Os commons, ou os bens comuns, ressurgiram como paradigma na primeira década do novo século, principalmente pela sua aplicabilidade às redes digitais. Trata-se da ideia de que os recursos poderiam ser compartilhados – não seriam nem privados e nem estatais, mas públicos e de todos -, com governança específica, definidos pela comunidade envolvida. Na Internet, pode-se encontrar vários exemplos: a Wikipedia, o OpenStreetMap ou os inúmeros softwares livres. Mas também existem os commons não digitais, como o ar, os oceanos ou um terreno compartilhado. A grande questão que se faz atualmente é: os commons digitais conseguem sobreviver ao capitalismo de plataforma?
Tentando responder a uma parte desta questão, Yosuke Uchiyama, pesquisador no Instituto de Transporte da Universidade de Chulalongkorn, na Tailândia, publicou o artigo “Cosmolocalism Against Platform Capitalism: Evidence From Ridesharing” na revista TripleC, analisando alguns serviços de transporte compartilhado. Seu argumento é que a chave está no que convencionou chamar de “cosmolocalismo”, que mistura cooperativismo de plataforma com a capacidade de gestão de um commons digital.

Imagem gerada por inteligência artificial generativa utilizando palavras-chave: carona compartilhada, cosmolocalismo, big techs
“Cosmolocalismo é um conceito teórico que enfatiza a integração de recursos digitais compartilhados globalmente com a produção física local. Defende um modelo de produção pós-capitalista através da ponte entre o espaço digital e o espaço físico. Este modelo procura promover um ecossistema mais sustentável e equitativo através de mecanismos de autogestão enraizados em redes P2P e comunidades locais, opondo-se à natureza centralizada e orientada para o lucro do capitalismo de plataforma. “
O pesquisador cita especificamente o caso do Nakatombetsu Rideshare, um aplicativo que atende a ilha Hokkaido, ao norte do Japão, com 5 milhões de habitantes. É uma plataforma social com apoio do governo local que se integra ao planejamento de transporte da região, cobrando pequenas taxas dos utilizadores. Seria o exemplo de integração de um cooperativismo de plataforma com o commons social e digital.
No trabalho, ele também compara outros três casos: o Grab, um concorrente das grandes plataformas no sudeste asiático, que funciona com uma estrutura muito parecida com outros serviços centralizados do capitalismo de plataforma; o La’Zooz, um aplicativo que funciona em Tel Aviv, em Israel, que é gerido a partir de um cooperativismo de plataforma; e, por fim, examina o Teshio Town Rideshare Transport Project, um sistema digital para áreas rurais de Hokkaido, também no Japão. Este último seria um projeto categorizado como um commons social que conta com apoio do governo local, porém não é exatamente uma prática de cosmolocalismo. A ideia do pesquisador foi, portanto, comparar diferentes tipos de serviços a partir da sua forma de gestão.
As cooperativas de plataforma têm se disseminado para ofertar diversos serviços a partir de uma lógica diferente das big techs. Aqui no Brasil surgiram iniciativas como a Federação Nacional das Cooperativas de Mobilidade Urbana, que lançou o aplicativo Liga Coop, na tentativa de congregar esforços de diversas cooperativas locais. Em pequenas cidades, proliferam-se serviços de aplicativos de transporte que oferecem condições de trabalho mais vantajosas aos motoristas. Isso sugere que há uma carência, ou espaços vazios, em que as big techs não conseguem preencher. Ao mesmo tempo, essas iniciativas apontam que há disposição para construir um sistema de governança menos verticalizado, ainda que enfrentem um problema de escala.
Muito embora os bens comuns não digitais operem fora da lógica do capitalismo é fato que o uso abusivo pode levar ao seu esgotamento. É o que o teórico Garrett Hardin chamava de “tragédia dos commons”. No entanto, ele defendia que o uso privado desses bens poderia gerar um uso mais racional, o que é contestado por outros teóricos. O que a história parece demonstrar é que cada vez mais os usos de bens comuns precisam de uma regulação mínima para que perdurem. Nos commons digitais a regra parece ser a mesma, principalmente com o advento das big techs e sua capacidade quase infinita de expansão e monopolização dos serviços na rede.
O que a Uchiyama alerta é que uma série de serviços se confundem em meio a diversos rótulos como economia do compartilhamento ou gig economy. A ascensão do capitalismo de plataformas teria monopolizado espaços digitais, explorando trabalhadores sob sistemas algorítmicos opacos em que empresas de transporte por aplicativo, por exemplo, utilizam modelos de negócios que visam lucro a despeito de direitos dos motoristas. Esse fenômeno estaria produzindo uma “tragédia dos commons” moderna, onde a busca incessante pela maximização de receitas estaria levando à monopolização dos recursos e a degradação da qualidade de vida dos envolvidos.
O compartilhamento de mobilidade pode significar a luta entre commons digitais e capitalismo de plataformas, segundo o estudo de Uchiyama. Ainda que no princípio as práticas de carona solidária promovessem a economia de recursos e a colaboração entre indivíduos, a introdução de plataformas teria distorcido seu propósito, tornando-se prejudicial àqueles que dependem dele para seu sustento.
Uma forma de resistir a essa exploração, segundo o autor, seria impulsionar as iniciativas de cooperativismo de plataformas, onde trabalhadores e usuários se tornam co-proprietários da infraestrutura digital. Mas, para além disso, seria necessário criar estratégias de regulação que limitem a tragédia dos commons digitais, pela expansão do capitalismo de plataformas.
O cosmolocalismo representaria, portanto, essa visão alternativa para um futuro mais sustentável ao combinar a riqueza dos commons digitais com a produção local, aliado a modelos de governança coletiva.
Link para o artigo: https://doi.org/10.31269/triplec.v23i1.1515

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Esta nota faz parte do projeto “Inteligência Artificial e Capitalismo de Vigilância no Sul Global”, financiado pela Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade e realizado pelo Labjor - Unicamp | Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo