A Somalilândia é uma região no Chifre da África, parte oficialmente da Somália, mas que conquistou sua independência no início da década de 1990. Com um passado marcado por colonizações europeias, o país construiu frágeis instituições de saúde, muitas delas com auxílio de programas internacionais tocados por seus antigos colonizadores.
Uma dessas iniciativas é o MedicineAfrica, uma plataforma digital privada, sem fins lucrativos, baseada em Oxford, na Inglaterra, que se propõe a conectar médicos do Reino Unido, que atuam como tutores, com estudantes de medicina na África. A plataforma é online mas foi adaptada para funcionar em contextos de baixa conectividade, como no caso da Somalilândia. Funciona com diferentes recursos, ferramentas e interfaces de interação, desde recursos de fórum (com textos e imagens) que funcionam offline e, mais recentemente, permitiu que áudio, vídeos e videoconferências sejam utilizados.
O objetivo da plataforma é levar conhecimento médico sobre procedimentos e técnicas para países que dispõem de pouca estrutura na formação de novos profissionais na área. Entretanto, essa troca de experiências pode gerar um resultado chamado “colonialismo epistêmico”, que significa reforçar o processo pelo qual o conhecimento anglo/eurocêntrico é transferido, introduzido e adotado como conhecimento científico legítimo nos locais onde é utilizado.
Três pesquisadores realizaram uma pesquisa qualitativa, entrevistando cerca de 40 estudantes que utilizaram a plataforma entre 2020 e 2021. O estudo se chama From ‘making up’ professionals to epistemic colonialism: Digital health platforms in the Global South e é assinado por Dimitra Petrakaki, professora da Universidade de Sussex Business School, na Inglaterra, Petros Chamakiotis, Professor da ESCP Business School, na Espanha, e Daniel Curto-Millet, Cientista da Computação e Cientista Social da Universidade de Gothenburg, na Suécia. Os resultados do trabalho foram publicados na Social Science & Medicine, que se dedica a assuntos sobre saúde e ciências sociais.
Segundo os achados da pesquisa, o colonialismo se manifesta inicialmente na língua, já que toda a comunicação na plataforma é realizada em inglês. Mas, também se reflete no choque entre as culturas ocidental e local, na forma de se pensar como a doença e a cura são percebidas, nas formas de comunicação recomendadas entre médicos e pacientes e, por último, na adequação na realização dos procedimentos ou exames ensinados, em virtude das disponibilidades de infraestrutura local.
“O que os tutorados aprendem sobre ser um bom médico nem sempre é aplicável o que acaba por frustrar ou alienar os profissionais de saúde da sua realidade quotidiana e das expectativas locais. É essa alienação nas relações de poder/conhecimento que constituem o núcleo do colonialismo epistêmico digital”, afirmam os autores da pesquisa.
Ainda assim, a relação não é apenas unidirecional. Durante as entrevistas, os pesquisadores também perceberam que há um certo nível de apropriação e uma negociação com a realidade local por parte dos tutorados, permitindo também a crítica sobre o próprio modelo da MedicineAfrica: “os dados das nossas entrevistas indicam que os estudantes não eram apenas receptores passivos do conhecimento que lhes era transferido. Em vez disso, tiveram a capacidade de refletir sobre essas diferenças e de serem seletivos sobre o que pretendiam adotar”.
Este tipo de pesquisa nos permite verificar que o colonialismo digital não se dá apenas por estruturas das grandes plataformas globais, mas também é incorporado e transmitido em relações de poder em serviços específicos e especializados.
Para ler o artigo: https://doi.org/10.1016/j.socscimed.2023.115787
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Esta nota faz parte do projeto “Inteligência Artificial e Capitalismo de Vigilância no Sul Global”, financiado pela Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade e realizado pelo Labjor - Unicamp | Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo