minha privacidade pela sua propriedade intelectual, topa?

por Rafael Evangelista em 8 de novembro de 2013, zero comentários

A dica vem do tuíter no @evgenymorozov (que diz que o texto nem é tão bom – verdade – mas ressalta o papel da “Internet” na narrativa do texto, que é naturalizada, vira uma força da inexplicável natureza ).

Começa assim (Privacy Isn’t a Right, na Slate):

A privacidade não é mais um direito. Nós a vendemos por fotos de gatinhos e pela possibilidade de dizer a todos do mundo do mundo livre o que comemos no café da manhã.

Não também estou dizendo que é uma troca ruim. A internet como a conhecemos aconteceu pela monetização da informação-metadados sobre nós – em lugar de replicar o modelo tradicional de venda de conteúdo. Como resultado a internet explodiu numa pletora de serviços úteis e plataformas em todos os formatos e tamanhos. Mais ainda,  foi uma igualadora – ninguém tem informação pessoal que vale mais do que a de outros, assim todo mundo foi capaz de trocá-la pelo mesmo tipo de serviço.

O problema nisso tudo é que privacidade é uma noção da qual se abdica no momentos em que você aperta “concordo” no acordo de serviços que você não leu. E, apesar de os consumidores não terem percebido isso, seus dados deixaram o restaurante e lhes sobrou a conta.

Bom, é difícil conseguir estar tão certo e ao mesmo tempo tão errado como Josh Klein. O problema – do texto inteiro – é o excesso de simplificação e a visão de indivíduo consumidor contida no artigo todo – além de colocar a internet como força da natureza, como bem nota o Morozov.

Por que ele está em parte certo? Porque o raciocínio de que a informação sobre o usuário – individulizada ou usada coletivamente como metadado – é a força motora, o combustível mesmo, desse capitalismo internético é bem forte. Não é exatamente nova, um monte de autores já trabalharam sobre isso, mas é interessante que seja colocada claramente, dessa forma, com exemplos bobinhos mas palpáveis. O texto é uma versão resumida do livro Reputation Economics, que tem toda cara de ser aquela literatura de aeroporto mal-fantasiada de cabeçuda.

Mas está muito errado em trezentos outros pontos, a começar por descartar isso que ele chama de privacidade como um direito. Primeiro porque dizer que a foto do café da manha que você mete no instagran é algo privado é complicado. Por um lado, sim, se sou uma pessoa muito restrita, apenas adiciono meia dúzia de conhecidos nas minhas redes e google/microsoft/facebook usam essa informação nos metadados que eles vendem por aí ok. Mas a maioria das pessoas tem uma rede ampliada de contatos e a foto do café da manhã serve, concretamente, como indicação de um determinado serviço. É o mesmo quando coloco o vídeo de uma banda que gosto, e que poucos conhecem, e os conectados comigo vão lá pesquisar sobre a banda. Nesse momento a rede social não funciona só para relacionamentos pessoais, ela é como uma revista que te indica um filme, um livro ou um show. E aí, meus caros, não é a minha privacidade que foi pro mercadão, é minha “propriedade intelectual”.

Vamos dimensionar isso? É fácil dizer que “a privacidade está morta”, como tem sido repetido exaustivamente por aí, até mesmo por gente que busca resgatá-la como direito. Muito mais incomum é você ler que “a propriedade intelectual está morta”. E seria um jogo bem massa de se jogar, eu topo tornar a propriedade intelectual um bem comum. Que tal?

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Vale destacar ainda dois méritos do texto do Klein.

Um é que ele aponta, lá no final, para uma possível “renegociação” dessa relação entre sites e usuários, de modo que as grandes empresas de internet ofereçam mais em troca do que obtém. É uma pena que a coisa é colocada sempre do ponto de vista do consumidor individualizado, que deveria, segundo ele, tornar mais difícil o acesso a seus dados, usando de VPNs e criptografia, para que as empresas subam o “preço” pago. Seria bem mais interessante entender isso como direito e como produção coletiva, apontando para mudanças nas relações sociais que efetivamente reconheçam isso.

Outro mérito são exemplos de patentes de modelos de negócio/tecnologias que ele dá. Um par delas, da Microsoft:

“Vejamos um par de patentes que a Microsoft pediu alguns anos atrás. Descrevendo genericamente, a primeira permite que a companhia coloque um número na habilidade de qualquer identidade [pessoa] em influenciar os outros em determinado tópico. Então, para a palavra queijo você pode ter um score de 88, porque você mantém um blog popular sobre queijos. Ao mesmo tempo, eu posso ser intolerante à lactose e ter um score de 17. A segunda patente é mais interessante, ela permite que a Microsoft coloque, dinamicamente, preços em serviços ou bens baseando-se naquele seu score.

Isso significa que, se você vai comprar um queijo online a Microsoft pode perguntar à Kraft se ela quer te dar um grande desconto no queijo, esperando que você faça uma boa resenha sobre os queijos dela e que as vendas subam. Do mesmo modo, se eu quero comprar queijo ela pode perguntar à Kraft se quer jogar o preço lá em cima, de modo que eu me sinta desestimulado a comprar, poupando-a de uma resenha potencialmente embaraçosa.”

Sacaram? É como aquelas banquinhas que dão um preço de acordo com o cliente. Mas numa versão muito mais anabolizada e complexa, com uma forte assimetria de informações entre comprador e vendedor e implicações éticas bem complexas.

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