Uma forma de entender a periferia, a base, é olhar para o topo da pirâmide, onde está e como se comportam os fluxos dos investimentos dos mais ricos. Nesse aspecto, os venture capital são um indicador de onde estão correndo os rios do ecossistema digital global. Portanto, olhar para as duas grandes potências – EUA e China – e suas maiores empresas e respectivos investimentos em IAs pode fornecer um termômetro como está a relação entre centro e periferia.
Um bom lugar para verificar isso é a Crunchbase, uma plataforma que fornece informações sobre investimento de empresas, de propriedade da TechCrunch. Foi isso que fizeram os pesquisadores Bruno Prado Prates, doutorando em Economia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e Tulio Chiarini, vinculado ao Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Eles se concentraram em entender grandes investimentos de capital de risco (os tais venture capital) das grandes empresas de tecnologia dos EUA e da China.
Os resultados do estudo foram publicados no artigo intitulado “Dependência na Era Digital: um ensaio sobre a divisão centro-periferia em Inteligência Artificial”, disponível no periódico Liinc em Revista, na edição especial que trata de questões de IA e soberania.
O artigo demonstra que, enquanto as maiores big techs dos EUA e China investem pesadamente em IA e setores estratégicos como software, saúde e e-commerce nos seus respectivos países, para América Latina e África sobram alguns investimentos em setores mais tradicionais como o financeiro e comercial, com desenvolvimento limitado de IA. Essa assimetria aprofunda a dependência tecnológica dos países periféricos e perpetua padrões desiguais de inovação global, segundo os autores.
Mas, ao mesmo tempo, há outros pontos muito importantes: as big techs norte-americanas investem pesadamente no mercado interno, enquanto as chinesas direcionam uma parte importante dos seus recursos – cerca de 40% – para os EUA. Uma parte da explicação é que empresas fortes chinesas como Tencent e Alibaba estabeleceram centros de pesquisa e desenvolvimento nos EUA.
É impressionante perceber que nenhuma empresa de IA na América Latina foi alvo de investimento de big techs e, ao mesmo tempo, quando há alguma aquisição é para uma estratégia extração de dados, como foi o caso da compra do Peixe Urbano pela Baidu. Um caso à parte é a Índia, que tem atraído mais da metade dos investimentos IA em relação ao resto dos países do Sul Global.
Os autores utilizam a perspectiva de centro-periferia de Celso Furtado para analisar e explicar a reorganização economica na Era Digital. Por esse olhar, a divisão internacional do trabalho se manifestaria entre países centrais, que apropriariam a maior parte do progresso tecnológico, e países periféricos, onde esse progresso beneficiaria amplamente os primeiros. O subdesenvolvimento não seria apenas uma etapa, mas como uma configuração que se reproduz a distintos níveis do crescimento, inclusive na área cultural e tecnológica. Os países periféricos assimilariam padrões culturais dos centrais sem a correspondente transformação social, perpetuando assim seu subdesenvolvimento. A escassez de capital de risco para empresas de IA nos países marginais refletiria esta ausência de desenvolvimento endógeno dessas tecnologias. Ao mesmo tempo, ocorre uma “sofisticação imitativa dos padrões de consumo” das economias centrais, reforçando sua dependência.
“Essa assimetria expõe um cenário de inovação desigual entre o centro e a periferia no contexto global da Era Digital. Embora a difusão da IA seja um fenômeno global, os padrões de investimento revelam disparidades regionais profundas, criando obstáculos para o desenvolvimento de trajetórias tecnológicas autônomas nos países periféricos. A perspectiva centro-periferia é uma abordagem valiosa para compreender a soberania em IA, evidenciando a contradição entre desenvolvimento e subdesenvolvimento. Essa visão permite identificar possíveis caminhos para que países periféricos se insiram na economia digital de forma mais soberana e menos dependente.”
O estudo de Prates e Chiarini tem suas limitações e eles mesmos fazem esse alerta. A principal é que há um certo viés da plataforma Chrunchbase por disponibilizar somente dados de um conjunto de empresas. É uma fotografia, uma amostra, mas não a totalidade. A outra característica que atrapalha é a impossibilidade de acessar os “valores exatos que cada plataforma digital investe em empresas ao redor do mundo”, ressaltam. Ainda assim, a análise apresenta uma ótima forma de verificar como os investimentos das principais empresas são direcionados, permitindo refletir como há uma grande diferença quantitativa e qualitativa dos recursos direcionados para a periferia, ou o Sul Global.
Link para o artigo: https://doi.org/10.18617/liinc.v20i2.7305

Esta nota faz parte do projeto “Inteligência Artificial e Capitalismo de Vigilância no Sul Global”, financiado pela Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade e realizado pelo Labjor - Unicamp | Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo