“Explorador de dados” é o novo precário que alimenta as casas de apostas online

por Fabricio Solagna em 9 de dezembro de 2024, Comentários desativados em “Explorador de dados” é o novo precário que alimenta as casas de apostas online

Imagine um pequeno estádio de futebol num sábado ao meio-dia, onde ocorre um jogo da terceira divisão do campeonato estadual goiano. Não há um grande público, tampouco cobertura de imprensa ou transmissão ao vivo, mas duas pessoas registram dados do jogo freneticamente nos seus celulares: são dois data scouts ou exploradores de dados, que foram previamente contratados para fornecer dados da partida para serviços de apostas online.

Imagem gerada por inteligência artificial generativa utilizando palavras-chave: apostas online, futebol e IA

Para compreender esse fenômeno, o sociólogo Julio Souto Salom, professor de sociologia na Universidade da Bahia (UFBA), fez uma pesquisa entre os trabalhadores que fazem este tipo de coleta de dados, através de uma observação participante. O resultado foi publicado no artigo “Abasteciendo con datos las apuestas deportivas online: data scouts y extractivismo ampliado”, disponível na revista Athena Digital.

A pesquisa acompanhou o trabalho de alguns data scouts entre 2019 e 2020, cuja tarefa era extrair informações de jogos em diferentes campeonatos para alimentar os sistemas de apostas recorrentes, aquelas que permitem apostas enquanto o jogo acontece (in-play betting).

Há uma miríade desses serviços de apostas online e a todo momento elas invadem o horário nobre da televisão, patrocinam influenciadores, inundam as redes sociais com apelos constantes, tudo para convencer o público a “testar a sorte”. A cobertura de jogos e partidas é ampla, indo além do futebol. O explorador de dados é imprescindível para fazer girar a máquina, afinal “équem produz o fluxo de dados que move a anima o feed de dados da tela dos apostadores”, segundo Julio.

Com infraestruturas tecnológicas e apostando em persuasões psicológicas e culturais, esta modalidade influencia o comportamento do apostador. As plataformas de jogo permitem que a prática de apostas seja simultânea à visualização do evento. Isso modifica comportamentos e as motivações: em vez de considerar o resultado, o apostador confia mais na sua capacidade de analisar e prever eventos. Para manter a recorrência, torna-se imprescindível oferecer um catálogo infinito de partidas disponíveis para apostas ao vivo.

As plataformas de apostas online tiveram uma explosão no Brasil nos últimos anos. A liberação das bets se deu em 2018, por meio da lei nº 13.756, que na prática legalizou a exploração de apostas online sem pagamento de impostos e qualquer obrigatoriedade de retorno ao apostador. O tamanho do problema é tão relevante que um estudo do Banco Central identificou que os brasileiros chegaram a gastar mais de R$ 20 bilhões em apostas por mês neste último ano. Depois da repercussão, o governo federal publicou algumas normas adicionais a fim de estabelecer alguma regulação para atuação desse tipo de serviço. Uma CPI foi instaurada no Senado, depois que uma investigação policial envolveu artistas, influencers e as plataformas de apostas, em uma suposta lavagem de dinheiro.

O trabalho dos data scouts, não é recente, e está conectado a empresas estrangeiras, especializadas em dados, que contratam pessoas para coletar informações em campo e negociam os dados como atravessadores. Nos últimos anos, nomes como Perform Group, Sportsradar, Real Time Sports (RTS), Sportscast ou Genius Sports firmaram acordos os campeonatos, competições e, fundamentalmente, plataformas de apostas, com a tarefa de coletar, organizar, analisar e entregar dados desportivos em tempo real para sites como Bet365, Btwin, Sportingbet, Betfair, Betway e outras. Os data scouts é que fecham o elo e transformam as partidas em estatística, disponíveis em tempo real para os apostadores.

Os achados de Julio Salom demonstram que, em geral, os exploradores de dados têm empregos formais e o trabalho de dadificação é encarado como uma atividade secundária, ainda que os rendimentos desta operação possam facilmente superar os ganhos líquidos da sua fonte principal. Como os pagamentos são realizados em moeda estrangeira, o câmbio favorece. Cada jogo pode render até R$ 400,00 e facilmente uma pessoa pode cobrir dez jogos por mês. É um trabalho que exige habilidades mínimas em inglês para preencher os dados durante o jogo (ou para narrar acontecimentos, a depender de cada empresa). Praticamente todos os entrevistados possuem curso superior e uma relação longa no trabalho de dadificação. Em alguns casos, com histórico de quase uma década.

Diferente do que outros trabalhos em plataformas como Uber ou Ifood, o conhecimento prévio das necessidades desse tipo de trabalho faz diferença. Os data scouts se reportam a um coordenador direto e estabelecem laços de confiança, na medida que também podem propor jogos e/ou campeonatos para cobrir. Há uma certa organização geográfica para que não haja muita competição sobre quem irá cobrir as partidas numa mesma área. Por fim, a pesquisa também demonstra que há uma relação afetiva com o próprio esporte, ou seja, há um certo prazer em acompanhar as partidas e também receber por isso.

É interessante notar a especificidade desse trabalho. Ainda que a geração e coleta de dados sejam cada vez mais automatizados, seja por dispositivos vestíveis, seja pela capacidade transformação de vídeos em dados por meio de IAs cada vez mais precisas, ocorre que muitas vezes certas jogadas, características de certos jogadores ou da própria arbitragem, sejam mais facilmente interpretadas por esses olheiros que estão presencialmente nos locais. Além disso, alia-se a característica de que essa indústria precisa de uma imensa quantidade de dados de inúmeros jogos, muitos deles com pouca infraestrutura de transmissão, portanto exigindo o trabalho de campo.

O cenário pesquisado por Julio demonstra o que se categoriza por extrativismo expandido, no sentido de que todo e qualquer tipo de dado pode ser convertido, monetizado, a partir de sua exploração e disponibilização em plataformas. Os trabalhadores são uma ponta da cadeia, onde o objetivo é que cada vez mais pessoas depositem esperança em ganhar retornos na sua capacidade de predição no próximo acontecimento do jogo. É um jogo em que, no agregado, a banca sempre ganha e que ainda pode servir para trampolim de negócios mais escusos, como é o caso dos processos investigados no Brasil pela CPI.

Para os data scouts, continuam valendo as regras desse tempo de trabalho precarizado, de autogestão do tempo, da necessidade de dedicação e flexibilidade da jornada de trabalho e, obviamente, os laços precários, frágeis e os pagamentos pontuais.


Para ler o artigo da pesquisa, acesse: https://doi.org/10.5565/rev/athenea.3483

Lavits

Esta nota faz parte do projeto “Inteligência Artificial e Capitalismo de Vigilância no Sul Global”, financiado pela Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade e realizado pelo Labjor - Unicamp | Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo