O gerencialismo militarizado da distopia bolsonarista e seu fazer morrer

por Rafael Evangelista em 11 de novembro de 2024, Comentários desativados em O gerencialismo militarizado da distopia bolsonarista e seu fazer morrer

Brutal, mas recheado de uma retórica tecnicista, o governo Bolsonaro já foi fruto de análise acadêmica em diversos aspectos, em especial naqueles que levaram ao resultado de 2018. Entre esses fatores, a perseguição da mídia e do judiciário ao Partido dos Trabalhadores, o enfraquecimento da centro-direita, a crise econômica de meados dos anos 2010, o descontentamento dos militares com a investigação dos crimes da ditadura e a comunicação digital usada como estratégia eleitoral.

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Mas pouco foi escrito sobre o modo de funcionamento do governo bolsonarista, sobre como ele veio a ser, o que se tornou e como operou, essa mistura de um tecnicismo neoliberal com um desdém pelas decisões políticas somado a uma paixão pela eliminação e violência. Quem nos ajuda a entender isso é Bruno Cardoso, professor da UFRJ, no artigo, “Militarized Managerialism and the Bolsonarist Dystopia in Brazil”, publicado no livro Policing and Intelligence in the Global Big Data Era.

As políticas de policiamento e vigilância urbana implementadas no Rio de Janeiro são um elemento-chave na análise. Cardoso cria conceitos como o de “gerencialismo militarizado” para entender a lógica de apropriação militarizada do neoliberalismo feita pelos agentes do bolsonarismo, mesmo antes do governo vir à tona. “Um modelo de pensamento e gerenciamento do Estado”, escreve Cardoso.

O artigo baseou-se na pesquisa de campo do autor junto a dois Centros de Comando e Controle do Rio de Janeiro. Introduzidos durante os mega-eventos (a Copa de 2014 e as Olimpíadas do Rio, dois anos depois), esses centros foram anunciados pelo governo Dilma como o grande legado dos mega-eventos para a área de segurança. Cardoso argumenta que a herança, na verdade foi uma “lógica gerencial militarizada”.

“Discussões em torno de Comando e Controle introduziram consistentemente uma estrutura gerencial implicitamente enraizada nos princípios da New Public Management (NPM). A característica central da NPM envolve ver o Estado como uma empresa, enfatizando metas, técnicas de benchmarking, parcerias com o setor privado e prestação de contas, entre outros fatores”, escreve. Cardoso estudou também dois documentos apresentados como a fundação metodológica da intervenção militar no Rio de Janeiro, outro momento reputado como importante pelo autor, o Brazilian Army Excellence in Public Management Model [BAEPMM] e o System of Excellence in the Military Organization [SE-MO]. Ambos seriam bastante rudimentares e apresentam uma versão simplificada de algumas ideias e estratégias básicas da New Public Management.

O mito dos militares como bons gerentes, que estaria dando fundamento a intrusões dos militares no gerenciamento da saúde e da educação, seria baseado em diversas “ traduções” retóricas, aponta Cardoso. Entre elas estão ideias como: equivaler o autoritarismo a um bom comportamento; tomar a corrupção como fruto de ações individuais moralmente repreenssíveis; os militares como capazes de disciplinar e punir os maus indivíduos; entender os sistemas de comando e controle como extensões de boas práticas gerenciais; associar a corrupção apensa ao setor público e não ao privado; tomar os militares como técnicos não-políticos e isentar a tecnologia de ideologia. Esta, a ideologia, seria específica à esquerda/comunismo.

As tecnologias, em particular, são apresentadas como capazes de resolverem, de uma maneira ou de outra, problemas estruturais e históricos, na mesmo sentido do tecnossolucionismo descrito por Evgeny Morozov.

Contudo, Cardoso coloca que a perspectiva militarizada-gerencial, é um “ horizonte de ação” e não uma promessa cumprida. “Durante o governo Bolsonaro, a gestão catastrófica da pandemia, levando o país a bater recordes de taxas de mortes e infecções, fez exatamente o mesmo que a intervenção federal alguns anos antes no Rio (com os mesmos atores). Em ambos os casos, o aspecto gerencial do raciocínio militarizado-gerencial tornou-se, dia após dia, mais visível como mero militarismo, evocando, de forma grosseira e perversa, ideias de eficiência ao gerir violentamente a morte de uma parte da população”, conclui.


Para ler o artigo: https://link.springer.com/chapter/10.1007/978-3-031-68326-8_5

Lavits

Esta nota faz parte do projeto “Inteligência Artificial e Capitalismo de Vigilância no Sul Global”, financiado pela Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade e realizado pelo Labjor - Unicamp | Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo

Recolonização? IA é o novo desafio para os países da América Latina

por Fabricio Solagna em 6 de novembro de 2024, Comentários desativados em Recolonização? IA é o novo desafio para os países da América Latina

A corrida do ouro sobre a liderança em tecnologias de IA tem sido intensa entre as big techs. Ao mesmo tempo, os países tentam se acomodar, ora na plateia, ora tentando estabelecer as linhas do campo, apresentando alguma proposta de regulação ou de estímulo para o setor. No caso da América Latina, ainda carente de infraestruturas mínimas, o desafio é não ser recolonizada pelo Norte através de ondas “modernizantes” – que seriam, supostamente, inevitáveis.

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A difícil tarefa de desenhar a governança das IAs tem gerado algumas iniciativas. A União Europeia aprovou recentemente um ambicioso regulamento. O Brasil apresentou um plano governamental para os próximos quatro anos, prevendo investir cerca de R$ 23 bilhões, almejando se tornar referência mundial em inovação e eficiência no setor. Enquanto isso, o projeto de lei que regulamenta a matéria ainda patina no Senado Federal.

Tentando lançar um olhar mais amplo sobre o do continente latinoamericano, o cientista político Fernando Filgueiras publicou um artigo intitulado “Desafíos de gobernanza de inteligencia artificial en América Latina. Infraestructura, descolonización y nueva dependencia” na Revista del CLAD Reforma y Democracia.

Neste trabalho, ele estabelece um comparativo entre oito países da região, destacando, principalmente, as prioridades políticas e o desenvolvimento nos níveis técnico, ético e regulatório. Por fim, também se dedica a comparar se há algum instrumento de cooperação regional. Este último, infelizmente, está presente somente em dois países, na República Dominicana e na Colombia, demonstrando que há uma dificuldade em realizar trocas e aprendizados entre os vizinhos.

Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, México, Peru, República Dominicana e Uruguai divulgaram estratégias nacionais de IA que apontam para desafios comuns em relação ao desenvolvimento do nível técnico, com o fornecimento de infraestruturas digitais públicas que promovam e apoiem o desenvolvimento do IA. Exceto o Brasil, os demais explicam o desenvolvimento de infraestrutura em parceria com organizações privadas. No que diz respeito ao nível ético, o ponto comum em todas as estratégias é a definição de princípios, geralmente associados à divulgação de valores éticos pela OCDE e pela UNESCO. Finalmente, no que diz respeito ao nível regulatório, as estratégias nacionais na América Latina tendem a permanecer silenciosas ou a reproduzir temas comuns nas práticas de governança divulgadas por agências internacionais. A exceção é o Chile, que afirma claramente que a criação de sistemas para proteger o consumo, a privacidade e os dados dos cidadãos está mais claramente relacionada com o avanço da IA.”

O caso mais preocupante é o da Argentina, que estabeleceu um desenho da estratégia nacional de IA se parecendo uma “bricolagem”. Foram diversas revisões até se chegar em um consenso. Ao mesmo tempo, o governo criou uma parceria com a Meta para ofertar uma IA através do Facebook Messenger para políticas de saúde e proteção para mulheres grávidas. Não há qualquer estudo de impacto da implementação dessa parceria, tampouco os resultados mais qualificados sobre o uso das ferramentas pelas mulheres.

“A bricolagem que sustenta a política argentina de IA não dispõe de meios para criar ou controlar infraestruturas digitais, reproduzindo uma perspectiva colonial das matérias-primas (dados), sem qualquer possibilidade de controlar os riscos”.

A pesquisa aponta que, por enquanto, “todos os países estudados tendem a reforçar uma política de autoregulação por parte das empresas, enquanto defendem o desenvolvimento técnico e ético”. Ou seja, o cenário parece ambíguo e as iniciativas não estão exatamente alinhadas, o que, por fim, pode reforçar os mecanismos de dependência e de colonialismo de dados.

O desafio para a América Latina é não reproduzir novas formas de colonialismo que acabam tornando as pessoas vulneráveis à modulação das big techs. Na prateleira de IAs, não faltam opções do Norte para ofertar um espelho em uma mão e um chicote em outra. Ao mesmo tempo, criar uma solução genuína em meio às dificuldades e contingências históricas criadas no continente parece um horizonte quase impossível. Porém, iniciativas como a brasileira parecem ser um oásis no deserto de ideias. No entanto, a capacidade real de entregar algo diferente dependerá do esforço e da perseverança no desenvolvimento de tal plano, que não depende apenas de intenções de investimento. Será preciso acertar na política, que é um dos tópicos apontados pelo autor como significativo, mas com menos atenção pelos países estudados.

Para ler o artigo: https://doi.org/10.69733/clad.ryd.n87.a3

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Colonialismo nas plataformas na área de saúde modela novos médicos na África

por Fabricio Solagna em 4 de novembro de 2024, Comentários desativados em Colonialismo nas plataformas na área de saúde modela novos médicos na África

A Somalilândia é uma região no Chifre da África, parte oficialmente da Somália, mas que conquistou sua independência no início da década de 1990. Com um passado marcado por colonizações europeias, o país construiu frágeis instituições de saúde, muitas delas com auxílio de programas internacionais tocados por seus antigos colonizadores.

Imagem gerada por inteligência artificial generativa utilizando palavras-chave: médicos, plataformas, IA e África

Uma dessas iniciativas é o MedicineAfrica, uma plataforma digital privada, sem fins lucrativos, baseada em Oxford, na Inglaterra, que se propõe a conectar médicos do Reino Unido, que atuam como tutores, com estudantes de medicina na África. A plataforma é online mas foi adaptada para funcionar em contextos de baixa conectividade, como no caso da Somalilândia. Funciona com diferentes recursos, ferramentas e interfaces de interação, desde recursos de fórum (com textos e imagens) que funcionam offline e, mais recentemente, permitiu que áudio, vídeos e videoconferências sejam utilizados.

O objetivo da plataforma é levar conhecimento médico sobre procedimentos e técnicas para países que dispõem de pouca estrutura na formação de novos profissionais na área. Entretanto, essa troca de experiências pode gerar um resultado chamado “colonialismo epistêmico”, que significa reforçar o processo pelo qual o conhecimento anglo/eurocêntrico é transferido, introduzido e adotado como conhecimento científico legítimo nos locais onde é utilizado.

Três pesquisadores realizaram uma pesquisa qualitativa, entrevistando cerca de 40 estudantes que utilizaram a plataforma entre 2020 e 2021. O estudo se chama From ‘making up’ professionals to epistemic colonialism: Digital health platforms in the Global South e é assinado por Dimitra Petrakaki, professora da Universidade de Sussex Business School, na Inglaterra, Petros Chamakiotis, Professor da ESCP Business School, na Espanha, e Daniel Curto-Millet, Cientista da Computação e Cientista Social da Universidade de Gothenburg, na Suécia. Os resultados do trabalho foram publicados na Social Science & Medicine, que se dedica a assuntos sobre saúde e ciências sociais.

Segundo os achados da pesquisa, o colonialismo se manifesta inicialmente na língua, já que toda a comunicação na plataforma é realizada em inglês. Mas, também se reflete no choque entre as culturas ocidental e local, na forma de se pensar como a doença e a cura são percebidas, nas formas de comunicação recomendadas entre médicos e pacientes e, por último, na adequação na realização dos procedimentos ou exames ensinados, em virtude das disponibilidades de infraestrutura local.

“O que os tutorados aprendem sobre ser um bom médico nem sempre é aplicável o que acaba por frustrar ou alienar os profissionais de saúde da sua realidade quotidiana e das expectativas locais. É essa alienação nas relações de poder/conhecimento que constituem o núcleo do colonialismo epistêmico digital”, afirmam os autores da pesquisa.

Ainda assim, a relação não é apenas unidirecional. Durante as entrevistas, os pesquisadores também perceberam que há um certo nível de apropriação e uma negociação com a realidade local por parte dos tutorados, permitindo também a crítica sobre o próprio modelo da MedicineAfrica: “os dados das nossas entrevistas indicam que os estudantes não eram apenas receptores passivos do conhecimento que lhes era transferido. Em vez disso, tiveram a capacidade de refletir sobre essas diferenças e de serem seletivos sobre o que pretendiam adotar”.

Este tipo de pesquisa nos permite verificar que o colonialismo digital não se dá apenas por estruturas das grandes plataformas globais, mas também é incorporado e transmitido em relações de poder em serviços específicos e especializados.

Para ler o artigo: https://doi.org/10.1016/j.socscimed.2023.115787

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Colonialismo Digital na África: os cabos de Internet traçam mesmas rotas dos navios negreiros

por Fabricio Solagna em 1 de novembro de 2024, Comentários desativados em Colonialismo Digital na África: os cabos de Internet traçam mesmas rotas dos navios negreiros

Olaudah Equiano foi um marinheiro de origem nigeriana que viveu na metade final do Século XVIII em diversas colônias britânicas. Foi capturado e escravizado ainda criança e rebatizado de Gustavus Vassa na Virgínia, nos Estados Unidos. Conseguiu comprar sua própria liberdade já adulto e se tornou escritor, contando sua trajetória de vida, tendo um um papel relevante no movimento abolicionista inglês.

Foi exatamente o nome de Equiano que o Google escolheu para seu cabo de fibra óptica submarino, instalado em 2023, que passa por seis diversos países na costa da África. O porto das Ilhas de Santa Helena é um importante local de chegada de diversos cabos, no mesmo local que serviu como um porto de trânsito de escravos até a década de 1860.

A utilização de cabos submarinos é uma infraestrutura essencial para a conectividade global da Internet, muitas vezes chamados de “espinha dorsal”. São por eles que trafegam a maior parte dos dados da rede entre os continentes, muito embora haja também conexões por satélites, mas que não conseguem oferecer as mesmas velocidades. Entretanto, este tipo de infraestrutura é dominada por poucas e grandes empresas e, em muitos casos, em projetos patrocinados pelas principais big techs.

Há uma lógica colonial que se repete na instalação destes cabos na África, em especial nos casos de Google e Meta, que instalaram o cabo Equiano e o 2Africa, respectivamente. É o que as pesquisadoras Esther Mwema, Mestre na London School of Economics and Political Science, na Inglaterra, e Abeba Birhane, Professora Assistente na Escola de Ciências da Computação e Estatística na Trinity College Dublin, na Irlanda, demonstram em um artigo publicado na revista acadêmica First Monday, intitulado “Undersea cables in Africa: The new frontiers of digital colonialism”.

Um mapa que mostra as linhas de cabos submarinos do Google e da Meta ao longo da costa africana. Ilustração de uma das autoras deste artigo, Esther Mwema.

As autoras fizeram uma genealogia da história dos cabos submarinos desde os cabos teleféricos do século XVII até os atuais de fibras ópticas. Os argumentos em favor da conexão apresentados atualmente se colocam como um “salvacionismo branco”, pois a conexão à Internet rápida poderia pretensamente ajudar diminuir o fosso digital entre África e as nações desenvolvidas. As linhas de cabos submarinos de 2023 seguem as mesmas rotas que as linhas telegráficas submarinas de 1901, “beneficiando desproporcionalmente as potências ocidentais, enquanto as partes interessadas africanas têm pouca voz ou controle”, segundo as autoras.

Os cabos submarinos de Google e Meta são financiados e operados por outras empresas parceiras, em condições nem sempre transparentes, com detalhes desconhecidos. “A complexidade e a opacidade desses esquemas são fundamentais para proteger Google e Meta de escrutínio, supervisão e responsabilização”, alerta o estudo.

A falta de legislação dá ao Google e a Meta um controle quase ilimitado sobre o que fazer no continente. Ocasionalmente, os Estados africanos alteram as suas políticas para se alinharem com os modelos de negócio e objetivos definidos pelas empresas, organizações ou Estados ocidentais. O modelo de dívida, neste caso, manifesta-se de múltiplas formas: Espera-se que as estações de cabos paguem ao Google e a Meta para utilizarem os cabos, embora sejam instalados em águas africanas, ao mesmo tempo que criam múltiplas formas de dependência. Muitas vezes, os povos africanos não estão conscientes da sua exploração pelas políticas egoístas impostas pelas organizações ocidentais que comprometem a soberania e o desenvolvimento de África. A este respeito, o colonialismo tradicional espelha o colonialismo digital, pois é uma das fronteiras sobreviventes da dominação colonial que sustenta a dependência dos antigos países colonizados pelo Ocidente, através da importação de hardware, software, engenheiros, protocolos de informação e conhecimentos especializados.”

A governança pouco clara destas infraestruturas é um desafio. O Brasil anunciou um projeto, em 2022, de estender um cabo entre Ásia, Oceania e América do Sul, como uma política pública. Grandes potências no Norte Global definem prioridades para o controle dos cabos como uma questão de segurança nacional.

O colonialismo digital seria uma disputa do século XXI pela África em continuidade às políticas colonialistas do passado. Se estabelece assim um novo modelo que mantém as nações africanas sob dívida pela infraestrutura de conexão ofertada de forma privada.

A economia digital, que se baseia na extração e manipulação de dados, tornou possível às grandes tecnologias explorarem as infra-estruturas de informação e os dados africanos sem o consentimento e (muitas vezes a consciência) das pessoas. A infraestrutura orientada a dados está incorporada na colonialidade. A coleta de dados sobre informações populacionais e territoriais, usadas para para monitorar, controlar e gerir as populações locais foram práticas que surgiram no auge do colonialismo. Os britânicos, por exemplo, implementaram tais práticas para controlar a Índia colonial e o apartheid na África do Sul.”


Mwema e Birhane concluem que seria necessário revisitar as regras internacionais de implementação dos cabos submarinos – como, por exemplo, o International Cable Protection Committee (ICPC), que datam de séculos e não tem participação multissetorial — bem como regulamentar a questão nos estados nacionais africanos, como forma melhorar a governança e a soberania dos países. Não menos importante, citam como fundamental renomear o cabo Equiano pela Alphabet, para que se possa respeitar a história e as lutas de Olaudah Equiano.

Para ler o artigo: https://doi.org/10.5210/fm.v29i4.13637

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Moderação de conteúdo em redes sociais é opaca e, quando o assunto é política, parece ter lado

por Fabricio Solagna em 16 de outubro de 2024, Comentários desativados em Moderação de conteúdo em redes sociais é opaca e, quando o assunto é política, parece ter lado

Sheikh Jarrah é um bairro da Jerusalém Oriental simbolicamente importante para os palestinos. Abriga a Mesquita de Al-Aqsa, local sagrado para o islamismo, além de outros monumentos importantes para o cristianismo e o judaísmo. Em maio de 2021, houve conflitos entre os judeus assentados e os residentes palestinos, que catalisaram protestos e atenção internacional sobre o assentamento. Plataformas de redes sociais foram utilizadas para reverberar o descontentamento palestino por meio de textos, fotos e vídeos. Foi quando as suspeitas de censura política surgiram.

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A controvérsia local não era meramente imobiliária. Sheikh Jarrah é uma das áreas mais empobrecidas de Jerusalém e há um conflito constante desde 1967, em virtude da Guerra dos Seis Dias e do controle militar de Israel nos territórios ocupados da Palestina. E a cobertura sobre o conflito de 2021, feita por jornalistas, ativistas, influenciadores e usuários, por meio de redes como Facebook, Twitter, YouTube, Instagram e TikTok, serviu para disseminar imagens e narrativas que retratavam o conflito.

No entanto, os usuários perceberam indícios de censura a partir de mecanismos tecnológicos opacos de moderação de conteúdo. A utilização de certos termos e hashtags levava, de forma aparentemente automática, à suspensão ou limitação de contas ou perfis.

É o que conta o artigo de Norah Abokhodair, pesquisadora independente, com formação na área da computação, em coautoria com Yarden Skop, Sarah Rüller, Konstantin Aal, ambos da Universidade de Siegen, e Houda Elmimouni, da Universidade de Indiana Bloomington. A pesquisa compreendeu entrevistas estruturadas e questionários com 201 usuários que enfrentaram algum tipo de moderação de conteúdo com o objetivo de compreender como eles perceberam esses sistemas durante seu uso cotidiano. O trabalho contou com recrutamento entre usuários das próprias redes, mas também se valeu de técnicas como bola de neve para mapear atores-chave, principalmente entre ativistas e influenciadores.

O artigo foi publicado na First Monday, importante revista acadêmica que publica artigos revisados por pares desde 1996. Os autores têm suas origens diversas (Israel, Arábia Saudita, Marrocos e Alemanha) além de também possuírem várias crenças religiosas, o que, na opinião deles, enriquece a análise e ajuda a mitigar potenciais vieses.

As descobertas revelam desde técnicas como shadow banning (exclusão ou suspensão a partir de certos termos utilizados nos textos ou legendas),rebaixamento de alcance e suspensão temporárias de contas. A falta de transparência foi um dos fatores mais citados, ou seja, a incompreensão do que levava à penalização dos usuários. O problema foi compreendido como parte dos danos algorítmicos da moderação automatizada de conteúdo. Algumas técnicas são de difícil comprovação (como o rebaixamento de alcance), mas foram percebidas a partir de experimentos, como a substituição de alguns caracteres em determinadas palavras (como em palestina ou freepalestine) ou a comparação com postagens semelhantes, realizadas em períodos similares, que não tratavam sobre o assunto em questão.

A pesquisa ilustra um cenário complexo de moderação de conteúdo, impactando notavelmente postagens sobre a Palestina e frequentemente diferindo por idioma e perspectiva política. A pesquisa demonstra que há, no geral, indícios de que as plataformas removem menos conteúdos favoráveis às políticas de Israel, se comparados às críticas vindas de palestinos.

Considera-se que o baixo número de revisores em idioma árabe acaba por deixar a maior parte da moderação ser realizada por métodos automatizados. Uma reportagem da CNN, do mesmo ano em que a pesquisa foi realizada, destaca essa dificuldade para o Facebook.

Os achados de pesquisa dos autores revelam que linguagem específica, tags de localização e imagens servem como gatilhos para moderação de conteúdo em plataformas de mídia social. Contudo, há diferenças entre elas – verificou-se uma menor incidência no TikTok no caso específico estudado.

O artigo deixa claro que a pesquisa não abrange os acontecimentos que ocorreram depois dos conflitos de 2023.

Para ler o artigo: https://firstmonday.org/ojs/index.php/fm/article/view/13620

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Netflix joga entre entretenimento e big tech para desfilar no tapete vermelho do Oscar (e desviar da regulação)

por Fabricio Solagna em 11 de outubro de 2024, Comentários desativados em Netflix joga entre entretenimento e big tech para desfilar no tapete vermelho do Oscar (e desviar da regulação)

A Netflix, uma das maiores plataformas de streaming do mundo, tem investido fortemente em produções próprias, tanto em lançamentos globais como em mercados locais. As suas estratégias tem chamado a atenção por conseguir competir com grandes estúdios de Hollywood.

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Foi o que ocorreu no México com o filme Roma, um longa-metragem, produzido em preto e branco, que retrata a história de uma empregada doméstica (Yalitza Aparicio como Cleo) numa casa de classe média no bairro Roma, na Cidade do México. O drama, vencedor de três Oscars, foi um pivô para impulsionar diferentes objetivos da Netflix.

O filme “funcionou como uma estratégia para quebrar as regras e o domínio da distribuição global de Hollywood”, escrevem os pesquisadores Rodrigo Gómez e Argelia Muñoz Larroa, do departamento de Ciências da Comunicação da Universidade Autónoma Metropolitana-Cuajimalpa, na Cidade do México. O artigo foi publicado na revista Television & New Media, publicação na área de televisão e novas mídias.

Os autores enfatizam o quanto a distribuição tradicionalmente é o principal lugar de poder e lucro, em detrimento da produção em si. Porém, a entrada da Netflix neste cenário, segundo eles, altera a equação, principalmente quando a empresa decide investir boa parcela do seu faturamento em novas produções, para além do licenciamento, entrando no terreno adversário. A estratégia significa jogar nos dois campos, assim conseguindo reconhecimento local e global.

A sua expansão nos mercados emergentes, principalmente na América Latina, é notável. A empresa se vale do seu grande catálogo e da rede de CDNs para firmar acordos com provedores que oferecem assinaturas em seus serviços. Os CDNs são servidores especiais que armazenam e distribuem conteúdo multimídia, localizados estrategicamente em backbones ou pontos de troca de tráfego.

Essa transformação na Netflix, tornando-se uma empresa de entretenimento, e que tem marcado a última década, pode ter também outras motivações. A empresa se intitulava como uma plataforma de tecnologia, que utilizava inteligência artificial para alimentar seu algoritmo de recomendação e passou por muito tempo alimentando o mito do big data. “Houve um reposicionamento estratégico de empresa de tecnologia para empresa de entretenimento, com cada vez mais valorização da escolha humana e a intuição”, segundo a pesquisadora Karin van Es, professora associada de Estudos de Mídia e Cultura da Universidade de Utreque, em outro artigo publicado na mesma revista, em 2023.

O discurso utilizado em propaganda ou nos discursos de seus gestores, apontando que a capacidade de fazer sugestões de qualidade dependia do seu bom algoritmo, tem sido minimizada ou substituída por uma valorização da curadoria humana.

Essa ambivalência entre entretenimento e empresa de tecnologia é percebida também como uma forma de se esquivar de regulações específicas e continuar se expandindo. Aqui no Brasil, por exemplo, se discute uma lei que visa cobrar uma taxa das plataformas de vídeo sob demanda, que pode atingir até plataformas de redes sociais como TikTok.

A depender de como sopram os ventos por algum tipo de regulação, as plataformas tendem a se adequar – ou se moldar – para fugir de qualquer tipo de obrigação.


Para ler os artigos: https://doi.org/10.1177/15274764221082107 e https://doi.org/10.1177/15274764221125745

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Nigéria mostra como é possível lutar contra a colonialidade com leis sobre privacidade

por Fabricio Solagna em 9 de outubro de 2024, Comentários desativados em Nigéria mostra como é possível lutar contra a colonialidade com leis sobre privacidade

Nos últimos anos, houve um grande esforço global em busca de parâmetros mínimos, em termos jurídicos, para a transformação digital, principalmente se tratando de privacidade. É o caso da General Data Protection Regulation (GDPR), na Europa, ou a Lei Geral de Proteção de Dados (LGDP), no Brasil. Não tem sido diferente na Nigéria, país que se destaca na África do ponto de vista de desenvolvimento econômico e uso de tecnologias digitais.

Imagem gerada por inteligência artificial generativa utilizando palavras-chave: nigéria, privacidade, sul global

Recentemente, o país aprovou o Nigeria Data Protection Act (NDPA), ou o ato de proteção de dados nigeriano, e o Migration Information and Data Analysis System (MIDAS), ou o sistema de análise de dados e informações de migração. As duas legislações sofreram influência externa, reproduzindo conceitos e práticas de legislações do Norte Global – principalmente da lei europeia sobre proteção de dados. Entretanto, o MIDAS se destacou por incorporar questões pós-coloniais, mesmo que em uma legislação delicada de controle de fronteiras.

É sobre esse paralelo entre legislações que se debruça artigo publicado na revista acadêmica Social & Legal Studies, por Samuel Singler, da Universidade de Essex, e Olumide Babalola, da Universidade de Portsmouth, ambas instituições do Reino Unido. O periódico de excelência na área do direito nasceu com o compromisso de abordar questões feministas, anticoloniais e socialistas.

Os autores do artigo utilizaram uma metodologia qualitativa, com entrevistas realizadas com pessoas-chave em 2021. Entre essas pessoas, altos funcionários nigerianos e estrangeiros envolvidos com o tema no país. Além disso, também realizaram análise de dados coletados nos debates para elaboração das propostas legislativas.

Uma grande contribuição da pesquisa foi desafiar os aspectos pretensamente universais, que são promovidos globalmente por Estados e organizações internacionais do Norte. Um dos exemplos é o “direito à privacidade”, que pode se transmutar em discursos colonialistas ou interagir “com entendimentos e agências locais para produzir novas constelações de práticas legais e políticas em torno de direitos individuais”, segundo os autores. É nesse sentido que assinalam o quanto a NDPA foi fortemente influenciada pelos conceito europeus da GDPR, mesmo contrariando princípios da própria constituição nigeriana no que se refere a privacidade. Ao mesmo tempo, o MIDAS passou por um processo de incorporação de exceções que pudessem contemplar questões de privacidade condizentes com o regramento local.

Desde 2007, a Nigéria expandiu sua capacidade de coletar dados biométricos nas fronteiras usando o sistema MIDAS. Ainda que uma parte do discurso público tenha se concentrado na “modernização” na implementação desse sistema, o auxílio da Organização Internacional para as Migrações (OIM) também ajudou no convencimento de que o software seria vantajoso por ser menos dependente de corporações estrangeiras. O sistema da OIM é gratuito para seus estados-membros no Sul Global, por meio de projetos financiados principalmente por Estados do Norte Global.

Os autores deixam claro que o argumento do estudo “não é que os direitos de privacidade sejam de alguma forma indesejáveis”. Mas, “invocar a colonialidade do conhecimento relacionado aos direitos humanos universais visa problematizar a posição privilegiada reivindicada pelos atores do Norte para determinar como os direitos humanos devem ser conceituados”.


Para ler o artigo: https://doi.org/10.1177/09646639241287022

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Plataformas de vigilância do trabalho se tornaram o panóptico supostamente necessário

por Fabricio Solagna em 8 de outubro de 2024, Comentários desativados em Plataformas de vigilância do trabalho se tornaram o panóptico supostamente necessário

A vigilância e supervisão do trabalhador são formas tradicionais de extrair o máximo de mais valia no processo de produção desde o princípio da manufatura capitalista, as quais foram intensificadas posteriormente com o fordismo. A ideia é que cada minuto deve ser aproveitado, sem distrações. Em tempos de economia digital, com o trabalho remoto e vínculos trabalhistas frágeis, houve uma proliferação de softwares e plataformas que promovem a vigilância ostensiva sobre o trabalhador, a distância, a fim de supostamente garantir produtividade e reduzir o tempo ocioso remunerado.

Essas formas de controle podem operar no sentido mais genérico, permitindo o administrador estabelecer e controlar a jornada de trabalho ou de forma mais invasiva, controlando totalmente o dispositivo do trabalhador, coletando dados e evidências.

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Há outras formas que podem funcionar para tentar prevenir supostas supostas ações suspeitas, que são consideradas como potenciais ameaça para a segurança do contratante, como roubo de dados corporativos.

É sobre esses softwares e tecnologias que se debruça uma pesquisa publicada por Fabricio Barili, vinculado ao Digilabour, projeto sediado atualmente na Universidade de Toronto – mas com origens no Sul do Brasil – e que foca em plataformas, dados e IA. O artigo foi publicado na International Journal of Communication, importante revista acadêmica com foco em assuntos relacionados à comunicação. Barili estudou duas plataformas de monitoramento: o Time Doctor e o Teramind. Ambas têm clientes globais e vendem seus serviços a partir de categorias de uso e possibilidades diferentes de vigilância.

Os bossware, como são chamados esses tipos de software, fazem parte de uma categoria não recente de algoritmos executáveis que rastreiam a interação homem-máquina. Eles podem funcionar através de sistemas biométricos, rastreadores ou sistema de IA que auxiliam a tomada de decisão. É a versão moderna do capataz, do encarregado, que se presta a controlar a massa laboral a favor da produção. Entretanto, os novos dispositivos, como os estudados por Barili, se diferenciam por interagirem com outros softwares ou plataformas – via APIs – e por incorporarem uma série de outros algoritmos de predição. Buscam assim coletar mais dados e aumentarem o grau de abrangência de suas análises. Além disso, não se vendem mais como simples espiões do patrão, oferecem um certo nível de transparência – como avisos, lembretes e análises coletivas e premiações individuais – a fim de aumentar a competitividade entre membros da mesma equipe.

Um relatório da Big Brother Watch, uma organização que luta por direitos civis em função da privacidade, faz um apanhado um pouco mais amplo desses sistemas e também aponta algumas orientações para minimizar os riscos e garantir direitos frente aos empregadores.

Como também demonstram outras pesquisas – como a de Le Ludec, Cornet e Casilli, do Instituto Politécnico de Paris, já abordado neste blog anteirormente – no cenário em que o trabalho está cada vez mais distribuído em diferentes espaços e países, as plataformas de monitoramento laboral adicionam só mais uma nova pitada de algoritmização opaca a fim de classificar, controlar e extrair mais valia, ofertando um panóptico plataformizado em prol da expropriação do trabalho.


Para ler o artigo: https://ijoc.org/index.php/ijoc/article/view/21365

Lavits

Esta nota faz parte do projeto “Inteligência Artificial e Capitalismo de Vigilância no Sul Global”, financiado pela Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade e realizado pelo Labjor - Unicamp | Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo

Em tempos de comunicação plataformizada, desinformação explora vulnerabilidades do jornalismo

por Fabricio Solagna em 30 de setembro de 2024, Comentários desativados em Em tempos de comunicação plataformizada, desinformação explora vulnerabilidades do jornalismo

O termo “hackear” se tornou corrente nas últimas décadas como sinônimo de explorar limites de algo a fim de subverter seu propósito, seja para o bem ou para o mal. O jornalismo poderia estar sofrendo um hackeamento dos seus próprios princípios, valores e práticas através das estratégias de grupos que propagam desinformação e fake news, principalmente com pauta política.

Imagem gerada por inteligência artificial generativa utilizando palavras chave: jornalismo, IA, sul global

Este tema é desenvolvido pelo jornalista Marcelo Träsel em um artigo publicado na Liinc em Revista, do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia. Ele explora os acontecimentos da política brasileira e demonstra que tanto figuras publicas como Jair Bolsonaro, quanto seus apoiadores, utilizaram técnicas consagradas no jornalismo, porém subvertendo-as, a fim de propagar pautas da extrema direita, utilizando o alto alcance de espalhamento de notícias através das plataformas das Big Techs. A pesquisa usa dados coletados entre 2018 e 2022 no Brasil, porém outras pesquisas já identificaram como grupos do Norte e do Sul, muitas vezes compartilham técnicas e estratégias.

Essas técnicas se utilizariam fontes de grande prestígio para difusão de alegações falsas, de forma enviezada ou distorcida, gerando matéria-prima para propaganda. Outro valor subvertido seria o da objetividade, o qual se aproveita de um jornalismo baseado em declarações, que se vale de falsas equivalências – colocando em pé de igualdade uma opinião de um cientista e de um terraplanista, por exemplo. Além disso, a relevância conferida às polêmicas em redes sociais, ou a relevância tributada às métricas das plataformas (como número seguidores), ajudou a moldar pautas que redundaram na amplificação de ideias favoráveis ao ex-presidente.

A incorporação de técnicas e valores no processo de criação de notícias em modo industrial são marcas importantes de meados do século passado, mas que se tornaram corrosivas em alguns casos, a partir do atual ecossistema de redes digitais e plataformização da comunicação. A atualidade do tema é inconstentável, e o apoio explícito de plataformas como o X, de Elon Musk, à candidatura de Donald Trump, tornam o tema ainda mais urgente.

Como afirma Träsel , há alguns antítodos e algumas iniciativas promissoras que podem prevenir estes cenários. Os manuais de redação, por exemplo, poderiam incorporar procedimentos que ajudem a neutralizar a exploração dessas práticas por indivíduos ou grupos interessados em manipular o conteúdo noticioso. Numa perspectiva mais de longo prazo, seria necessária a revisão dos valores e princípios do jornalismo a fim de “tensionar a centralidade do pensamento europeu moderno enquanto fundamento das práticas de produção de notícias”. Além disso, ele afirma que preciso regular as plataformas. O que faz sentido, já que o ambiente algoritimizado dessas empresas tem alta penetração popular, com as big techs agora ocupando o espaço de mediadoras do consumo de informações.


Para ler o artigo: https://revista.ibict.br/liinc/article/view/6625

Lavits


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Capitalismo prosumer na Nigéria é uma das faces do colonialismo digital

por Fabricio Solagna em 25 de setembro de 2024, Comentários desativados em Capitalismo prosumer na Nigéria é uma das faces do colonialismo digital

A Nigéria é uma das maiores economias africanas e com uma população similar à do Brasil. São mais de 130 milhões de usuários de Internet no país, que tem a terceira maior produção de filmes do mundo, a conhecida “Nollywood”. Obviamente, há diversas dificuldades, entre elas as desigualdades sociais, a falta de acesso à tecnologia e a baixa educação formal. Ao mesmo tempo, intensifica-se uma grande penetração das grandes Big Techs, que chegaram a pagar cerca de US$ 1 bilhão em impostos só em 2022.

Paul A. Obi, pesquisador do Departamento de Comunicação de Massa da Universidade Baze, em Abuja, capital da Nigéria, afirma haver um enorme contingente de pessoas que se envolvem em atividades de prosumo nas plataformas digitais. O termo designa uma atividade em que produção e consumo se fundem e o trabalho em redes sociais, como criadores de conteúdo e influenciadores, talvez seja a melhor expressão contemporânea.


É sobre esta característica que Obi considera que há pouca reflexão acadêmica – e também pouca preocupação estatística -, principalmente para compreender melhor como funciona uma das camadas do colonialismo digital em seu país. Os achados de pesquisa estão em artigo na Triple C: Communication, Capitalism & Critique, uma revista acadêmica editada por pesquisadores referência na área, como Christian Fuchs.

Imagem gerada por inteligência artificial generativa utilizando palavras chave: Nigéria e IA

No contexto das plataformas digitais, o capitalismo prosumer também significaria trabalho não pago, ou seja, uma expropriação do trabalho humano por corporações do Vale do Silício, as quais são responsáveis por expandir o poder geopolítico do Norte sobre o Sul. Essa seria uma das faces do colonialismo digital, conceito trabalhado também por outros autores como Michael Kwet.

As plataformas estariam lucrando com a extração de dados, enquanto os trabalhadores ganham apenas uma pequena parte por meio da criação e manipulação de conteúdos com venda de anúncios.  As políticas de Estado priorizam a taxação e não tanto o controle dos processos econômicos das Big Techs, consolidando uma política extrativista semelhante ao colonialismo histórico, agora de forma digitalizada. Segundo ele, “a África pós-colonial fica atrasada na negociação de poder dentro da dinâmica da economia política do capitalismo digital”, já que as relaçõesentre as empresas eo Estado nem sempre são vistas pelo prisma da exploração.

O artigo busca recolocar a questão do trabalho prosumer na ótica do colonialismo digital, fazendo uso de lentes decoloniais. Apontando ainda a necessidade de maior esforço empírico na área e faz relação com esforços semelhantes na América Latina e na Ásia, tendo o capitalismo de vigilância como pano de fundo.

Para ler o artigo: https://doi.org/10.31269/triplec.v22i1.1451

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