A IA é o assunto do momento. Está incorporada nos serviços da internet, de navegadores a até buscadores. Logo não vai ser irreal pensar que, se você comprar uma geladeira, ela poderá vir com alguma IA incorporada.
Essa característica cada vez mais abrangente da IA pode ajudar a compreender como ela está reestruturando – ou intensificando – todas as dimensões da economia global, principalmente suas assimetrias.
Kai-Hsin Hung, pesquisador da Universidade HEC Montreal, no Canadá, propõe mapear a colonialidade do poder da IA no recente artigo “Artificial intelligence as planetary assemblages of coloniality: The new power architecture driving a tiered global data economy”, lançado na revista Big Data e Society.
O trabalho propõe analisar o cenário por meio de três camadas. A primeira corresponderia o nível global, sobre a nova bipolaridade das corporações digitais sino-americanas. No nível intermediário estariam as políticas industriais nacionais que financiam, desenham e desenvolvem mercados e talentos para se integrarem competitivamente às novas cadeias de valor. No último nível estariam os trabalhadores e usuários que, por meio da IA, impulsionam ainda mais a extração de valor de si próprios.

Imagem utilizada anteriormente pela Agência Brasil
O desafio teórico é pensar a IA em uma estrutura pós-colonial, como ela reproduz dependências ao constituir e estruturar uma arquitetura de poder desigual, que impulsiona uma economia que depende cada vez mais de extração de dados.
Para pensar as assimetrias globais, Hung apresenta evidências importantes: das cem maiores corporações digitais, 90% são norte-americanas ou chinesas, sobra só 10% para o resto do mundo. E mesmo entre os dois países líderes, a assimetria é gigante: enquanto as ocidentais Microsoft, Apple, NVIDIA, Alphabet , Meta e Amazon detém 70% do valor de mercado, do outro lado do mundo as corporações Baidu, ByteDance, Alibaba, Tencent, Xiaomi representam apenas 20%.
Essas empresas arquitetariam um poder global que envolve desde infraestruturas (cabos, satélites etc), padrões (hardware e software) e até os meios de governança. As elites desta camada provocam dependências e gargalos que condicionam a extração de recursos e valor do resto do mundo.
Na camada intermediária é onde figuram as políticas industriais dos países e onde se revelam as dependências horizontais. Mas mesmo nesse nível há diferenças visíveis: o autor usa como exemplo a Índia e o Canadá.
Enquanto a Índia adotou uma estratégia mais mecanicista de promover seu mercado de IA, apostando em produtos de menor valor agregado, como anotação de dados, o Canadá se posicionou como um aliado dos países do Atlântico Norte, investindo em pesquisas e desenvolvimento de produtos. Enquanto a Índia se reivindica ser a “garagem da IA” para o Sul Global, o Canadá alça vôos em modelos de linguagem para o ramo.
Na última camada é onde se desenvolvem as questões de trabalho, se intensificam as estratégias de exploração e extração de valor. É onde o trabalho é menos valorizado e mal distribuído, que acontece, na sua grande maioria, nas periferias econômicas. É nesse nível que as IAs são alimentadas com dados, treinadas a partir do uso intenso dos usuários e os trabalhadores são recrutados para tarefas simples, como anotação ou classificação de dados. “O Sul Global é visto como um mercado emergente para extração de dados dos bilhões mais pobres ou um beneficiário da IA para o bem social”, segundo o autor.
Haveria, portanto, um sistema entrelaçado de poder, verticalmente integrado entre camadas globais, intermediárias e locais, cada uma com suas dependências horizontais, que remodelam geografias, conhecimentos e governam corpos a fim de reforçar estratificações de valor e as lógicas neocoloniais.
A proposta de Hung coloca em evidência a organização e o desenvolvimento da IA a partir de suas dependências entrelaçadas, como um sistema planetário. As análises críticas da tecnologia, portanto, deveriam ir além das dependências mais imediatas – que ele chama de horizontais.
Dentro do contexto da pesquisa sobre o Capitalismo de Vigilância no Sul Global, um dos eixos que orientam a pesquisa bibliográfica deste OPlanoB, isso ajuda a pensar nas articulações de dominação, em diferentes níveis, que envolvem todo o desenvolvimento de políticas, tecnologias e de trabalho sobre a IA. O autor do artigo traz uma contribuição metodológica relevante propondo interpretar as questões de poder e dominação a partir um sistema orbital, envolvendo diversas camadas. Assim, fica mais evidente que políticas nacionais ou desenvolvimentos locais não brotam espontaneamente, nem tampouco são meras reproduções de países centrais. Ao mesmo tempo, colocar a China como um polo importante de convecção pode abrir uma série de outras questões para compreender as assimetrias internas ao Sul Global.
Para ler mais: https://journals.sagepub.com/doi/abs/10.1177/20539517241289443