Usar as digitais como identidade na Índia não é algo novo, e remonta ao início do século passado. Já o Aadhaar, atual sistema de identidade digital, é talvez a maior experiência mundial de uso de tecnologias para identificação e reconhecimento de pessoas em diferentes níveis, integrando identidade civil, assinatura digital, autenticação bancária, entre outros. É elogiado pela ONU e pelo setor financeiro pela capacidade de inclusão de milhares de pessoas e por ser supostamente mais seguro.

Imagem gerada por inteligência artificial generativa utilizando palavras-chave: Índia, IA, reconhecimento biométrico, colonialismo digital
Entretanto, alimenta também uma narrativa de “nacionalismo tecno-cultural”, ainda que opere com uma lógica semelhante à dos sistemas do Norte Global. Há diversas preocupações sobre vigilância e controle, como esse sistema pode aprofundar outros tipos de exclusões ou repetir formas de colonialismo em processos de datificação.
O governo indiano promove um discurso contra a colonização de dados para afastar players estrangeiros e promover soluções locais – como o RuPay – como um serviço nacional. Isso seria um meio de produzir um sistema de extração de dados com base num ethos nacionalista.
Kavita Dattani, professora na Universidade de Washington em Seatle, afirma que o sistema reencena tendências coloniais do passado por meio de novos atores e mecanismos. Ela estuda a relação entre o Estado indiano, entidades corporativas e as fintechs que trabalham para promover – e até coagir – a população para uma financeirização digital obrigatória.
Ela publicou sua pesquisa no periódico Journal of Cultural Economy, no artigo intitulado “Spectrally shape-shifting: biometrics, fintech and the corporate-state in India”. Como metodologia, utilizou uma perspectiva hauntológica – de haunted, assombrado — para compreender como os fantasmas do passado colonial estão ressurgindo nestas novas tecnologias. Segundo ela, a pesquisa se utiliza de lentes anticoloniais.
É importante compreender como funciona o Adahar e a infraestrutura de software construída sobre ele, o India Stack, bem como a cronologia de sua implantação ao longo dos últimos anos.
O Adahar foi concebido pela Unique Identification Authority of India (UIDAI), uma autoridade governamental estabelecida em 2009, com o objetivo de criar um número de identificação única com 12 dígitos, biometricamente verificável, para todos os residentes da Índia. A biometria inclui a digitalização de impressões digitais, da íris e do rostofotografia, armazenadas em uma base de dados nacional e centralizada.
O India Stack é uma infraestrutura de software construída sobre a base de dados do Aadhaar, que funciona a partir de várias aplicações que se interconectam (APIs). Ele foi construído pela iSPIRT, um think tank digital ligado a um grupo consultivo governamental, composto por profissionais da indústria de software, que realizam esse trabalho de forma voluntária, como intuito de construir “bens públicos”.
O objetivo foi oferecer uma infraestrutura para facilitar a prestação de serviços sem presença, com capacidade de verificar autenticidade e eliminar a circulação de dinheiro. Por exemplo, o Digilocker armazena registros de saúde, o e-Sign permite a assinatura de documentos e o Unified Payments Interface (UPI) permite que os titulares de contas bancárias enviem dinheiro instantaneamente a partir dos seus smartphones, similar ao PIX brasileiro.
Embora a adesão ao Adhaar fosse opcional nos seus anos iniciais, foi gradualmente tornando-se obrigatório tanto para o setor privado – na obtenção de crédito, na verificação de identidade, por exemplo – como para o governo – para obtenção de benefícios ou acessar políticas públicas. Uma das justificativas para a adesão em massa ao Adhaar era o combate aos benefícios falsos ou duplicados. No entanto, a pesquisa mostra que os números apresentados eram exagerados, ainda que houvesse um pequeno percentual de falhas.
Em 2014, um programa nacional de inclusão financeira incentivou a abertura de milhares de contas bancárias, impulsionando o uso do cartão RuPay – uma alternativa indiana às bandeiras internacionais. Em 2016, a retirada de circulação repentina de notas de 500 e 1000 rupias forçou milhões de pessoas a usar as contas bancárias para trocar suas notas antigas e receber seus valores equivalentes, elevando o número das transações digitais. E finalmente, em 2017, o governo obrigou o pagamento de salários por transferências bancárias. Essas iniciativas empurraram a população indiana para uma financeirização em massa com a intermediação do Adhaar e do India Stack.
A Índia se tornou um grande terreno de testes para o uso da biometria no Sul Global. O sucesso da implantação do Adhaar tornou a experiência referência, recomendada por agências internacionais e replicadas em programas como o ID4Africa, por exemplo. Segundo a autora do estudo, é assim que o fantasma colonialista se reconstrói, pois adquire uma nova roupagem sob a justificativa que esses territórios seriam mais propensos a fraudes ou falsificações, precisando de uma tecnologia salvacionista.
Ao mesmo tempo, Adhaar e o India Stack estabelecem as condições para um “Estado de vigilância”, desestabilizando o equilíbrio de poder entre o cidadão e o Estado. A pesquisa cita casos em que o sistema de biometria foi supostamente utilizado para facilitar a exclusão de muçulmanos — com histórico de perseguição pelo atual governo — do acesso a determinadas políticas públicas.
Mas, além disso, uma das questões mais preocupantes é o caráter de “porta giratória” que funciona entre as agências governamentais relacionadas com o Adhaar, os executivos que trabalham “voluntariamente” no iSPIRT, e as fintechs que orbitam os serviços financeiros. Os especialistas e tecnocratas transitam entre os cargos do setor público e do setor privado, criando potenciais conflitos de interesse, segundo Dattani.
Uma das figuras centrais é o arquiteto do sistema, o bilionário Nandan Nilekani. Ele já foi presidente da agência que desenhou o Adhaar, o UIDAI. Srikanth Nadhamuni é CEO da Khosla Labs e ex-chefe de tecnologia da UIDAI. A National Payments Corporation of India é uma corporação conjunta do Reserve Bank of India e da Indian Banks Association, responsável por desenvolver o UPI do India Stack e vários dos seus executivos também já transitaram entre cargos públicos relacionados ao Adhaar. Há, portanto, uma apropriação de uma parte do Estado indiano por uma tecno-elite, que promove suas políticas, tecnologias e empreendimentos.
Atualmente o Adhaar também é vinculado aos dados de saúde pública, o que tem gerado preocupação sobre o acesso e controle de dados sensíveis da população por esse aparato tecnoburocrático, como o controle da vacinação, envolvendo startups privadas, para além dos órgãos governamentais oficiais.
O que Dattani conclui é que o complexo fintech-filantropia-desenvolvimento opera o Aadhaar e o India Stack como um meio de negócio, embora sejam defendidos como serviços públicos. O governo e os atores da indústria afirmam que os dados são uma ferramenta para empoderar os cidadãos, como uma iniciativa de desenvolvimento. Os criadores do India Stack, posicionam-se como voluntários do mundo da tecnologia, criando bens públicos, supostamente gratuitos. Ao fim, o arranjo produz valor através da datificação, financeirização e monetização de um imenso volume populacional.
A pesquisa mostra como o processo muda a relação das pessoas com o Estado e com suas políticas públicas, tendo agora como intermediador um novo aparato digital e tecnocrático. Aponta também como as narrativas e discursos em prol da eficiência podem ser mobilizadas para promover uma tecnoelite e, por fim, como a ideia de empoderamento e nacionalismo pode ser utilizada para construir uma reserva de mercado para certos atores específicos.
Para ler o artigo: https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/17530350.2023.2176340

Esta nota faz parte do projeto “Inteligência Artificial e Capitalismo de Vigilância no Sul Global”, realizado pelo
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