Em 2024, o Rio Grande do Sul enfrentou uma das maiores cheias de sua história. A cidade de Eldorado do Sul, na região metropolitana de Porto Alegre, ficou 97% submersa. Um ano após a tragédia, um dos anúncios sobre sua recuperação foi a instalação de um projeto para transformá-la em uma “cidade de data centers”, prevendo o investimento de R$ 3 bilhões pela empresa norte-americana Scala Data Centers.
O complexo irá consumir pelo menos 4,75 gigawatts de energia elétrica quando em pleno funcionamento, além de um volume ainda não estimado de água para resfriamento. Trata-se de um volume de energia superior à produção da terceira maior hidrelétrica do país, a de Jirau, equivalente ao consumo residencial de 40 milhões de pessoas.

Imagem gerada por inteligência artificial generativa utilizando palavras-chave: datacenter, grande escala
Este é apenas um exemplo no Sul do Brasil. A estimativa é que a demanda de energia triplique no eixo São Paulo-Campinas até 2030 para alimentar os data centers, cada vez mais necessários para processar a alta demanda dos algoritmos de Inteligência Artificial. A grande maioria desses empreendimentos é controlada por empresas estrangeiras, inclusive pelas próprias big techs, o que levanta questões relacionadas à soberania, à dependência tecnológica e ao colonialismo digital.
Essa discussão é apresentada no artigo “Inteligência artificial, data centers e colonialismo digital: Impactos socioambientais e geopolíticos a partir do Sul Global”, escrito por Renato Guimarães Furtado e Simone Evangelista Cunha, ambos pesquisadores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). O trabalho foi publicado no periódico Liinc em Revista, na edição especial do dossiê sobre “IA e a Questão da Soberania”. Os autores analisaram o desenvolvimento dos data centers no país nos últimos 12 anos e perceberam que, mesmo os empreendimentos nacionais, têm sido facilmente incorporados por controladores estrangeiros, em geral norte-americanos.
No Brasil, há um aumento considerável da instalação desses parques, devido às características de produção de energia limpa. Segundo Furtado e Cunha, há um nível de greenwashing, em que esse tipo de empreendimento é vendido como “sustentável”. Entretanto, ocupam áreas cada vez maiores, consomem muita energia e geram grande volume de descarte tecnológico para sua manutenção. Além disso, empregam poucas pessoas e, na maioria das vezes, elas nem estão no país. É a parte nada artificial da IA, exigindo escassos recursos ambientais para seu funcionamento.
“O desconhecimento sobre o uso anterior do espaço agora ocupado por data centers normaliza, material e imaterialmente, a noção de que a natureza é um mero receptáculo destinado a abrigar as estruturas e as máquinas da economia digital”, ponderam os autores.
Do ponto de vista geopolítico, a atuação das big techs no Sul Global aprofunda a dependência tecnológica e a desigualdade digital. Esse fenômeno dificulta o desenvolvimento de alternativas tecnológicas próprias, além de influenciar a agenda política local. Essa seria uma face do atual colonialismo digital, enquanto o território agora é ocupado para fazer funcionar os servidores das corporações do Norte Global.
É por esse viés que o trabalho discute a soberania digital. Partindo do pressuposto de que soberania é a capacidade de um Estado em controlar dados, tecnologias e infraestruturas digitais, os autores destacam a necessidade de se construir políticas públicas específicas voltadas à instalação de data centers, assegurando a gestão e o uso equilibrado dos recursos ambientais no contexto da crise climática. Considerando que soberania só pode ser exercida em seu próprio território, a alocação de espaço físico e de recursos naturais para os data centers torna a questão bastante concreta e palpável.
Recentemente, o Governo Federal aventou a possibilidade de criação de um programa chamado Redata, cujo intuito seria estimular a instalação de data centers no país, por meio da isenção de impostos para importação de insumos e para exportação de serviços para os beneficiários. O programa ainda não é público. Sua origem é do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, mas foi recentemente assumido pelo Ministério da Fazenda. Esse primeiro movimento consistiu em uma rodada de visitas e conversas justamente com as big techs, com a intenção de abrir caminho e moldar a proposta para atrair esses possíveis parceiros. As preocupações com a sustentabilidade ambiental ou com a soberania digital, apesar de constarem nos estudos iniciais, não estiveram na pauta nas primeiras declarações sobre a possível política pública — ao contrário do que Furtado e Cunha sugerem como passo necessário.
O Brasil é um dos países que concentra a grande parte dos data centers da América Latina mas um número pequeno em relação aos existentes nos EUA ou na China. Porém, pode se tornar o local onde se estimula a monocultura tecnológica do século: os data centers que rodam os algoritmos das IAs das big techs.
Link para o artigo: https://revista.ibict.br/liinc/article/view/7272/7049

Esta nota faz parte do projeto “Inteligência Artificial e Capitalismo de Vigilância no Sul Global”, financiado pela Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade e realizado pelo Labjor - Unicamp | Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo