Há quarenta anos, o presidente eleito Salvador Allende foi deposto num golpe de Estado no Chile. Em 11 de setembro de 1973, sitiado no palácio presidencial, sob fogo de tropas golpistas lideradas pelo general Augusto Pinochet, Allende teria se suicidado, marcando o início de uma ditadura que se estenderia por 17 anos.
Os horrores do regime de exceção chileno, marcado por dezenas de milhares de mortos e torturados e por centenas de milhares de exilados (e pelo enriquecimento meteórico de seu ditador) são conhecidos, tema de livros e reportagens e estudos. Não menos conhecida é a participação do governo dos EUA nisso tudo. E são coisas que não devem ser esquecidas mesmo.
Mas este texto trata de algo não tão conhecido do governo Allende: a criação de uma rede de comunicação que poderia ter sido o começo de outra internet.
Numa matéria recente da revista inglesa Red Pepper, é resgatada a história da Cybersyn (sigla que remeteria ao nome “Sinergia Cibernética”), um sistema de comunicação desenvolvido por Allende para descentralizar o fluxo e a gestão de informações e mercadorias.
A revista britânica lembra que, pouco antes de cair, Allende enfrentava um desafio: de um lado, construir um governo de esquerda que não emulasse o centralismo do modelo soviético; do outro, a ofensiva de uma direita interna (e continental) que, por conta da guerra fria, se delineava em traços bastante agressivos. Nesse esforço de elaborar uma estrutura de governo que permitisse gerenciamento horizontal, em rede, o grupo de gestores de Allende foi buscar inspiração no trabalho de um cientista britânico chamado Stafford Beer. No Guardian, Beer é lembrado da seguinte maneira:
Parte cientista, parte guru da administração, parte teórico social e político, (Beer) era alguém que havia ficado rico mas cada vez mais frustrado com a Grã-Bretanha dos anos 50 e 60. Suas idéias sobre as semelhanças entre os sistemas biológicos e artificiais — a maior parte delas expostas em seu livro “The brain of the firm” — fizeram dele um consultor junto a empresas e políticos britânicos. No entanto, esses clientes não costumavam adotar as soluções que recomendava do modo que ele gostaria, o que o levou a assinar cada vez mais contratos no exterior.
Na verdade, Beer se interessou tanto pelo projeto que foi para o Chile trabalhar com a equipe de Allende. Sob as ideias do pesquisador britânico, o governo do Chile implementou, entre 1971 e 1973, uma rede de comunicação que se desenharia como o sistema nervoso do sistema produtivo chileno, do chão de fábrica a escritórios de gerenciamento e gabinetes de governo. Uma arquitetura baseada em máquinas de telex e linhas telefônicas ligadas a computadores que, em sua versão beta, chegaram a interligar mais de um quarto da infraestrutura econômica do país. Uma rede cuja coordenação central ficaria delegada a um grupo de sete gestores alocados numa Sala de Operações com visores e cadeiras futuristas vermelhas.
O mais louco é que, pelo que levantei, parece que o sistema funcionava mesmo. Quando, em 1972, o Chile ficou travado com uma greve de transportes organizada pela oposição chilena com a ajuda da CIA, a Cybersyn foi acionada e permitiu que o governo reordenasse a produção e o tráfego de mercadorias ao redor do país. No texto da Red Pepper, eles explicam:
Quando o governo enfrentou, em 1972, uma greve de pequenos empresários conservadores apoiados pela CIA e um boicote de empresas privadas de caminhão, o abastecimento de alimentos e combustíveis ficou perigosamente baixo. O governo enfrentou sua mais grave ameaça frente ao golpe. Foi então que a Cybersyn se realizou de fato, e o governo de Allende percebeu que o sistema experimental poderia ser usado para contornar os esforços da oposição. A rede permitiu que seus operadores levantassem informações imediatas de locais onde a escassez estivesse maior, bem como onde se encontrariam os motoristas que não participavam do boicote, mobilizando ou redirecionando meios de transporte próprios.
Hoje isso pode parecer nada demais, mas em 1972 era mais ou menos como inventar uma nova versão do Google.
Na verdade, esse flerte da cibernética com o socialismo não é invenção chilena. O pai da coisa toda, Norbert Wiener, era bastante crítico da ideia de horizontalidade homem-máquina, e defendeu até o fim a ideia de que sistemas cibernéticos deveriam ser geridos essencialmente por agentes humanos, adaptados como ferramentas voltadas ao combate à desigualdade social — esse viés socialista fez dele, inclusive, um pesquisador bastante celebrado na União Sociética.
No fim, porém, a noção do que seria o ideal de interação homem-máquina defendida por Wiener acabou, em meados do século passado, obscurecida pela de seu parceiro de pesquisas tornado rival, John von Neumann, que acreditava numa lógica cibernética baseada numa igualdade de condições entre homens e máquinas – o que, ao longo do processo da evolução tecnológica, permitiria que os computadores se portassem como organismos que viessem a automatizar os espaços da interação humana. Mais ou menos como o que rola com os bots na Wikipedia, por exemplo.
Enfim. O bacana da internet é que você está sempre aprendendo alguma coisa nova.