Nos últimos anos, houve um grande esforço global em busca de parâmetros mínimos, em termos jurídicos, para a transformação digital, principalmente se tratando de privacidade. É o caso da General Data Protection Regulation (GDPR), na Europa, ou a Lei Geral de Proteção de Dados (LGDP), no Brasil. Não tem sido diferente na Nigéria, país que se destaca na África do ponto de vista de desenvolvimento econômico e uso de tecnologias digitais.
Recentemente, o país aprovou o Nigeria Data Protection Act (NDPA), ou o ato de proteção de dados nigeriano, e o Migration Information and Data Analysis System (MIDAS), ou o sistema de análise de dados e informações de migração. As duas legislações sofreram influência externa, reproduzindo conceitos e práticas de legislações do Norte Global – principalmente da lei europeia sobre proteção de dados. Entretanto, o MIDAS se destacou por incorporar questões pós-coloniais, mesmo que em uma legislação delicada de controle de fronteiras.
É sobre esse paralelo entre legislações que se debruça artigo publicado na revista acadêmica Social & Legal Studies, por Samuel Singler, da Universidade de Essex, e Olumide Babalola, da Universidade de Portsmouth, ambas instituições do Reino Unido. O periódico de excelência na área do direito nasceu com o compromisso de abordar questões feministas, anticoloniais e socialistas.
Os autores do artigo utilizaram uma metodologia qualitativa, com entrevistas realizadas com pessoas-chave em 2021. Entre essas pessoas, altos funcionários nigerianos e estrangeiros envolvidos com o tema no país. Além disso, também realizaram análise de dados coletados nos debates para elaboração das propostas legislativas.
Uma grande contribuição da pesquisa foi desafiar os aspectos pretensamente universais, que são promovidos globalmente por Estados e organizações internacionais do Norte. Um dos exemplos é o “direito à privacidade”, que pode se transmutar em discursos colonialistas ou interagir “com entendimentos e agências locais para produzir novas constelações de práticas legais e políticas em torno de direitos individuais”, segundo os autores. É nesse sentido que assinalam o quanto a NDPA foi fortemente influenciada pelos conceito europeus da GDPR, mesmo contrariando princípios da própria constituição nigeriana no que se refere a privacidade. Ao mesmo tempo, o MIDAS passou por um processo de incorporação de exceções que pudessem contemplar questões de privacidade condizentes com o regramento local.
Desde 2007, a Nigéria expandiu sua capacidade de coletar dados biométricos nas fronteiras usando o sistema MIDAS. Ainda que uma parte do discurso público tenha se concentrado na “modernização” na implementação desse sistema, o auxílio da Organização Internacional para as Migrações (OIM) também ajudou no convencimento de que o software seria vantajoso por ser menos dependente de corporações estrangeiras. O sistema da OIM é gratuito para seus estados-membros no Sul Global, por meio de projetos financiados principalmente por Estados do Norte Global.
Os autores deixam claro que o argumento do estudo “não é que os direitos de privacidade sejam de alguma forma indesejáveis”. Mas, “invocar a colonialidade do conhecimento relacionado aos direitos humanos universais visa problematizar a posição privilegiada reivindicada pelos atores do Norte para determinar como os direitos humanos devem ser conceituados”.
Para ler o artigo: https://doi.org/10.1177/09646639241287022
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Esta nota faz parte do projeto “Inteligência Artificial e Capitalismo de Vigilância no Sul Global”, financiado pela Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade e realizado pelo Labjor - Unicamp | Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo