Quando uma startup nacional alcança a classificação de unicórnio, todos comemoram: a imprensa especializada, o governo e, claro, a própria empresa. Essa denominação indica que ela atingiu mais de US$ 1 bilhão em valor de mercado. São poucas que conseguem e se tornam referência para outras iniciantes.

Imagem gerada por inteligência artificial generativa utilizando palavras-chave: ifood, subimperialismo, big techs, sul global
O iFood, plataforma brasileira que iniciou sua atuação no ramo de entrega de comida, alcançou essa marca em 2018 e, desde então, se expandiu – e, recentemente, encerrou – seus negócios para outros países da América Latina. Hoje é considerada uma empresa consolidada no ramo de “foodtech”, com mais de 400 mil entregadores vinculados, competindo com outras gigantes como a UberEats.
Mas ser grande regionalmente, estabelecendo o mesmo modelo de negócio das big techs, também pode dizer mais sobre os países que se colcocam entre as nações hegemônicas do Norte e os países explorados no Sul.
Segundo Kenzo Soares Seto, pesquisador vinculado ao Programa de Comunicação e Cultura da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), esse é um papel subimperialista, uma posição intermediária e de relevância regional. Esta afirmação está no artigo “Platform sub-imperialism”, publicado na edição temática Critical Data Studies in Latin America do periódico Big Data & Society.
O trabalho usa os estudos de Ruy Mauro Marini, que analisou o Brasil e a região na década de 1970, e os conjuga com teorias contemporâneas sobre capitalismo de plataforma. A ideia é que, já naquela época, os países latino-americanos se organizavam para garantir a reprodução do capital das nações capitalistas centrais, e que o desenvolvimento desigual de algumas nações regionais — no caso do Brasil — faziam com que procurassem os mercados próximos para se expandir, sem necessariamente rivalizar com os países centrais. Esse fenômeno é que Marini chamou de subimperialismo — industrial, no caso —, alinhado ao entendimento sobre o capitalismo dependente, em ascensão na época.
O subimperialismo de plataformas é percebido por meio de novas evidências. O Brasil concentra os maiores pontos de troca de tráfego de Internet (IX) do continente, possui uma vasta mão de obra qualificada e oferece uma grande infraestrutura digital para armazenamento e tratamento de dados: ativos imprescindíveis para a era digital.
Assim como outras empresas fortes no setor de tecnologia, o iFood se destacou ao assumir um papel de destaque na região. Atualmente, emprega mais de três mil cientistas de dados, investe cerca de 1,5 bilhão de dólares por ano em IA e é o oitavo aplicativo mais baixado do mundo em seu ramo. Isso gera mais de 20 bilhões de registros de dados por mês. Todos esses dados são fornecidos pela própria empresa.
Isso ajuda a revelar certas condições específicas desses tempos de capitalismo de plataforma que funciona no Sul Global. Uma delas é a geopolítica do trabalho. Apesar do avanço de regulações e legislações que outros países alcançaram, a situação para o iFood é confortável, sem a obrigação de vínculos, pagamento de salários fixos ou outras garantias para seus entregadores. Isso aumenta a espoliação do trabalho e permite uma vantagem competitiva frente às outras big techs: seu custo operacional tende a ser menor no Sul Global. Essa característica ajuda a atrair investidores e, assim, expandir ainda mais sua operação, aumentando a proporção da exploração do valor por hora trabalhada.
São Paulo, onde o IFood tem seu datacenter, aparece como o único hub sul-americano entre os 25 principais hubs globais de fluxos de dados, reforçando as bases estruturais do subimperialismo de plataforma do Brasil. No caso específico do IFood, há uma dupla produção de valor pelo trabalho não pago: uma primeira gerada em função da entrega propriamente dita e a segunda a partir da datificação do trabalho, que ajuda a aprimorar rotas, escolher os entregadores e treinar seus algoritmos. O resultado disso é o aprofundamento da superexploração.
A pesquisa aponta que há a necessidade de uma importante reflexão sobre políticas nacionais que visam apoiar “campeãs” ou unicórnios como modelo, ou seja, uma abordagem crítica. A grande questão colocada — ressaltada pela hipótese de pesquisa do OPlanoB — é que o Capitalismo de Vigilância no Sul Global é reproduzido em suas características de exploração e espoliação, não sendo apenas o lugar de extração de valor pelo colonialismo digital. O que não sofre abalo é a superioridade do Norte, nem nas tecnologias e nem no seu modelo econômico de exploração a partir de plataformas.
O autor do artigo, inclusive, reivindica uma abordagem classista e plurinacional para as políticas públicas nacionais regionais, para que o setor não reproduza continuamente o subimperismo entre seus vizinhos. Ao mesmo tempo, o estudo de caso sobre o iFood é intrigante, pois, depois de expandir-se para vários países vizinhos, a empresa foi encerrando os seus negócios nos países latino-americanos para concentrar sua atuação no Brasil, inclusive com novas aquisições locais, o que pode sugerir que as condições em outros países se revelaram menos vantajosas que por aqui.
Para ler o artigo: https://doi.org/10.1177/20539517241249410