IAs interpretam emoções, plataformas modulam comportamentos. É possível uma subjetividade soberana?

por Fabricio Solagna em 23 de abril de 2025, Comentários desativados em IAs interpretam emoções, plataformas modulam comportamentos. É possível uma subjetividade soberana?

Cada vez mais as IAs se utilizam de técnicas algorítmicas para interpretar nossas emoções e influenciar nosso comportamento. Podem fazer isso a partir de sistemas de reconhecimento facial e de metodologias de designs opacos, para facilitar ou dificultar certas ações, como realizar uma compra ou retardar o cancelamento de um produto.

Imagem gerada por inteligência artificial generativa utilizando palavras-chave: IA, soberania e subjetividade

Não é por acaso que o debate sobre regulação é intenso, mas nem sempre suficiente. Para além das implicações políticas ou econômicas, parece haver uma questão mais profunda: como garantir soberania digital considerando a subjetividade dos sujeitos na sua relação com as máquinas?

A partir desta indagação, pesquisadores publicaram o artigo “IA emocional e design capcioso: a questão da soberania para a subjetividade” no periódico Liinc em Revista, numa edição especial voltada a refletir sobre questões de IA e soberania. A pesquisadora Fernanda Bruno, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, assina o estudo conjuntamente com outros três pesquisadores: Paulo Faltay (Universidade Federal de Pernambuco), Alice Lerner e Helena Strecker (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

A soberania é um termo comumente invocado para discutir questões de legitimidade sobre Estados nacionais, mas os autores do artigo traçam outro caminho “focalizando o modo como o sujeito e a subjetividade são interpelados pelas grandes plataformas, algoritmos e sistemas de inteligência artificial”.

Atualmente, as IAs seguem um paradigma conexionista, baseado em redes neurais que são capazes de aprender diretamente com o ambiente ou, mais especificamente, com a alimentação de enormes quantidades de dados, fazendo relações de probabilidades. É um paradigma aderente aos princípios da cibernética, que acabou se tornando hegemônico. Por isso a necessidade de processamento de gigantescas bases de dados, nas quais são estabelecidas relações e referências.

As tecnologias de reconhecimento facial são um exemplo. Elas têm se tornado uma tendência e são usadas desde aeroportos até na portaria dos condomínios. Elas permitem reconhecer, interpretar e até responder às emoções humanas, por meio de alguns sinais biométricos. Essas técnicas, na sua grande maioria, são baseadas em sete emoções básicas, tomadas como universais (que valeriam para todas as culturas), no Facial Action Coding System (FACS), modelo criado pelo psicólogo americano Paul Ekman.

Esses sistemas carregam uma certa limitação, na avaliação de muitos estudiosos, mas se tornaram muito úteis para a indústria, que viu uma possibilidade de padronização. Eles ignoram diversos sinais de contexto e o risco de reforçar tendências discriminatórias, principalmente se tratando de sistemas utilizados para segurança pública, relembrando práticas como a frenologia (pseudociência do século XIX que propunha ser possível determinar o caráter e as funções intelectuais de uma pessoa com base na forma e nas protuberâncias do crânio).

O desenvolvimento da chamada “IA emocional” (a que interpreta as expressões faciais e assim dispara uma ação cibernética, seja um aviso, uma outra imagem, etc) cada vez mais irá ampliar a complexidade de se lidar com estas tecnologias. Do ponto de vista jurídico, o estudo pontua como a União Europeia tem servido de referência, inclusive ao Brasil, desde a publicação do AI Act, que tenta classificar o que seriam sistemas de baixo, médio e alto risco ou definitivamente proibidos. No caso brasileiro, a proposta sobre o tema continua em tramitação legislativa depois de ter sido aprovada pelo Senado recentemente. A grande questão é como definir estas fronteiras, dada a capilaridade cada vez maior da IA emocional para guiar a ação de outras atividades sistêmicas.

Se o seu tocador de música sugerir uma música alegre, porque suas expressões faciais indicam felicidade, isso parece ser inofensivo. Mas, se imaginarmos que uma expressão de tensão em meio a multidão pode disparar um sinal de alerta a autoridades policiais, aliada a outros sinais como mãos suadas ou aumento da pressão arterial, sendo classificada como uma atitude suspeita, as implicações são outras. E pode levar a uma discriminação a partir de vieses, principalmente se a pessoa em particular for de uma minoria.

A detecção – ou inferência, como preferimos nomear – de emoções não é problemática apenas por ameaçar a privacidade dos indivíduos e coletar seus dados (…) Antes, é preciso perguntar como as inferências emocionais dos sistemas de IA produzem pretensas verdades sobre indivíduos e populações, e de que maneira isso afeta a vida das pessoas.”

Como pontua o artigo, os dados, mesmo aqueles resultantes de reconhecimento facial ou de outra origem biométrica, não são naturais, são produzidos pela tecnologia. À medida que se estabelecem com estatuto de verdade, por convenções universalistas avalizadas como cientificamente corretas, podem carregar distorções difíceis de serem contestadas. No mínimo, é um campo complicado de reivindicar soberania do sujeito frente à relação com a máquina.

O reconhecimento facial é uma das formas, ainda que em grande ascensão, em que a privacidade é comprometida a fim de que nossos dados estejam disponíveis para que as plataformas nos ofereçam respostas. Nesse campo também se aliam as técnicas de dark patterns ou deceptive patterns, que os autores chamam de “design capcioso” – num trocadilho com a tradução de “design malicioso”. Trata-se de um design opaco, que tenta “driblar a consciência” a fim de que o usuário seja manipulado para fazer o que uma plataforma ou sistema esteja buscando.

São técnicas que revelam a “virada comportamental” da indústria do marketing – e das big techs – que começaram a adotar um modelo mais performativo, capaz de intervir sobre as pessoas em tempo real enquanto elas usufruem dos sistemas. As inferências, antes tomadas a partir de dados obtidos através de feedbacks, como likes, compartilhamentos, avaliações ou textos, tornaram-se insuficientes. No capitalismo de plataforma, há uma necessidade de antecipar o futuro e o design capcioso tenta modular o comportamento e assim “antevê-lo” (ou, melhor dizendo, condicioná-lo ou emparedá-lo).

Agora, temos um segundo nível no qual as práticas evoluem para estratégias mais sofisticadas de modulação constante na arquitetura dos sistemas, que acontecem mais rápido do que somos capazes de perceber e afetam a experiência do usuário a longo prazo. Em suma, trata-se de um design capcioso que limita a autonomia do sujeito uma vez que direciona as escolhas e comportamentos de forma sutil, discreta e atraente.”

É o que ocorre exatamente quando uma compra é facilitada com apenas um clique, ou quando cancelar uma corrida parece exigir muito mais passos que o necessário. Dentro desse campo, para além de uma imagem ou um texto, há diversos outros elementos que estão sendo captados constantemente a fim de compor um perfil de uso e preparar a tela seguinte. Essa virada também revela uma mudança da concepção da forma como as pessoas são tratadas: se antes elas eram convidadas a se manifestar deliberada e conscientemente nos ambientes digitais, agora isso não é mais suficiente e é necessário condicioná-las.

(…) para evitar a regulação da coleta de dados, as agências de marketing argumentam que os usuários são indivíduos racionais e soberanos que cedem conscientemente seus dados em troca de ofertas “relevantes”; por outro lado, essas mesmas agências vendem para os seus clientes técnicas herdadas da economia comportamental que pressupõem os tais indivíduos previsivelmente irracionais (…)”

Assim, por um lado o usuário é tratado como racional e consciente para autorizar o compartilhamento dos seus dados com as plataformas; por outro, é mobilizado como irracional, a ponto de o design das ferramentas poderem guiá-lo, influenciando seu comportamento.

Há saídas para este cenário? Certamente não há respostas únicas, pois não há como simplesmente reivindicar uma soberania plena do sujeito, tampouco considerar que precisa ser tutelado. Qualquer um destes pólos falharia em seu ponto de partida: almejar uma solução exclusivamente individual. “É necessário construir coletivamente ecossistemas sociotécnicos que permitam negociação, contestação e revisão constantes, garantindo condições para dissenso e reconsideração de práticas, regras e normas”, afirmam os autores.

Destacando que os sistemas automatizados de inferência emocional – as ditas IAs emocionais – utilizam modelos reducionistas e controversos, e que podem levar a resultados imprecisos e injustos, o estudo lembra que a aplicabilidade não é só questionável, mas pode reforçar desigualdades.

A resposta, portanto, não residiria apenas em uma legislação garantista ou protetiva, porque há sempre limites, áreas cinzas, disputas sobre significados e, obviamente, insuficiências. O que não quer dizer que essas medidas não sejam necessárias. Mas, inspirando-se na perspectiva de tecnodiversidade, os autores do artigo propõe a pensar na importância de uma abordagem coletiva na construção da soberania digital e tecnológica, reconhecendo as complexidades na relação entre humanos e sistemas de IAs.

No entanto, as possíveis alternativas não retiram a possibilidade de se dizer o que não é admissível: os autores apoiam as propostas já existentes de moratória e banimento de sistemas automatizados de detecção emocional, principalmente aqueles manipulados por big techs, como forma primeira de incidir sobre o cenário.

Link para o artigo: https://revista.ibict.br/liinc/article/view/7311

Lavits

Esta nota faz parte do projeto “Inteligência Artificial e Capitalismo de Vigilância no Sul Global”, financiado pela Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade e realizado pelo Labjor - Unicamp | Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo

Quando vigiar comportamentos é parte do negócio (das big techs)

por Maria Vitoria Pereira de Jesus em 9 de abril de 2025, Comentários desativados em Quando vigiar comportamentos é parte do negócio (das big techs)

Economia de dados, economia da atenção, economia comportamental. Podemos dizer que, em todas elas, é o comportamento que possibilita o lucro e a acumulação de capital. Segundo Daniel Black, professor da Universidade de Monash, da Austrália, na economia comportamental o comportamento é a base das ações de empresas e corporações big tech, como Google e Meta. No artigo publicado no The Information Society: an journal international, o professor diz que os engenheiros da Google veem no comportamento o seu estoque de comércio, uma vez que possibilita a predição, modificação, monetização e controle da experiência humana.

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Com base em Black, é possível interpretar que existam diferentes formas pelas quais as empresas agem a partir dos dados comportamentais dos usuários. Embora não explicitamente categorizadas por ele, poderíamos identificar pelo menos três ações principais: (1) criação e oferta de produtos ou serviços, (2) estratégias para garantir maior tempo e permanência no ambiente online, e (3) modificação ou reforço de novos padrões comportamentais nos usuários.

De acordo com o autor, a atuação de empresas como o Google encontram-se diretamente apoiadas na teoria behaviorista de B. F. Skinner, que via o comportamento como a probabilidade de ações particulares serem analisadas e controladas através de alterações e estímulos do ambiente. Nesse sentido, a empresa, com as práticas de direcionamento de anúncios e conteúdos aos usuários, teria feito nada mais nada menos do que a aplicação desse conhecimento em sua plataforma.

O behaviorismo alegava que o comportamento humano poderia ser previsivelmente e confiavelmente influenciado por mudanças em estímulos ambientais, e assim seus princípios passaram a ser aplicados em prisões, escolas e reformatórios, e instituições para doentes mentais e deficientes.”

A relação entre a atuação das empresas Google e Meta com o behaviorismo também foi identificada pela professora Shoshana Zuboff no livro A Era do Capitalismo de Vigilância. Na obra, Zuboff critica reativação das ideias de Skinner, que haviam sido fortemente criticadas na década de 1970. No auge de sua fama, Skinner também conviveu com duras críticas, tanto de seus pares, bem como de membros do governo e de congressistas. Havia um temor que as “mudanças comportamentais” pudessem atingir liberdades civis e individuais.

Nos dias de hoje, as técnicas de reforço positivo e estímulos no ambiente são usadas pelas big techs para influenciar o consumo e práticas dos seus usuários, considerando os interesses dos anunciantes, que podem ser momentâneos e variam ao longo do tempo. Black ressalta que o o paradigma comportamentalista adotado por empresas como Google se destaca pela criação de comportamentos de consumo, que são só possíveis a partir de sistemas de vigilância que coletam dados de ações realizadas no ambiente online.


Para ler o artigo: https://doi.org/10.1080/01972243.2024.2342791

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Cosmolocalismo para evitar a vampirização de recursos pelas big techs

por Fabricio Solagna em 24 de março de 2025, Comentários desativados em Cosmolocalismo para evitar a vampirização de recursos pelas big techs

Os commons, ou os bens comuns, ressurgiram como paradigma na primeira década do novo século, principalmente pela sua aplicabilidade às redes digitais. Trata-se da ideia de que os recursos poderiam ser compartilhados – não seriam nem privados e nem estatais, mas públicos e de todos -, com governança específica, definidos pela comunidade envolvida. Na Internet, pode-se encontrar vários exemplos: a Wikipedia, o OpenStreetMap ou os inúmeros softwares livres. Mas também existem os commons não digitais, como o ar, os oceanos ou um terreno compartilhado. A grande questão que se faz atualmente é: os commons digitais conseguem sobreviver ao capitalismo de plataforma?

Tentando responder a uma parte desta questão, Yosuke Uchiyama, pesquisador no Instituto de Transporte da Universidade de Chulalongkorn, na Tailândia, publicou o artigo “Cosmolocalism Against Platform Capitalism: Evidence From Ridesharing” na revista TripleC, analisando alguns serviços de transporte compartilhado. Seu argumento é que a chave está no que convencionou chamar de “cosmolocalismo”, que mistura cooperativismo de plataforma com a capacidade de gestão de um commons digital.

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Cosmolocalismo é um conceito teórico que enfatiza a integração de recursos digitais compartilhados globalmente com a produção física local. Defende um modelo de produção pós-capitalista através da ponte entre o espaço digital e o espaço físico. Este modelo procura promover um ecossistema mais sustentável e equitativo através de mecanismos de autogestão enraizados em redes P2P e comunidades locais, opondo-se à natureza centralizada e orientada para o lucro do capitalismo de plataforma. 

O pesquisador cita especificamente o caso do Nakatombetsu Rideshare, um aplicativo que atende a ilha Hokkaido, ao norte do Japão, com 5 milhões de habitantes. É uma plataforma social com apoio do governo local que se integra ao planejamento de transporte da região, cobrando pequenas taxas dos utilizadores. Seria o exemplo de integração de um cooperativismo de plataforma com o commons social e digital.

No trabalho, ele também compara outros três casos: o Grab, um concorrente das grandes plataformas no sudeste asiático, que funciona com uma estrutura muito parecida com outros serviços centralizados do capitalismo de plataforma; o La’Zooz, um aplicativo que funciona em Tel Aviv, em Israel, que é gerido a partir de um cooperativismo de plataforma; e, por fim, examina o Teshio Town Rideshare Transport Project, um sistema digital para áreas rurais de Hokkaido, também no Japão. Este último seria um projeto categorizado como um commons social que conta com apoio do governo local, porém não é exatamente uma prática de cosmolocalismo. A ideia do pesquisador foi, portanto, comparar diferentes tipos de serviços a partir da sua forma de gestão.

As cooperativas de plataforma têm se disseminado para ofertar diversos serviços a partir de uma lógica diferente das big techs. Aqui no Brasil surgiram iniciativas como a Federação Nacional das Cooperativas de Mobilidade Urbana, que lançou o aplicativo Liga Coop, na tentativa de congregar esforços de diversas cooperativas locais. Em pequenas cidades, proliferam-se serviços de aplicativos de transporte que oferecem condições de trabalho mais vantajosas aos motoristas. Isso sugere que há uma carência, ou espaços vazios, em que as big techs não conseguem preencher. Ao mesmo tempo, essas iniciativas apontam que há disposição para construir um sistema de governança menos verticalizado, ainda que enfrentem um problema de escala.

Muito embora os bens comuns não digitais operem fora da lógica do capitalismo é fato que o uso abusivo pode levar ao seu esgotamento. É o que o teórico Garrett Hardin chamava de “tragédia dos commons”. No entanto, ele defendia que o uso privado desses bens poderia gerar um uso mais racional, o que é contestado por outros teóricos. O que a história parece demonstrar é que cada vez mais os usos de bens comuns precisam de uma regulação mínima para que perdurem. Nos commons digitais a regra parece ser a mesma, principalmente com o advento das big techs e sua capacidade quase infinita de expansão e monopolização dos serviços na rede.

O que a Uchiyama alerta é que uma série de serviços se confundem em meio a diversos rótulos como economia do compartilhamento ou gig economy. A ascensão do capitalismo de plataformas teria monopolizado espaços digitais, explorando trabalhadores sob sistemas algorítmicos opacos em que empresas de transporte por aplicativo, por exemplo, utilizam modelos de negócios que visam lucro a despeito de direitos dos motoristas. Esse fenômeno estaria produzindo uma “tragédia dos commons” moderna, onde a busca incessante pela maximização de receitas estaria levando à monopolização dos recursos e a degradação da qualidade de vida dos envolvidos.

O compartilhamento de mobilidade pode significar a luta entre commons digitais e capitalismo de plataformas, segundo o estudo de Uchiyama. Ainda que no princípio as práticas de carona solidária promovessem a economia de recursos e a colaboração entre indivíduos, a introdução de plataformas teria distorcido seu propósito, tornando-se prejudicial àqueles que dependem dele para seu sustento.

Uma forma de resistir a essa exploração, segundo o autor, seria impulsionar as iniciativas de cooperativismo de plataformas, onde trabalhadores e usuários se tornam co-proprietários da infraestrutura digital. Mas, para além disso, seria necessário criar estratégias de regulação que limitem a tragédia dos commons digitais, pela expansão do capitalismo de plataformas.

O cosmolocalismo representaria, portanto, essa visão alternativa para um futuro mais sustentável ao combinar a riqueza dos commons digitais com a produção local, aliado a modelos de governança coletiva.

Link para o artigo: https://doi.org/10.31269/triplec.v23i1.1515

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A semelhança genética entre as big techs, suas plataformas e a financeirização informacional

por Fabricio Solagna em 5 de março de 2025, Comentários desativados em A semelhança genética entre as big techs, suas plataformas e a financeirização informacional

O fenômeno da globalização e financeirização econômica ajudou a desenvolver características dos processos de digitalização e plataformização: a aceleração, a predição de eventos e a necessidade inesgotável de expansão.

Imagem gerada por inteligência artificial generativa utilizando palavras-chave: financeirização, plataformização, big techs

É sobre isso que o pesquisador Edemilson Paraná lança algumas reflexões no artigo “Platform studies and the finance-technology nexus: For a ‘genetic approach’”, publicado na revista Platforms & Society. Ele é vinculado à Universidade de Tecnologia Lappeenranta-Lahti (LUT), na Finlândia. O artigo se baseia em sua pesquisa recente na América Latina sobre economia digital.

Por uma abordagem genética o autor se refere a uma investigação genealógica sobre o desenvolvimento das plataformas em relação às finanças, no sentido de inferir um “DNA compartilhado” entre as duas, na medida que evoluem juntas e até mesmo se espelham e se emulam em comportamentos específicos. “A financeirização e plataformização são uma forma de antecipar o futuro no presente”, escreve.

As finanças foram as primeiras a adotar as técnicas digitais. O mercado das bolsas de valores e seus comportamentos voláteis, na dimensão como são hoje, só são possíveis pelo desenvolvimento das redes cibernéticas. Paraná afirma que a platformização deve ser vista não apenas como um facilitador da convergência entre finanças e tecnologia mas como um produto de uma nova configuração desse relacionamento.

É nesse sentido que o autor defende que as redes digitais “mimetizam” o comportamento do mercado financeiro (e, talvez, vice-versa): especulativo, imediatista, desterritorializante e desregulamentado. Isso pode servir de gancho para compreender a dificuldade de se estabelecer padrões mínimos de regulação em temas como redes sociais e tecnologias de IA, que só funcionam a partir de fluxos de big data e de vigilância.

A aceleração informacional dos fluxos são o motor de uma rearticulação da produção, enquanto a circulação e o consumo, também cada vez mais acelerados, promovem uma descentralização técnico-operacional, ao mesmo tempo em que há uma crescente concentração econômica e política.

“Servindo como infraestruturas sociotécnicas, as plataformas atuam como condutores contemporâneos e prováveis futuros para esses processos, marcando uma mudança estratégica em direção à expansão da lógica capitalista para o digital por meio da privatização do conhecimento e da informação. Os estudos de plataforma ainda precisam abordar adequadamente essas dinâmicas.”

A proposta do autor para abordar o tema significa uma compreensão abrangente do nexo finanças-tecnologia. Mais especificamente, a respeito da teoria, propõe integrar as teorias de macroeconomia, sociologia e estudos de mídia. Do ponto de vista teórico, propõe investigar os modelos de negócios compartilhados como foco. Por fim, metodologicamente, defende a combinação de evidências qualitativas e métodos híbridos.

A sua conclusão é que a plataformização representa uma forma altamente avançada de capitalismo, onde a lógica imanente do capital é levada ao seu auge. Nisso, ele se contrapõe a ideias como a de que estamos vendo nascer um neofeudalismo.

Link para o artigo: https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/29768624241286779

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Parasitar o Norte para reconfigurar as tecnologias pelo Sul

por Fabricio Solagna em 20 de fevereiro de 2025, Comentários desativados em Parasitar o Norte para reconfigurar as tecnologias pelo Sul

A ficção científica proporciona diferentes narrativas para lidar com as curiosidades, incertezas e ansiedades sobre as tecnologias digitais, seja enaltecendo a sua capacidade de transformação ou destacando as possíveis ameaças.

Até pouco tempo havia um certo otimismo – quase consensual – em relação à capacidade de transformação da política em função da Internet. Hoje se estabeleceu uma apreensão sobre as big techs e as IAs e como podem tornar nosso mundo cada vez mais desordenado. No centro desse cenário invariavelmente está o empreendedor branco, masculino e do Norte Global como protagonista. Haveria uma forma alternativa de se pensar as possibilidades e consequências do uso das tecnologias digitais a partir do Sul Global?

Imagem gerada por inteligência artificial generativa utilizando palavras-chave: big techs, parasitismo, Sul e Norte global

É a partir daí que a pesquisadora Luisa Cruz Lobato, professora do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio propõe uma outra perspectiva, no artigo “‘South Fabricated’:Computing Stories of Global South Insecurity”, publicado na revista Contexto Internacional. A sua investigação explora a política das tecnologias digitais e o papel do digital na infraestrutura da democracia.

O ensaio se utiliza de dados etnográficos de pesquisa sobre o aplicativo Fogo Cruzado, coletados entre o ano de 2019 e 2021. O aplicativo foi originalmente foi concebido como um “Waze de balas” para produzir dados sobre tiroteios e ocorrências de pessoas atingidas por projéteis perdidos na cidade do Rio de Janeiro. A produção de dados é realizada colaborativamente, com ajuda dos usuários, sendo posteriormente checada e verificada antes da publicação. A iniciativa se transformou em um instituto e tem atuação em outras cidades, integrando um trabalho ativista mais amplo em segurança pública.

O artigo trabalha com a criação de uma fábula, reencenando a trajetória de uma bala que sai de um cano de revólver até se transformar em uma notificação de smartphone para “iluminar a forma como pensamos sobre a política do Sul Global”. Com isso, busca romper a ideia que as infraestruturas digitais são monolíticas e de que as histórias de inovação tecnológica precisam acontecer no Norte para assim se tornarem legítimas e válidas. O “Sul fabricado” interconecta a ficção científica e a fabulação especulativa para recontar histórias de tecnologias digitais.

A estratégia é desconstruir, em primeiro lugar, o “mito da garagem”, a visão de que indivíduos, pela sua capahttps://journals.sagepub.com/doi/10.1177/02632764241304718cidade extraordinária, poderiam criar tecnologias disruptivas a partir de sua casa e mudar o mundo – desvelando assim o aspecto neoliberal e do empreendedorismo de guerra, sobre o investimento e superação do soldado como forma de vitória, os dois sentidos incorporados nessas narrativas. Filmes como De Volta para o Futuro (1985) e A Rede Social são ótimos exemplos elencados pelo trabalho, que refletiriam esee mito no cinema.

Em segundo lugar estaria o mito do “computador universal”, representado no computador do Jornada nas Estrelas. Nesse caso, a tecnologia computacional seria a interface de acesso ao conhecimento ilimitado. É o papel que os algoritmos ocupam cada vez mais no nosso cotidiano, seja para fazer a curadoria das informações nas redes sociais ou nos ajudar nas tarefas mais cotidianas através da Alexa ou da Siri. Mas, na mesma medida que essas interfaces funcionam para nos apresentarem mais informações e conhecimentos, seus algoritmos são tratados como um segredo comercial, fruto da maestria do empreendedorismo de capital de risco, reforçando os aspectos do primeiro mito.

Em terceiro lugar figuraria a “IA maligna”, quando a tecnologia se voltaria contra as próprias pessoas, como foi representada no filme Eu, robô (2004) ou no documentário ativista Slaughterbots (2017). É por onde projetamos as ansiedades e temores de segurança, de perda de controle sobre as máquinas.

Essas três narrativas se entrelaçam no tempo e fornecem uma lente para especular como a tecnologia é vista e retratada. Da mesma maneira, essas camadas podem ser identificadas na produção acadêmica, em especial nas relações internacionais, à qual a autora dedica maior atenção.

O “Sul fabricado” é o estudo de caso do aplicativo Fogo Cruzado, em que a autora percebeu como as tecnologias das big techs são utilizadas para produzir um conhecimento negligenciado ou secundarizado, como a ocorrência de tiroteios ou pessoas atingidas nos territórios. Muitos desses locais onde o aplicativo identificava as ocorrências não tinham sequer mapeamento de geolocalização pelas tradicionais plataformas de mapas, por exemplo. O trabalho colaborativo se vale de relatos que os usuários fazem em mídias sociais (ou seja, também das big techs) e que são catalogadas e verificadas por outras pessoas envolvidas na iniciativa.

Nesse sentido, percebe-se como o poder tentacular de extração de valor do capitalismo de vigilância tem um alcance quase totalizante mas que, ao mesmo tempo, em configurações específicas, pode ser subvertido ou “parasitado” – nas palavras da pesquisadora – a fim de construir uma outra narrativa a partir do Sul.

O Fogo Cruzado é parasitário no sentido de que, primeiro, estabelece uma relação assimétrica de reciprocidade com o Google, tomando emprestado da infraestrutura deste último por meio de suas solicitações de API, enquanto o Google “come” os dados produzidos localmente para aperfeiçoar seu conhecimento do território. Portanto, o Fogo Cruzado não funciona contra o Google (ou outras empresas de tecnologia das quais pode tomar emprestado um ou dois recursos), mas com ele. Segundo, essa relação está sempre sendo modificada, adaptada com base nas necessidades dos criadores de aplicativos e de sua base de usuários.

A ideia de parasitismo e da possibilidade de contaminação abrem a perspectiva para pensar os limites e possibilidades inerentes a um mundo tomado por plataformas e que imprimem um modo de identidade e de representação da vida, como percebido pela autora nas narrativas sci-fi.

O projeto analisado certamente aborda uma das formas de resistência, da possibilidade de uso das tecnologias para além do imaginado pelo empreendedor. Ao mesmo tempo, na história recente, há inúmeros outros casos em que iniciativas de resistência foram sendo moldadas e incorporadas ao capital, como o desenvolvimento de tecnologias e softwares abertos, ainda que suas ideias e sua perspectiva política continuem atuais.

Para ler o artigo: https://www.scielo.br/j/cint/a/PRGJWwH3zkFCN6SzvX6mpjJ/

Lavits

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IA pós-socialista chinesa é alternativa ao tecnoneoliberalismo ocidental

por Fabricio Solagna em 17 de fevereiro de 2025, Comentários desativados em IA pós-socialista chinesa é alternativa ao tecnoneoliberalismo ocidental

A corrida tecnológica pela liderança em tecnologias de IA está em curso e tem mobilizado big techs, financiadores e Estados-nação, que cada vez mais tem apostado no tema como forma de competir geopoliticamente. Recentemente, a nova administração Trump anunciou um investimento de US$ 500 bilhões do setor privado, com ajuda governamental. A China já está construindo cerca de 250 centros avançados de computação, com previsão de conclusão até o final de 2025, como infraestrutura para o desenvolvimento de IAs. Mas haveria alguma diferença da IA desenvolvida pela China e a dos outros países capitalistas, principalmente a dos EUA?

Qiaoyu Cai, filósofo e professor da Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara, propõe o conceito de uma “IA pós-socialista”, que vai além do paradigma dominante do informacionalismo neoliberal. O ensaio foi publicado como um artigo intitulado “The Cultural Politics of Artificial Intelligence in China”, na revista Theory, Culture & Society, referência internacional para estudos científicos inéditos na área de cultura e sociedade.

Segundo o autor, há uma complexa interação entre o apoio estatal, práticas governamentais locais e os investimentos de mercado na China, evidenciando objetivos político-econômicos que resistem à simplificação em um modelo universalizado de capitalismo neoliberal para se pensar o desenvolvimento econômico chinês. As IAs do outro lado do mundo, portanto, devem ser pensadas fora do paradigma neoliberal em que, segundo alguns, teriam nascido.

Uma evidência usada no ensaio é como o termo “popular” é bastante utilizado nos documentos (os whitepapers) no contexto chinês. Já o termo “engajamento cívico e político”, ao contrário, é frequentemente usado no modelo liberal de participação democrática. O conceito de “popular” no contexto chinês está intimamente ligado à supervisão pública, à inserção no regime e à participação controlada, mecanismos que são pilares da estrutura do partido-estado leninista-maoísta. A participação controlada parece ser a chave para entender como o governo compreende a incorporação das massas no desenvolvimento das IAs.

Os princípios ideológicos e organizacionais das instituições leninistas-maoístas estão profundamente enraizados na adoção entusiasmada da IA pela China, pois otimizam as estruturas e práticas políticas existentes para inclusão controlada”.

A grande questão levantada pelo trabalho de Cai é que o chamado “pós-socialismo” não seria só uma condição socioeconômica determinada de uma época, mas uma ordem cultural e política que incorporaria uma forma dominante de modernidade tecnológica. A subjetividade pós-socialista seria uma figura sociopolítica caracterizada por rupturas e continuidades com a era anterior do alto comunismo, algo análogo ao homo economicus do Ocidente no neoliberalismo.

Para examinar o desenvolvimento da IA na China, portanto, haveria a necessidade de não objetificar nem a IA (como essencialmente ocidental) nem a própria China (como um capitalismo de Estado, ou um socialismo neoliberal). Seria preciso dar atenção ao encontro interativo entre a “dimensão alienígena” do pensamento algorítmico e uma experiência distintamente chinesa de modernidade — ambas as quais “permanecem inassimiláveis à reprodução global da subjetividade neoliberal”, segundo o autor.

Link para o artigo: https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/02632764241304718

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Ajuda humanitária como pilar da colonialidade de dados

por Fabricio Solagna em 11 de fevereiro de 2025, Comentários desativados em Ajuda humanitária como pilar da colonialidade de dados

O Sudão do Sul e a Nigéria são muito diferentes. O primeiro é a nação mais jovem do mundo, tendo referendado sua independência em 2011 após uma longa guerra civil. O segundo é um dos países mais desenvolvidos da África, mas que ainda enfrenta grandes desafios para pacificar seus conflitos internos. O que os dois países têm muito em comum é que suas populações passam por deslocamentos internos, em decorrência da violência, das disputas territoriais e da intolerância religiosa.

Nesse contexto é que atuam as operações humanitárias em que ONGs e órgãos das Nações Unidas se dedicam a levar ajuda, principalmente nos acampamentos estabelecidos no nordeste dos dois países.

Vicki Squire e Modesta Alozie, ambas da Universidade de Warwick, em Coventry, no Reino Unido, realizaram uma pesquisa qualitativa com cerca de 80 pessoas em 2021, entre residentes, trabalhadores, gestores – incluindo doadores – e pessoas ligadas às ONGs e as agências das Nações Unidas que atuam nestes locais. O resultado do trabalho foi publicado em um artigo na revista Big Data & Society, com o título “Coloniality and frictions: Data-driven humanitarism in North-Eastern Nigeria and South Sudan”.

A análise do trabalho se concentra em compreender como as injustiças são perpetuadas na chamada “revolução de dados”, ou seja, como o advento da digitalização e da coleta de dados pessoais nessa situação de risco é ainda mais intensificada através da dinâmica paternalista associada à colonialidade do humanitarismo. Segundo as autoras, “a lógica de extrativismo estrutura o ecossistema de dados humanitários, a despeito do consentimento ou entendimento das populações sobre o uso das informações a seu respeito”.

Os dados biométricos são amplamente utilizados e auxiliam na distribuição de provisões básicas, na maioria das vezes usando cartões de identidade eletrônicos. Ocorre que essa coleta é muito mais orientada pela demanda de responsabilização ou acompanhamento dos doadores do que necessariamente uma necessidade primeira para as populações atendidas. Ou seja, as populações atendidas não estão em posição de perceber que o recebimento de mais ajuda está condicionado a entregarem suas digitais a um banco de dados estrangeiro, por exemplo.

Em muitos relatos coletados, percebeu-se um evidente descontentamento ao notarem que a maioria das demandas não são atendidas, ainda que a coleta e compartilhamento de dados e informações entre os atores da ajuda humanitária sejam passos necessários. Para além disso, nem sempre os critérios de consentimento são observados ou totalmente considerados. No limite, a ajuda é tão necessária para essas populações vulneráveis que se justificaria pular etapas sem que as pessoas pudessem compreender o porquê da necessidade de compartilhar seus dados.

“A análise mostrou como as pessoas que recebem assistência são sistematicamente desconsideradas como sujeitos de conhecimento com capacidade de conhecer e agir sobre os dados gerados sobre eles. Embora especialistas humanitários estejam cada vez mais cientes das práticas extrativas nas quais a colonialidade dos dados é fundamentada, uma série de atritos, no entanto, emerge em torno das disposições humanitárias, coleta de dados e a ética da assistência humanitária orientada por dados.

No centro da questão, evidencia-se que a coleta de dados se torna um pilar fundamental da colonialidade da ajuda humanitária, no sentido de que as organizações internacionais, ONGs e agências da ONU envolvidas no processo podem facilmente desconsiderar questões éticas ou de boas práticas em nome da ajuda humanitária. É bom ressaltar que essa ajuda não é algo opcional para as comunidades envolvidas, trata-se de receber uma barraca ou alimento para se estabelecerem em campos de refugiados internos aos países. Isso intensifica ainda mais a necessidade de pesquisas e complexifica a forma como a questão é abordada.


Para ler o artigo: https://doi.org/10.1177/20539517231163171

Lavits

Esta nota faz parte do projeto “Inteligência Artificial e Capitalismo de Vigilância no Sul Global”, financiado pela Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade e realizado pelo Labjor - Unicamp | Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo

Cidades inteligentes e vigilantes que só funcionam para os bairros ricos

por Fabricio Solagna em 7 de fevereiro de 2025, Comentários desativados em Cidades inteligentes e vigilantes que só funcionam para os bairros ricos

O termo “cidades inteligentes” se tornou badalado nas últimas décadas, principalmente nos discursos de quem tenta promover transformações tecnosolucionistas para os problemas das grandes cidades. Trata-se de uma abordagem que mistura exploração de dados, racionalização neoliberal e uma governança de novo tipo, num contexto de políticas públicas voltadas ao capitalismo tardio.

Imagem gerada por inteligência artificial generativa utilizando palavras-chave: vigilância, CCTV, câmeras

Na segurança pública essa abordagem encontra alavancagem. Há um farto mercado interessado em oferecer “soluções inovadoras”. Ao mesmo tempo, os gestores do eEstado tentam melhorar os indicadores de violência, oferecendo maior capacidade de controle e gestão de incidentes, principalmente em grandes metrópoles, como é o caso de São Paulo.

É sobre esse cenário que se debruça o artigo “Smart Security? Transnational Policing Models and Surveillance Technologies in the City of São Paulo”, que faz parte do livro Policing and Intelligence in the Global Big Data Era, da EditoraPalgrave Macmillan. Publicado por Alcides Eduardo dos Reis Peron e Marcos César Alvarez, pesquisadores paulistas da FECAP e USP, respectivamente, o estudo é parte de uma pesquisa etnográfica realizada entre 2018 e 2020. Os pesquisadores conversaram com associações de bairro, moradores, pesquisadores, policiais e empresários em regiões onde os programas City Cameras e Vizinhança Solidária foram implementados.

O City Cameras é um sistema de vigilância em nuvem que monitora espaços públicos e que pode se integrar com sistemas particulares, como casas ou empresas, oferecendo armazenagem, gerenciamento centralizado e produção de estatísticas, providos pela CompStat Software.

“Essas imagens podem ser acessadas tanto pelos proprietários das câmeras quanto pelos agentes de segurança pública e privada. Supostamente pretendem servir tanto como um mecanismo para dissuadir o crime quanto como uma ferramenta para a investigação policial.”

É, portanto, muito mais que um circuito de câmeras (CCTV) interconectado. É um modelo – técnico e operacional – em que residentes, comerciantes ou empresas de segurança podem seguir e assim fazer parte de um sistema mais amplo, provendo sua infraestrutura particular de vigilância eletrônica para o Estado, de forma compartilhada.

O programa Vizinhança Solidária tem raízes no modelo de policiamento comunitário da década de 1980 e foi adotado pelo governo municipal e estadual, além de instituições como bombeiros e Polícia Militar. Segundo o material oficial, o objetivo é promover a “mobilização social em prol do fortalecimento da cultura de paz”. Dentro das ações do programa, institui-se tutores locais, que são orientados pelos agentes de segurança e fazem uma intermediação e o que se denomina “prevenção primária”.

Na pesquisa de Reis e Alvarez, percebeu-se que o Vizinhança Solidária ajuda no reforço e legitimação do City Cameras para os residentes e empreendimentos dos bairros. Os autores chamam a atenção para um aspecto de descentralização das políticas. Bairros se tornam “esferas de segurança” ou “espaços comunitários”, onde atores públicos e privados, civis e militares, exercem a governança da segurança pública. Apesar de parecer, a princípio, que essa abordagem poderia trazer uma gestão mais democrática da segurança, o que a pesquisa avalia é que há uma transferência de certas responsabilidades para a esfera privada.

Ocorre que essa governança é muito diferente do que ocorre num bairro como Pinheiros e a periferia da cidade. Em especial na cidade de São Paulo, é notório o aumento da letalidade policial e a resistência do governador em utilizar amplamente as câmeras corporais dos agentes de segurança, como forma de inibir excessos e erros de conduta.

A tecnologia, no caso, ajuda a produzir uma cidade controlada, e atrativa para a iniciativa privada, apenas nos locais onde a política quer priorizar, com a colaboração de agentes privados para exercer funções que deveriam ser do Estado.

Leia o artigo completo em: https://doi.org/10.1007/978-3-031-68326-8_4

Lavits

Esta nota faz parte do projeto “Inteligência Artificial e Capitalismo de Vigilância no Sul Global”, financiado pela Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade e realizado pelo Labjor - Unicamp | Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo

“Explorador de dados” é o novo precário que alimenta as casas de apostas online

por Fabricio Solagna em 9 de dezembro de 2024, Comentários desativados em “Explorador de dados” é o novo precário que alimenta as casas de apostas online

Imagine um pequeno estádio de futebol num sábado ao meio-dia, onde ocorre um jogo da terceira divisão do campeonato estadual goiano. Não há um grande público, tampouco cobertura de imprensa ou transmissão ao vivo, mas duas pessoas registram dados do jogo freneticamente nos seus celulares: são dois data scouts ou exploradores de dados, que foram previamente contratados para fornecer dados da partida para serviços de apostas online.

Imagem gerada por inteligência artificial generativa utilizando palavras-chave: apostas online, futebol e IA

Para compreender esse fenômeno, o sociólogo Julio Souto Salom, professor de sociologia na Universidade da Bahia (UFBA), fez uma pesquisa entre os trabalhadores que fazem este tipo de coleta de dados, através de uma observação participante. O resultado foi publicado no artigo “Abasteciendo con datos las apuestas deportivas online: data scouts y extractivismo ampliado”, disponível na revista Athena Digital.

A pesquisa acompanhou o trabalho de alguns data scouts entre 2019 e 2020, cuja tarefa era extrair informações de jogos em diferentes campeonatos para alimentar os sistemas de apostas recorrentes, aquelas que permitem apostas enquanto o jogo acontece (in-play betting).

Há uma miríade desses serviços de apostas online e a todo momento elas invadem o horário nobre da televisão, patrocinam influenciadores, inundam as redes sociais com apelos constantes, tudo para convencer o público a “testar a sorte”. A cobertura de jogos e partidas é ampla, indo além do futebol. O explorador de dados é imprescindível para fazer girar a máquina, afinal “équem produz o fluxo de dados que move a anima o feed de dados da tela dos apostadores”, segundo Julio.

Com infraestruturas tecnológicas e apostando em persuasões psicológicas e culturais, esta modalidade influencia o comportamento do apostador. As plataformas de jogo permitem que a prática de apostas seja simultânea à visualização do evento. Isso modifica comportamentos e as motivações: em vez de considerar o resultado, o apostador confia mais na sua capacidade de analisar e prever eventos. Para manter a recorrência, torna-se imprescindível oferecer um catálogo infinito de partidas disponíveis para apostas ao vivo.

As plataformas de apostas online tiveram uma explosão no Brasil nos últimos anos. A liberação das bets se deu em 2018, por meio da lei nº 13.756, que na prática legalizou a exploração de apostas online sem pagamento de impostos e qualquer obrigatoriedade de retorno ao apostador. O tamanho do problema é tão relevante que um estudo do Banco Central identificou que os brasileiros chegaram a gastar mais de R$ 20 bilhões em apostas por mês neste último ano. Depois da repercussão, o governo federal publicou algumas normas adicionais a fim de estabelecer alguma regulação para atuação desse tipo de serviço. Uma CPI foi instaurada no Senado, depois que uma investigação policial envolveu artistas, influencers e as plataformas de apostas, em uma suposta lavagem de dinheiro.

O trabalho dos data scouts, não é recente, e está conectado a empresas estrangeiras, especializadas em dados, que contratam pessoas para coletar informações em campo e negociam os dados como atravessadores. Nos últimos anos, nomes como Perform Group, Sportsradar, Real Time Sports (RTS), Sportscast ou Genius Sports firmaram acordos os campeonatos, competições e, fundamentalmente, plataformas de apostas, com a tarefa de coletar, organizar, analisar e entregar dados desportivos em tempo real para sites como Bet365, Btwin, Sportingbet, Betfair, Betway e outras. Os data scouts é que fecham o elo e transformam as partidas em estatística, disponíveis em tempo real para os apostadores.

Os achados de Julio Salom demonstram que, em geral, os exploradores de dados têm empregos formais e o trabalho de dadificação é encarado como uma atividade secundária, ainda que os rendimentos desta operação possam facilmente superar os ganhos líquidos da sua fonte principal. Como os pagamentos são realizados em moeda estrangeira, o câmbio favorece. Cada jogo pode render até R$ 400,00 e facilmente uma pessoa pode cobrir dez jogos por mês. É um trabalho que exige habilidades mínimas em inglês para preencher os dados durante o jogo (ou para narrar acontecimentos, a depender de cada empresa). Praticamente todos os entrevistados possuem curso superior e uma relação longa no trabalho de dadificação. Em alguns casos, com histórico de quase uma década.

Diferente do que outros trabalhos em plataformas como Uber ou Ifood, o conhecimento prévio das necessidades desse tipo de trabalho faz diferença. Os data scouts se reportam a um coordenador direto e estabelecem laços de confiança, na medida que também podem propor jogos e/ou campeonatos para cobrir. Há uma certa organização geográfica para que não haja muita competição sobre quem irá cobrir as partidas numa mesma área. Por fim, a pesquisa também demonstra que há uma relação afetiva com o próprio esporte, ou seja, há um certo prazer em acompanhar as partidas e também receber por isso.

É interessante notar a especificidade desse trabalho. Ainda que a geração e coleta de dados sejam cada vez mais automatizados, seja por dispositivos vestíveis, seja pela capacidade transformação de vídeos em dados por meio de IAs cada vez mais precisas, ocorre que muitas vezes certas jogadas, características de certos jogadores ou da própria arbitragem, sejam mais facilmente interpretadas por esses olheiros que estão presencialmente nos locais. Além disso, alia-se a característica de que essa indústria precisa de uma imensa quantidade de dados de inúmeros jogos, muitos deles com pouca infraestrutura de transmissão, portanto exigindo o trabalho de campo.

O cenário pesquisado por Julio demonstra o que se categoriza por extrativismo expandido, no sentido de que todo e qualquer tipo de dado pode ser convertido, monetizado, a partir de sua exploração e disponibilização em plataformas. Os trabalhadores são uma ponta da cadeia, onde o objetivo é que cada vez mais pessoas depositem esperança em ganhar retornos na sua capacidade de predição no próximo acontecimento do jogo. É um jogo em que, no agregado, a banca sempre ganha e que ainda pode servir para trampolim de negócios mais escusos, como é o caso dos processos investigados no Brasil pela CPI.

Para os data scouts, continuam valendo as regras desse tempo de trabalho precarizado, de autogestão do tempo, da necessidade de dedicação e flexibilidade da jornada de trabalho e, obviamente, os laços precários, frágeis e os pagamentos pontuais.


Para ler o artigo da pesquisa, acesse: https://doi.org/10.5565/rev/athenea.3483

Lavits

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“Só fiz a tecnologia”: setor privado estimula tecnovigilância na Índia

por Fabricio Solagna em 5 de dezembro de 2024, Comentários desativados em “Só fiz a tecnologia”: setor privado estimula tecnovigilância na Índia

A Índia possui uma indústria privada de tecnologias para vigilância que representa um mercado de US$ 2 bi e em crescimento exponencial. Estima-se que alcançará US$ 8 bi até 2028, fruto da maciça encomenda de soluções pelo Estado. É um misto de empresas já estabelecidas, inclusive estrangeiras, que atuam e produzem no país e, principalmente, numerosas startups que oferecem diversos serviços, como reconhecimento facial.

As parcerias público-privadas para coleta e tratamento de dados pessoais dos cidadãos não parecem algo corriqueiro para a população indiana, o que gera certa apreensão, principalmente entre especialistas, pesquisadores e lideranças da sociedade civil. Ao mesmo tempo, a abordagem do mercado tenta criar vínculos pessoais. As campanhas publicitárias das empresas e corporações envolvidas trabalham com sentimentos e até preconceitos para vender soluções que, em teoria, ajudariam a tornar a polícia mais eficiente e as cidades mais seguras.

Imagem gerada por inteligência artificial generativa utilizando palavras-chave: Índia, IA e segurança pública

É o que observa a pesquisadora Shivangi Narayan, engenheira, jornalista e socióloga com experiência em estudos do policiamento digital, participante do projeto AGOPOL (Algorithmic Governance and Cultures of Policing: Comparative Perspectives from Norway, India, Brazil, Russia, and South Africa).

Os resultados de sua pesquisa etnográfica, realizada entre 2021 e 2022, foram publicados no artigo “For Your Own Safety’: The Soft Push of Surveillance by the Private Sector in India”, que faz parte do livro Policing and Intelligence in the Global Big Data Era.

“A indústria cria uma demanda por tecnologias de vigilância tanto de forma aberta como dissimulada. Se apoia em ideias existentes no imaginário popular e em ideologias dominantes, além de apostar em crenças, ansiedades, dúvidas ou mesmo em superstições do seu público-alvo. Um exemplo é a manipulação dos receios em relação às religiões minoritárias na Índia, principalmente a muçulmana. Ou sobre a frustração com a eficiência do setor público, ou sobre a necessidade de ‘salvar a família’ ou proteger a ‘honra das mulheres'”.

Uma das empresas é a Hyperverge, que está envolvida com o sistema de reconhecimento facial fornecido para a polícia de Nova Deli. O sistema foi incorporado como forma de tornar o policiamento mais eficiente, com capacidade de detectar criminosos a partir de câmeras em locais públicos. Entretanto, as falhas de detecção são admitidas pela própria empresa fornecedora, cujos dispositivos não são capazes de diferenciar entre um menino e uma mulher caso a distância seja um pouco maior que alguns metros, por exemplo.

Apesar disso, no discurso das autoridades, alguns casos como a detecção e reconhecimento de pessoas envolvidas em protestos – e principalmente os que tem motivações políticas e religiosas em função do Islamismo -, são suficientes para justificar e atestar a efetividade das tecnologias.

Outra grande iniciativa implantada em toda a Índia foi a identificação única através da Autoridade de Identificação Única da Índia (UIDAI) ou Aadhaar. Trata-se de um sistema de 12 dígitos que funcionam como identificadores dos cidadãos, e que também permite a conexão com outros sistemas, como de pagamentos instantâneos com leitura biométrica, ou reconhecimento facial para uso nos aeroportos. “O Aadhar foi a porta de entrada do setor privado no setor público”, relata a pesquisa. Um dos fundadores da Infosys, que projetou esta tecnologia, Nandan Nilekani, tornou-se chefe da UIDAI e modelou boa parte das políticas públicas relacionadas à identificação digital no país.

O Aadhaar criou uma operação gigante, com todos os dados dos cidadãos, sendo operado por uma série de empresas privadas. Porém, a gigantesca população indiana acaba nem sempre tem a mesma qualidade de acesso aos serviços públicos em função de diversos problemas na implementação dessa transformação digital, seja por conta dos limites na infraestrutura ou mesmo pela cultura de uso envolvida nas novas tecnologias – semelhante o que retratou o filme inglês “Eu, Daniel Blake”, do diretor Ken Loach, numa comparação no contexto indiano. Se, contudo, confrontados com os efeitos colaterais causados pela implementação dos dispositivo, os executivos das empresas se eximem de responsabilidade.

“Quando questionados sobre o aspecto excludente do Aadhaar e outros, os executivos alegaram que apenas construíram a tecnologia e não tiveram nenhum papel na forma como ela foi usada”.

Como afirma a autora da pesquisa, as tecnologias utilizadas na segurança criaram um hype e expectativas que não tem a ver com a realidade dos produtos. Para além disso, há um vácuo de responsabilidade em que as empresas não se inserem no ecossistema de implementação, revisão e melhoramento das políticas das suas tecnologias, relegando esse papel ao Estado. Esse arranjo fica confortável para as empresas, que ficam com a tarefa de criar, vender e lucrar com as soluções, sem se preocupar com as consequências.

“O mais surpreendente é que a principal característica dessa indústria é a forma como ela insiste em não ser produto de uma determinada cultura, em não ser impactada pela cultura ou pela sociedade, ou então, a forma como se distancia repetidamente do próprio ambiente em que trabalha e que molda, situando-se fora da cultura e dentro de um ambiente puramente imaginário, racional, imparcial, neutro e tecnocrático.”

Imaginar que há relação com a operação de políticas de segurança que ajudam a decidir sobre vítimas e culpados, ou sobre quem tem acesso a alguns serviços do Estado, faz pensar que é preciso que as tecnologias estejam sob escrutínio democrático. Isso sugere a necessidade de processos de participação e transparência urgentes para a implementação destas políticas públicas, principalmente no Sul Global.

Para ler o artigo: https://doi.org/10.1007/978-3-031-68326-8_6

Lavits

Esta nota faz parte do projeto “Inteligência Artificial e Capitalismo de Vigilância no Sul Global”, financiado pela Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade e realizado pelo Labjor - Unicamp | Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo