Olaudah Equiano foi um marinheiro de origem nigeriana que viveu na metade final do Século XVIII em diversas colônias britânicas. Foi capturado e escravizado ainda criança e rebatizado de Gustavus Vassa na Virgínia, nos Estados Unidos. Conseguiu comprar sua própria liberdade já adulto e se tornou escritor, contando sua trajetória de vida, tendo um um papel relevante no movimento abolicionista inglês.
Foi exatamente o nome de Equiano que o Google escolheu para seu cabo de fibra óptica submarino, instalado em 2023, que passa por seis diversos países na costa da África. O porto das Ilhas de Santa Helena é um importante local de chegada de diversos cabos, no mesmo local que serviu como um porto de trânsito de escravos até a década de 1860.
A utilização de cabos submarinos é uma infraestrutura essencial para a conectividade global da Internet, muitas vezes chamados de “espinha dorsal”. São por eles que trafegam a maior parte dos dados da rede entre os continentes, muito embora haja também conexões por satélites, mas que não conseguem oferecer as mesmas velocidades. Entretanto, este tipo de infraestrutura é dominada por poucas grandes empresas e, em muitos casos, em projetos patrocinados pelas principais big techs.
Há uma lógica colonial que se repete na instalação destes cabos na África, em especial nos casos de Google e Meta, que instalaram o cabo Equiano e o 2Africa, respectivamente. É o que as pesquisadoras Esther Mwema, Mestre na London School of Economics and Political Science, na Inglaterra, e Abeba Birhane, Professora Assistente na Escola de Ciências da Computação e Estatística na Trinity College Dublin, na Irlanda, demonstram em um artigo publicado na revista acadêmica First Monday, intitulado “Undersea cables in Africa: The new frontiers of digital colonialism”.
As autoras fizeram uma genealogia da história dos cabos submarinos desde os cabos teleféricos do século XVII até os atuais de fibras ópticas. Os argumentos em favor da conexão apresentados atualmente se colocam como um “salvacionismo branco”, pois a conexão à Internet rápida poderia pretensamente ajudar diminuir o fosso digital entre África e as nações desenvolvidas. As linhas de cabos submarinos de 2023 seguem as mesmas rotas que as linhas telegráficas submarinas de 1901, “beneficiando desproporcionalmente as potências ocidentais, enquanto as partes interessadas africanas têm pouca voz ou controle”, segundo as autoras.
Os cabos submarinos de Google e Meta são financiados e operados por outras empresas parceiras, em condições nem sempre transparentes, com detalhes são desconhecidos. “A complexidade e a opacidade desses esquemas são fundamentais para proteger Google e Meta de escrutínio, supervisão e responsabilização”, alerta o estudo.
“A falta de legislação dá ao Google e a Meta um controle quase ilimitado sobre o que fazer no continente. Ocasionalmente, os Estados africanos alteram as suas políticas para se alinharem com os modelos de negócio e objetivos definidos pelas empresas, organizações ou Estados ocidentais. O modelo de dívida, neste caso, manifesta-se de múltiplas formas: Espera-se que as estações de cabos paguem ao Google e a Meta para utilizarem os cabos, embora sejam instalados em águas africanas, ao mesmo tempo que criam múltiplas formas de dependência. Muitas vezes, os povos africanos não estão conscientes da sua exploração pelas políticas egoístas impostas pelas organizações ocidentais que comprometem a soberania e o desenvolvimento de África. A este respeito, o colonialismo tradicional espelha o colonialismo digital, pois é uma das fronteiras sobreviventes da dominação colonial que sustenta a dependência dos antigos países colonizados pelo Ocidente, através da importação de hardware, software, engenheiros, protocolos de informação e conhecimentos especializados.”
A governança pouco clara destas infraestruturas é um desafio. O Brasil anunciou um projeto, em 2022, de estender um cabo entre Ásia, Oceania e América do Sul, como uma política pública. Grandes potências no Norte Global definem prioridades para o controle dos cabos como uma questão de segurança nacional.
O colonialismo digital seria uma disputa do século XXI pela África em continuidade às políticas colonialistas do passado. Se estabelece assim um novo modelo que mantém as nações africanas sob dívida pela infraestrutura de conexão ofertada de forma privada.
“A economia digital, que se baseia na extração e manipulação de dados, tornou possível às grandes tecnologias explorarem as infra-estruturas de informação e os dados africanos sem o consentimento e (muitas vezes a consciência) das pessoas. A infraestrutura orientada a dados está incorporada na colonialidade. A coleta de dados sobre informações populacionais e territoriais, usadas para para monitorar, controlar e gerir as populações locais foram práticas que surgiram no auge do colonialismo. Os britânicos, por exemplo, implementaram tais práticas para controlar a Índia colonial e o apartheid na África do Sul.”
Mwema e Birhane concluem que seria necessário revisitar as regras internacionais de implementação dos cabos submarinos – como, por exemplo, o International Cable Protection Committee (ICPC), que datam de séculos e não tem participação multissetorial — bem como regulamentar a questão nos estados nacionais africanos, como forma melhorar a governança e a soberania dos países. Não menos importante, citam como fundamental renomear o cabo Equiano pela Alphabet, para que se possa respeitar a história e as lutas de Olaudah Equiano.
Para ler o artigo: https://doi.org/10.5210/fm.v29i4.13637
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Esta nota faz parte do projeto “Inteligência Artificial e Capitalismo de Vigilância no Sul Global”, financiado pela Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade e realizado pelo Labjor - Unicamp | Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo