O conceito moderno de soberania versa sobre a prerrogativa dos países terem suas fronteiras respeitadas, serem reconhecidos como politicamente iguais e administrarem seus próprios territórios, sem interferência externa.
Essa concepção foi moldada significativamente após o Tratado de Vestfália, assinado em 1648, e é considerada um dos marcos do início da Idade Moderna ocidental e das Relações Internacionais. O Tratado consistiu em uma série de acordos que encerraram a Guerra dos Trinta Anos na Europa, envolveu diversos países da região e foi motivado por disputas religiosas, políticas e territoriais.

Imagem gerada por inteligência artificial generativa utilizando palavras-chave: India, Paquistão, IA, colonialismo digital
Com a internet, as fronteiras pareceram tornar-se cada vez mais borradas. Os fluxos de dados podem transitar sem levar em conta as fronteiras nacionais. “Vocês não têm soberania sobre onde nos reunimos”, escreveu o ativista John Perry Barlow na Declaração de Independência do Ciberespaço, em 1994.
Entretanto, a ascensão das big techs nas últimas décadas fez emergir uma monopolização dos serviços e da infraestrutura da rede, trazendo de volta a discussão sobre fronteiras, agora para o mundo digital. Além disso, a vigilânciase coloca no centro das preocupações sobre justiça digital, dado seu funcionamento como motor da nova economia conectada. Por fim, muitos defendem que o colonialismo digital é uma forma repaginada de exploração e extração de valor por meio das grandes empresas de tecnologia dos países do Norte.
Nas últimas décadas, um novo aparato legal foi sendo construído com o objetivo de, ao menos, delimitar, ainda que minimamente, as fronteiras digitais no que se refere aos direitos humanos e à privacidade, bem como às obrigações que corporações transnacionais precisam cumprir em cada território. No artigo “From Sovereignty to Surveillance: The Legal Landscape of ‘Digital Colonialism’ in India and Pakistan”, publicado na revista Vietnamese Journal of Legal Sciences, o pesquisador Muhammad Imran Ali analisa o cenário da Índia e do Paquistão. Ele é vinculado à Universidade Lahore Leads, no Paquistão, e também realiza comparativos com países como Brasil, Vietnã e Nigéria em sua pesquisa.
Segundo o pesquisador, há uma forma moderna de colonialismo que se materializa na Índia e no Paquistão pela dependência tecnológica de corporações externas, como Google, Facebook, Amazon e outras big techs. Essas empresas exercem controle sobre recursos digitais desses países, gerem parte dos dados governamentais e são responsáveis por boa parte da infraestrutura digital local. “Dados estrangeiros armazenados em qualquer lugar do mundo permanecem acessíveis às autoridades policiais dos Estados Unidos por meio da Lei CLOUD Act, o que demonstra o conceito de soberania digital extraterritorial”, afirma Ali. O Cloud Act (Clarifying Lawful Overseas Use of Data Act) é uma lei dos EUA que permite às autoridades policiais estadunidenses obter acesso a dados armazenados por empresas americanas em qualquer lugar do mundo, mesmo que os dados estejam armazenados em outros países.
No caso da Índia, a governança digital se baseia principalmente em duas leis: o Information Technology Act, de 2000, e o Digital Personal Data Protection Act (DPDPA), instituído em 2023. Ainda que as normas prevejam que os controladores mantenham os dados pessoais armazenados no país, essas exigências seriam frágeis e exerceriam pouca influência sobre corporações estrangeiras que operam fora do território indiano, mesmo que continuem vendendo e extraindo dados dos cidadãos naquele país.
O governo indiano também está sujeito ao CLOUD Act estadunidense ao recorrer aos serviços da Amazon Web Services (AWS) e Microsoft Azure para hospedar seus sistemas. Isso ocorre principalmente no setor educacional, mas também se repete quando o país importa sistemas de linguagem de larga escala (LLMs) para operar serviços de IA. São esses os caminhos que percorrem o “colonialismo digital indiano”, segundo Ali.
O caso do Paquistão é ainda mais preocupante. Apesar de o país ter apresentado um projeto de lei sobre proteção de dados pessoais em 2023 (Personal Data Protection Bill), o texto ainda não foi aprovado pelo parlamento. Além disso, o governo opera ferramentas de monitoramento da rede e sistemas de identificação por biometria fornecidos por empresas estrangeiras.
A luta contra o “colonialismo digital” no Paquistão exigiria três camadas, segundo Ali: “um esforço de construção de capacidade tecnológica local, medidas de reforma regulatória e uma organização independente que monitore as empresas de tecnologia estrangeiras”. Medidas que, obviamente, demandam tempo, investimento e força política para que possam apresentar resultados. Por enquanto, o colonialismo digital no Paquistão continuaria sendo uma expressão do imperialismo tecnológico que compromete a independência nacional, segundo o pesquisador.
Mas haveria bons exemplos a partir do Sul Global? Ali considera que Nigéria, Brasil e Vietnã demonstram avanços importantes que poderiam ser copiados ou adaptados pelos países analisados por ele. As legislações de proteção de dados da Nigéria e do Brasil, respectivamente, poderiam inspirar formas para que Índia e Paquistão conquistassem mais autonomia, ainda que esses casos também apresente pontos fracos. O caso do Vietnã, com sua legislação de Cibersegurança de 2018, demonstra que pode haver formas de supervisionar a atuação das empresas, principalmente no que se refere aos dados pessoais.
É claro que essa equação — entre big techs imperialistas do Norte e sua ação extrativista e colonialista no Sul — não será reequilibrada apenas com dispositivos legais. A força da lei reflete as tensões e os limites em um sistema político e econômico mais amplo que, por ora, tem sido desvantajoso para os países periféricos. Entretanto, o que Ali demostra é que há alguns pequenos caminhos possíveis para a resistência, que podem proporcionar uma relativa autonomia nesse cenário.
Para ler o artigo: https://sciendo.com/article/10.2478/vjls-2025-0005