Na gameficação, quem trabalha é você

por Rafael Evangelista em 10 de fevereiro de 2014, zero comentários

Gameficação é uma palavra que virou meio moda e que serve para marcar diversas iniciativas que fazem uso de componentes presentes em jogos para deixar legais algumas coisas chatas. Newsgames, por exemplo, seriam a criação de gráficos e elementos interativos que permitiriam um maior envolvimento do leitor na fruição de uma notícia. Aplicativos bem comuns como o Foursquare, tem elementos jogáveis, como aquelas tacinhas idiotas e o título de “prefeito” que você ganha por fazer check-ins sucessivos em alguns lugares.

Mas, amigos, no fim do ano o Google introduziu um joguinho de Android que deixou a parada meio séria.

O Ingress junta um mapa real das cidades, com as ruas, endereços e pontos turísticos e de lazer, com uma dimensão paralela jogável. Você interage nessa dimensão jogável, só que andando fisicamente pela cidade com seu celular e seu GPS ativados. As informações que você insere, contudo, “funcionam” no mundo real, são aproveitadas por outros aplicativos Google.

O enredo da brincadeira é mais ou menos assim. Tem uma energia ALIENígena pela Terra e a humanidade se dividiu em dois grupos: os enlighted (doravante denominados illuminati, pelo óbvio motivo de ser mais legal); e os resistance, a resistência. Os illuminati acham que essa energia pode ser uma boa e abraçam seu uso. A resistência é mais desconfiada e mandou um ~fora haoles~ para os aliens, combate a energia. Na verdade, essa história é um pretexto para dividir os jogadores em dois grupos e colocá-los em disputa.

A briga é em torno do domínio de “portais”, que são pontos turísticos da cidade, murais, grafites, bibliotecas, estações de ônibus e trem etc. Você bate uma foto e sugere que tal ponto seja um portal. O povo do Google aprova e aquele portal se torna disponível como neutro. A equipe que chegar primeiro, fisicamente, a esse portal passa a controlá-lo. À outra equipe resta fazer ataques periódicos a esse portal (também aproximando-se fisicamente) tentando dominá-lo – o que se resolve de acordo com a pontuação dos jogadores e o número de ataques, numa dinâmica de RPG.

Onde está o truque? Bom, com isso você passa a fazer check-ins frequentemente em vários pontos da cidade, check-ins que não faz no Foursquare, por exemplo, porque a gameficação ali é leve. Confira comigo o que diz esse analista sobre  o gás que o Ingress pode dar nos check-ins by Google:

“Embora os esforços anteriores do Google em serviços similares de check-in (como Latitude, e talvez o Hotpot) tenham sido abortados, Ingress é praticamente um gigante serviço de check-in. É um serviço de check-in em velocidade. No Foursquare o aspecto jogável é muito discreto (para não dizer que eles parecem estar se afastando dos elementos jogáveis), Ingress é um serviço de check-in que abraçou totalmente a ideia de competição entre os seus membros.”

Interessante ainda é a possível relação que o jogo pode estabelecer com alguns estabelecimentos comerciais. Mediante acordo financeiro, certas lojas poderiam se tornar portais, o que pode levar a um fluxo de pessoas a esses pontos. Estariam interessados no jogo, mas possíveis consumidores da loja.

“Ingress aparentemente semeou aproximadamente todos os 800 endereços da Jamba Juice [loja de sucos] como Portais. A não ser que você já tenha jogado o jogo, você pode não ver a implicação – este jogo realmente está dirigindo tráfego dos pedestres para lojas físicas de concreto!

Isso não é somente a construção de uma marca, isso aumenta a consciência da localização das lojas, assim como dirige tráfego real a elas.”

Na última semana, o Ingress adicionou uma nova modalidade de portal que retrata bem o objetivo de usar os jogadores como possíveis mapeadores de pontos turísticos ou de interesse. Isso aqui veio no último informe semanal do Ingress para os “agentes”.

“Então, o que se qualifica como um #PortalGem? É que o Portal que você anda até ele e diz: “Uau, eu nunca soube que existia isso aqui!” Ou “Essa descrição contém um fato muito legal e interessante que eu teria perdido se não fosse um Portal.” Para enviar uma #PortalGem poste uma foto, uma breve descrição e a localização de seu candidato a Portal no Google+. Certifique-se que a postagem é público e marque-o como #PortalGem e +NIAOps.”

Percebam que essa nova modalidade de Portal está especificamente voltada para mineração de um conhecimento que somente algum morador do local poderia ter. E, na dinâmica jogo, sugerir portais é uma ótima vantagem, pois os novos são mais fáceis de serem controlados.

Ou seja, você está lá jogando mas, ao mesmo tempo, também está: inserindo fotos e geolocalização de pontos turísticos a serem incorporados pelos serviços Google; repassando informações sobre fluxo em determinados pontos da cidade (eu, por exemplo, tenho atacado diversos portais que ficam no caminho entre meu trabalho e minha casa); e se torna alvo de uma publicidade muito bem focada e com alto potencial de retorno.

Aí vocês falam: “putz, Rafael, você também é chato pra cacete, é só um jogo inocente, os dados que eles utilizam são só uma contrapartida pela diversão que oferecem”. Pode ser, é natural pensar assim. Mas o ponto não é somente o jogo em si, é como o capitalismo informacional desse nosso tempo está se estruturando em esquemas como esse, em que a atividade (intelectual, os relacionamentos, o deslocamento físico) dos usuários dos sistemas são a força principal, a energia base, a partir da qual as empresas se valorizam e acumulam riquezas que, como sabemos, não vem do nada, são fruto de algum tipo de apropriação na ponta da cadeia.

Além disso, o debate sobre trabalho e diversão é extremamente atual. Todos queremos que nossos trabalhos sejam leves, fazer o que se gosta virou uma espécie de mantra para a geração que hoje entra no mercado de trabalho. Problema, resumindo, é que: nem todos podemos escolher nossos trabalhos tão livremente, isso normalmente é privilégio de uma classe; num trabalho “divertido”, em que aquilo “nem parece trabalho”, a relação trabalhista existente acaba nublada, o que é uma delícia para o patrão, que conta com uma força de trabalho que não se vê como trabalhadora mas “cumprindo uma missão de vida”. Porém, isso já é um assunto paralelo, embora tenha a ver com o tema do post. Então melhor recomendar dois textos sobre isso: este, em inglês, que trouxe o assunto à tona; e este, em português, que adicionou outra reflexão ao artigo original.

Ah… e no Ingress você me encontra com o user @ronniejamesdio e jogando pelos Illuminati 🙂

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