - Unicamp | Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo