O colonialismo sempre se valeu da vigilância para controlar e extrair o máximo de valor das populações e dos territórios conquistados. Na África do Sul, essas práticas estavam presentes nos últimos séculos, mas se perpetuaram em outros moldes por meio de estruturas de vigilância digital.

Imagem gerada por inteligência artificial generativa utilizando palavras-chave: Africa, IA, Internet e desigualdade
No princípio, se utilizavam “passes de papel” ou até mesmo marcas na pele em escravizados e indígenas, mas foi no regime do Apartheid que os computadores chegaram para ajudar na sistematização e categorização racial. Com a democratização, em 1994, esperava-se que as redes digitais pudessem inaugurar outros tempos, mas o que ocorreu foi o início a uma nova forma de dominação: o colonialismo digital. Em todos os casos, é notória a participação e colaboração das elites locais com as potências estrangeiras.
Esta análise histórica sobre as práticas de vigilância e como elas se remodelaram no que considera colonialismo digital é discutida no trabalho de Michael Kwet no capítulo “Surveillance in South Africa: From Skin Branding to Digital Colonialism”, publicado no livro The Cambridge Handbook of Race and Surveillance, de 2023.
O livro conta com 16 capítulos de diversos autores, que analisam diferentes situações e práticas vigilantistas das big techs ao redor do mundo. Kwet é doutor em sociologia pela Universidade de Rhodes na África do Sul, atualmente é pesquisador no Centre for Social Change na Universidade de Joanesburgo e no Information Society Project na Escola de Direito de Yale.
Computadores da IBM e da HP foram amplamente utilizados depois de 1948 para auxiliar na catalogação racial que sustentaram as políticas do Apartheid na África do Sul. As bases de dados organizadas foram fundamentais para que a segregação racial pudesse ser mantida. Hoje, corporações de tecnologia norte-americanas, como Google, Facebook, Microsoft e Amazon, passaram a dominar a infraestrutura digital da África do Sul, centralizando o controle de dados, comunicação e vigilância. Até mesmo os cabos de fibra óptica que alimentam os backbones de conexão do país à Internet são de propriedade ou alugados pelas big techs. Em outro trabalho, intitulado “Undersea cables in Africa: The new frontiers of digital colonialism”, publicado neste blog, as autoras Esther Mwema e Abeba Birhane analisam como os cabos de Internet traçam as mesmas rotas dos navios negreiros. Escreve Kwet:
“Hoje, as veias abertas do Sul Global de Eduardo Galeano são as veias digitais que atravessam os fundos oceânicos, conectando um ecossistema tecnológico de propriedade e controlado por um punhado de corporações, em sua maioria sediadas nos EUA.”
O autor aborda o Projeto Vumacam como emblemático da nova era do colonialismo digital, principalmente por caracterizar um sistema de vigilância urbana em expansão. Trata-se de uma estrutura que centraliza o monitoramento da população, sobretudo em espaços públicos, operando por meio de algoritmos opacos e tecnologias de inteligência artificial, voltadas ao reconhecimento facial. Tais ferramentas, segundo o autor, têm o potencial de reproduzir formas contemporâneas de discriminação racial herdadas do regime do Apartheid, agora mediadas por um fetiche tecnológico.. O projeto promove a implantação em massa de câmeras de vigilância em Joanesburgo, viabilizado por meio de parcerias público-privadas, nas quais os direitos à privacidade são constantemente colocados em risco, principalmente por compartilhar com entes privados dados sensíveis e biométricos das pessoas.
Outro exemplo do colonialismo digital no país seria a “Operação Phakisa na Educação”, um projeto que permitiu a instalação de softwares da Microsoft e do Google em 26 mil computadores escolares em 2015, mesmo existindo uma lei que incentivava a adoção de softwares livres na administração pública, aprovada anteriormente. Kwet ressalta o quanto essa política reforça a dependência tecnológica e aprofunda a perda de soberania do país sobre a gestão dos dados educacionais. O trabalho alerta o quanto este tipo de prática acaba por normalizar o vigilantismo na área da educação.
Apesar disso, há possibilidades de resistência. Kwet cita o movimento Friends of a Free Internet, que tem entre suas bandeiras uma infraestrutura digital descentralizada, baseada em software livre, propriedade comunitária e acesso universal. Eles são críticos à vigilância imposta pelas big techs e tentam criar alternativas democráticas e soberanas a partir de arranjos digitais locais.
O caso da África do Sul é um exemplo de como a vigilância sempre esteve no centro dos projetos de dominação racial e econômica, a partir de interesses estrangeiros, mas contando com a colaboração de elites locais para executar suas políticas imperialistas, segundo o autor. A nova luta agora seria a emancipação digital para “quebrar as correntes do colonialismo digital”.
Para ler o artigo: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3677168

Esta nota faz parte do projeto “Inteligência Artificial e Capitalismo de Vigilância no Sul Global”, financiado pela Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade e realizado pelo Labjor - Unicamp | Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo