A Índia possui uma indústria privada de tecnologias para vigilância que representa um mercado de US$ 2 bi e em crescimento exponencial. Estima-se que alcançará US$ 8 bi até 2028, fruto da maciça encomenda de soluções pelo Estado. É um misto de empresas já estabelecidas, inclusive estrangeiras, que atuam e produzem no país e, principalmente, numerosas startups que oferecem diversos serviços, como reconhecimento facial.
As parcerias público-privadas para coleta e tratamento de dados pessoais dos cidadãos não parecem algo corriqueiro para a população indiana, o que gera certa apreensão, principalmente entre especialistas, pesquisadores e lideranças da sociedade civil. Ao mesmo tempo, a abordagem do mercado tenta criar vínculos pessoais. As campanhas publicitárias das empresas e corporações envolvidas trabalham com sentimentos e até preconceitos para vender soluções que, em teoria, ajudariam a tornar a polícia mais eficiente e as cidades mais seguras.
É o que observa a pesquisadora Shivangi Narayan, engenheira, jornalista e socióloga com experiência em estudos do policiamento digital, participante do projeto AGOPOL (Algorithmic Governance and Cultures of Policing: Comparative Perspectives from Norway, India, Brazil, Russia, and South Africa).
Os resultados de sua pesquisa etnográfica, realizada entre 2021 e 2022, foram publicados no artigo “For Your Own Safety’: The Soft Push of Surveillance by the Private Sector in India”, que faz parte do livro Policing and Intelligence in the Global Big Data Era.
“A indústria cria uma demanda por tecnologias de vigilância tanto de forma aberta como dissimulada. Se apoia em ideias existentes no imaginário popular e em ideologias dominantes, além de apostar em crenças, ansiedades, dúvidas ou mesmo em superstições do seu público-alvo. Um exemplo é a manipulação dos receios em relação às religiões minoritárias na Índia, principalmente a muçulmana. Ou sobre a frustração com a eficiência do setor público, ou sobre a necessidade de ‘salvar a família’ ou proteger a ‘honra das mulheres'”.
Uma das empresas é a Hyperverge, que está envolvida com o sistema de reconhecimento facial fornecido para a polícia de Nova Deli. O sistema foi incorporado como forma de tornar o policiamento mais eficiente, com capacidade de detectar criminosos a partir de câmeras em locais públicos. Entretanto, as falhas de detecção são admitidas pela própria empresa fornecedora, cujos dispositivos não são capazes de diferenciar entre um menino e uma mulher caso a distância seja um pouco maior que alguns metros, por exemplo.
Apesar disso, no discurso das autoridades, alguns casos como a detecção e reconhecimento de pessoas envolvidas em protestos – e principalmente os que tem motivações políticas e religiosas em função do Islamismo -, são suficientes para justificar e atestar a efetividade das tecnologias.
Outra grande iniciativa implantada em toda a Índia foi a identificação única através da Autoridade de Identificação Única da Índia (UIDAI) ou Aadhaar. Trata-se de um sistema de 12 dígitos que funcionam como identificadores dos cidadãos, e que também permite a conexão com outros sistemas, como de pagamentos instantâneos com leitura biométrica, ou reconhecimento facial para uso nos aeroportos. “O Aadhar foi a porta de entrada do setor privado no setor público”, relata a pesquisa. Um dos fundadores da Infosys, que projetou esta tecnologia, Nandan Nilekani, tornou-se chefe da UIDAI e modelou boa parte das políticas públicas relacionadas à identificação digital no país.
O Aadhaar criou uma operação gigante, com todos os dados dos cidadãos, sendo operado por uma série de empresas privadas. Porém, a gigantesca população indiana acaba nem sempre tem a mesma qualidade de acesso aos serviços públicos em função de diversos problemas na implementação dessa transformação digital, seja por conta dos limites na infraestrutura ou mesmo pela cultura de uso envolvida nas novas tecnologias – semelhante o que retratou o filme inglês “Eu, Daniel Blake”, do diretor Ken Loach, numa comparação no contexto indiano. Se, contudo, confrontados com os efeitos colaterais causados pela implementação dos dispositivo, os executivos das empresas se eximem de responsabilidade.
“Quando questionados sobre o aspecto excludente do Aadhaar e outros, os executivos alegaram que apenas construíram a tecnologia e não tiveram nenhum papel na forma como ela foi usada”.
Como afirma a autora da pesquisa, as tecnologias utilizadas na segurança criaram um hype e expectativas que não tem a ver com a realidade dos produtos. Para além disso, há um vácuo de responsabilidade em que as empresas não se inserem no ecossistema de implementação, revisão e melhoramento das políticas das suas tecnologias, relegando esse papel ao Estado. Esse arranjo fica confortável para as empresas, que ficam com a tarefa de criar, vender e lucrar com as soluções, sem se preocupar com as consequências.
“O mais surpreendente é que a principal característica dessa indústria é a forma como ela insiste em não ser produto de uma determinada cultura, em não ser impactada pela cultura ou pela sociedade, ou então, a forma como se distancia repetidamente do próprio ambiente em que trabalha e que molda, situando-se fora da cultura e dentro de um ambiente puramente imaginário, racional, imparcial, neutro e tecnocrático.”
Imaginar que há relação com a operação de políticas de segurança que ajudam a decidir sobre vítimas e culpados, ou sobre quem tem acesso a alguns serviços do Estado, faz pensar que é preciso que as tecnologias estejam sob escrutínio democrático. Isso sugere a necessidade de processos de participação e transparência urgentes para a implementação destas políticas públicas, principalmente no Sul Global.
Para ler o artigo: https://doi.org/10.1007/978-3-031-68326-8_6
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Esta nota faz parte do projeto “Inteligência Artificial e Capitalismo de Vigilância no Sul Global”, financiado pela Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade e realizado pelo Labjor - Unicamp | Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo