Quando se trata das transformações do trabalho causadas em função da introdução das big techs, logo vem à mente a chamada uberização.
Contudo, ela não acontece de forma igual em todo lugar, especialmente no Sul Global. Por aqui, ela se combinou e se ressignificou com outras formas existentes de trabalho precário, instáveis, que já estavam à margem da economia formal. Há uma incorporação desigual do trabalho no capitalismo de plataforma em escala global, que, em última análise, até proporcionou alguma formalização, mas não com menos exploração.

Imagem gerada por inteligência artificial generativa utilizando palavras-chave: uberização, big techs, sul globalÉ o que o pesquisador Federico De Stavola, da Universidade de Bérgamo, na Itália, chamou de “uberização diferencial” no artigo “Labour super-exploitation in differential uberisation: A Latin American perspective on the platform economy”, publicado no periódico Platforms & Society.
O estudo usa uma abordagem crítica do pensamento latino-americano, fazendo referência ao teórico brasileiro Rui Mauro Marini. Diferentemente do Norte Global, onde a uberização contribui para a erosão das proteções trabalhistas, no Sul ela tende, até de certa forma contraditória, a trazer alguma previsibilidade às condições de trabalho pré-existentes, intensificando a superexploração do trabalho e a produção de mais-valor. A diferença é que as plataformas teriam trazido uma aparência de modernidade e de suposta autonomia.
A pesquisa de campo decorre de uma etnografia entre entregadores por aplicativo na Cidade do México e, complementarmente, em Buenos Aires e Bolonha, entre 2018 e 2023. “Buenos Aires aprimorou a análise da dinâmica regional, enquanto Bolonha, como um local não pertencente ao Sul Global, ilustrou como as economias de plataforma se adaptam a diferentes condições estruturais”, segundo o autor. Na pesquisa, foram entrevistados trabalhadores entre 20 e 50 anos que exerciam uma jornada exaustiva, de cerca de 9 horas por dia em até 7 dias por semana. A vivência em campo foi fundamental e teve que ser adaptada às condições apresentadas durante a pandemia global. É nesse contexto que De Stavola aprofunda o entendimento sobre a superexploração específica perpetrada pelas big techs.
Para Karl Marx, o pensador clássico da sociologia reconhecido por criar a teoria do valor do capitalismo, para aumentar a extração da mais-valia seria necessário ou aumentar a jornada de trabalho, ou aumentar a produtividade por meio de melhoramentos técnicos. A ideia de superexploração adotada pela teoria da dependência, na qual o autor do artigo se inspira, é mais radical: para aumentar a extração de mais-valia, as empresas pagam ao trabalhador do Sul Global menos do que ele precisa para viver.
Não seria só uma questão de pagar pouco, mas de pagar tão pouco que o dinheiro não cobre o custo necessário para a pessoa continuar sobrevivendo e, portanto, precisa improvisar. Para que esse ciclo se torne viável, é preciso que alguns custos sejam absorvidos pelo trabalhador através da sua precária rede de apoio – como os gastos com saúde, o trabalho doméstico ou a manutenção do seu equipamento de trabalho, por exemplo. “… uma ampla gama de formas heterogêneas de “se virar” permite que a população trabalhadora sobreviva por décadas e organize uma existência econômica viável”, complementa o autor do artigo.
Na era do trabalho em plataformas, há muito trabalho não pago. As horas que o trabalhador precisa ficar disponível para atender ao sorteio do algoritmo não são remuneradas. Mas, além disso, e talvez o que definitivamente personifica a superexploração, há uma transferência de custos das big techs para o trabalhador: os meios de produção atuais – a mochila, a moto, a bicicleta, o celular – são financiados pelos entregadores com seus parcos recursos. Isso ajuda a engordar o lucro da plataforma.
A empresa reduz o que ela gastaria com frota, manutenção, equipamentos, que no jargão marxista é o capital constante, e também economiza em benefícios – seguros, custos indiretos – que fariam parte do capital variável. O lucro aumenta porque os custos da empresa diminuem e quem paga essa conta é o trabalhador.
A parte do dinheiro que deveria ir para o consumo e para a reprodução da vida do trabalhador é desviada para cobrir os custos de capital da plataforma. De Stavola calculou, num exemplo, que só por transferir 10% dos custos a taxa de lucro da plataforma poderia saltar mais de 20%. Um ganho enorme, que está sendo extraído diretamente do patrimônio e do bem-estar do trabalhador.
A superexploração nesse modelo uberizado é particularmente perversa, porque ela consegue extrair valor, não só do tempo que a pessoa está trabalhando ativamente, mas também da sua vida pessoal, do tempo de descanso e cuidado que precisaria para se manter saudável e produtiva. No fim das contas, os trabalhadores acabam subsidiando a sua própria exploração, mesmo em condições já fragilizadas do contexto do Sul Global.
As plataformas de entrega revivem e reconfiguram a extração de mais-valia, transferindo valor das esferas pessoal e reprodutiva dos trabalhadores para o capital. Esse princípio oferece uma compreensão mais ampla de como as tecnologias digitais intensificam e possibilitam novas formas de extração de valor.
Esta pesquisa converge com uma das hipóteses da pesquisa do OplanoB, que explora o Capitalismo de Vigilância no Sul compreendendo as especificidades locais, no Sul, como uma das condições para o desenvolvimento desse regime
Para ler o artigo: https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/29768624251338613

Esta nota faz parte do projeto “Inteligência Artificial e Capitalismo de Vigilância no Sul Global”, realizado pelo Labjor - Unicamp | Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo. Conta com o apoio da Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade (LAVITS) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), pelo Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (Mídia Ciência).
