As veias abertas do Sul Global: vigilância no centro da dominação racial e econômica na África do Sul

por Fabricio Solagna em 8 de junho de 2025, Comentários desativados em As veias abertas do Sul Global: vigilância no centro da dominação racial e econômica na África do Sul

O colonialismo sempre se valeu da vigilância para controlar e extrair o máximo de valor das populações e dos territórios conquistados. Na África do Sul, essas práticas estavam presentes nos últimos séculos, mas se perpetuaram em outros moldes por meio de estruturas de vigilância digital.

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No princípio, se utilizavam “passes de papel” ou até mesmo marcas na pele em escravizados e indígenas, mas foi no regime do Apartheid que os computadores chegaram para ajudar na sistematização e categorização racial. Com a democratização, em 1994, esperava-se que as redes digitais pudessem inaugurar outros tempos, mas o que ocorreu foi o início a uma nova forma de dominação: o colonialismo digital. Em todos os casos, é notória a participação e colaboração das elites locais com as potências estrangeiras.

Esta análise histórica sobre as práticas de vigilância e como elas se remodelaram no que considera colonialismo digital é discutida no trabalho de Michael Kwet no capítulo “Surveillance in South Africa: From Skin Branding to Digital Colonialism”, publicado no livro The Cambridge Handbook of Race and Surveillance, de 2023.

O livro conta com 16 capítulos de diversos autores, que analisam diferentes situações e práticas vigilantistas das big techs ao redor do mundo. Kwet é doutor em sociologia pela Universidade de Rhodes na África do Sul, atualmente é pesquisador no Centre for Social Change na Universidade de Joanesburgo e no Information Society Project na Escola de Direito de Yale.

Computadores da IBM e da HP foram amplamente utilizados depois de 1948 para auxiliar na catalogação racial que sustentaram as políticas do Apartheid na África do Sul. As bases de dados organizadas foram fundamentais para que a segregação racial pudesse ser mantida. Hoje, corporações de tecnologia norte-americanas, como Google, Facebook, Microsoft e Amazon, passaram a dominar a infraestrutura digital da África do Sul, centralizando o controle de dados, comunicação e vigilância. Até mesmo os cabos de fibra óptica que alimentam os backbones de conexão do país à Internet são de propriedade ou alugados pelas big techs. Em outro trabalho, intitulado “Undersea cables in Africa: The new frontiers of digital colonialism”, publicado neste blog, as autoras Esther Mwema e Abeba Birhane analisam como os cabos de Internet traçam as mesmas rotas dos navios negreiros. Escreve Kwet:

Hoje, as veias abertas do Sul Global de Eduardo Galeano são as veias digitais que atravessam os fundos oceânicos, conectando um ecossistema tecnológico de propriedade e controlado por um punhado de corporações, em sua maioria sediadas nos EUA.”

O autor aborda o Projeto Vumacam como emblemático da nova era do colonialismo digital, principalmente por caracterizar um sistema de vigilância urbana em expansão. Trata-se de uma estrutura que centraliza o monitoramento da população, sobretudo em espaços públicos, operando por meio de algoritmos opacos e tecnologias de inteligência artificial, voltadas ao reconhecimento facial. Tais ferramentas, segundo o autor, têm o potencial de reproduzir formas contemporâneas de discriminação racial herdadas do regime do Apartheid, agora mediadas por um fetiche tecnológico.. O projeto promove a implantação em massa de câmeras de vigilância em Joanesburgo, viabilizado por meio de parcerias público-privadas, nas quais os direitos à privacidade são constantemente colocados em risco, principalmente por compartilhar com entes privados dados sensíveis e biométricos das pessoas.

Outro exemplo do colonialismo digital no país seria a “Operação Phakisa na Educação”, um projeto que permitiu a instalação de softwares da Microsoft e do Google em 26 mil computadores escolares em 2015, mesmo existindo uma lei que incentivava a adoção de softwares livres na administração pública, aprovada anteriormente. Kwet ressalta o quanto essa política reforça a dependência tecnológica e aprofunda a perda de soberania do país sobre a gestão dos dados educacionais. O trabalho alerta o quanto este tipo de prática acaba por normalizar o vigilantismo na área da educação.

Apesar disso, há possibilidades de resistência. Kwet cita o movimento Friends of a Free Internet, que tem entre suas bandeiras uma infraestrutura digital descentralizada, baseada em software livre, propriedade comunitária e acesso universal. Eles são críticos à vigilância imposta pelas big techs e tentam criar alternativas democráticas e soberanas a partir de arranjos digitais locais.

O caso da África do Sul é um exemplo de como a vigilância sempre esteve no centro dos projetos de dominação racial e econômica, a partir de interesses estrangeiros, mas contando com a colaboração de elites locais para executar suas políticas imperialistas, segundo o autor. A nova luta agora seria a emancipação digital para “quebrar as correntes do colonialismo digital”.

Para ler o artigo: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3677168

Lavits

Esta nota faz parte do projeto “Inteligência Artificial e Capitalismo de Vigilância no Sul Global”, financiado pela Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade e realizado pelo Labjor - Unicamp | Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo

Cooperativismo e federações podem ser um dos caminhos para um mundo pós big techs

por Fabricio Solagna em 3 de junho de 2025, Comentários desativados em Cooperativismo e federações podem ser um dos caminhos para um mundo pós big techs

As plataformas remodelaram as relações de trabalho na última década e intensificaram a lógica neoliberal já existente. Agora, o fluxo e os processos de trabalho foram transferidos para os algoritmos, que determinam uma suposta melhor solução entre quem demanda e quem realiza uma corrida, uma carona ou uma entrega.

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Os trabalhadores dependem das infraestruturas técnicas das big techs que, ao mesmo tempo, dificultam sua organização coletiva. Cada um passou a ser considerado um “empreendedor”, motivado a alcançar metas e objetivos que brotam na tela do celular.

Entretanto, há um recorte visível: enquanto no Norte as plataformas surgiram como uma renda complementar após a crise de 2008, no Sul elas se transformaram em uma alternativa (e muitas vezes a única forma) para inserção no mundo do trabalho. Um dos resultados é que na periferia o trabalho digital está mais concentrado em atividades menos qualificadas como entrega e transporte.

Nesse cenário é que tem surgido diversas iniciativas de cooperativismo de plataforma, soluções em que os trabalhadores são também donos e gestores das mesmas, controlando o processo algoritmo, sendo capazes de estabelecer suas próprias regras. O desafio é enorme, principalmente técnico, mas também de gestão e de convencimento do publico alvo em utilizar um novo aplicativo.

O pesquisador Felipe Gomes Mano, doutorando em Direito na Universidade Estadual Paulista (UNESP), se debruça sobre três experiências no artigo “Cooperativismo de plataformas e federações de cooperativas: unindo forças na busca por soberania digital e autonomia no trabalho no contexto Norte-Sul”, publicado no periódico Liinc em Revista, na edição especial que trata de questões de IA e soberania.

Seu objetivo foi comparar experiências na América Latina, com foco na Argentina e no Brasil, e o caso europeu da CoopCycle, uma federação de cooperativas de entregas espalhadas por doze países e que produziu diversos softwares em código aberto, disponíveis para outras cooperativas.

A CoopCycle nasceu na França após uma greve de entregadores. Atualmente, reúne mais de 70 coletivos e combina o trabalho de entrega com militância institucional a fim de influenciar os tomadores de decisão a criar leis e normas que proporcionem um melhor ambiente para o desenvolvimento de iniciativas similares. Uma das características da CoopCycle é exigir o uso exclusivo de bicicletas, condizente com seus valores de sustentabilidade. A experiência é uma das mais bem desenvolvidas no que se refere a federação de cooperativas, com regras bem definidas para alocação de recursos, com um sistema de decisão a partir de assembleias em que cada membro tem voto.

Na América Latina, o software da CoopCycle já teve projetos pilotos no Chile, Uruguai, México e Argentina. Lá, foi adotado pela FACTTTIC, uma federação de cooperativas de tecnologia, como forma de promover a experiência no país. Por meio de parcerias com universidades e apoio do poder público, conseguiu atacar desafios como desenvolver soluções territoriais de integração com meios de pagamento do país, adaptar mapas e resolver outras questões logísticas específicas. Em dois anos, conseguiu aglutinar 18 coletivos e cooperativas de entrega. Entretanto, um dos maiores desafios é o uso majoritário de motocicletas para entrega, ao passo que para o uso do Coopcycle é imperativo o uso de bicicletas. Atualmente, foram definidas algumas metas de migração da frota.

No Brasil, há a experiência da LigaCoop, formada por nove cooperativas de motoristas em sete estados. Eles têm seu próprio aplicativo, desenvolvido por uma empresa parceira. A federação já estabeleceu parcerias com universidades, órgãos públicos e busca criar um ecossistema sustentável para o transporte cooperativo. A Liga enfrenta os mesmos desafios estruturais das outras experiências no Sul, como a necessidade de recursos, dificuldades técnicas e dependências de algumas plataformas – principalmente do GoogleMaps. Ao mesmo tempo, é uma experiência bem consolidada e demonstra capacidade organizativa e de expansão.

Outro caso no Brasil é a Cooperativa de Sebos do Brasil, uma iniciativa ainda embrionária que ainda precisa desenvolver suas plataformas. O objetivo é enfrentar as dificuldades da monopolização de venda de livros usados pelas plataformas no país.

Mano considera que as federações de cooperativas de plataformas podem ser mecanismos para avançar em direção à autonomia e soberania no trabalho digital. No entanto, as experiências do Sul Global exigem adaptações aos territórios, como demonstram os casos estudados. O ajuste das soluções exige observar os contextos locais, considerando fatores culturais, regras e o enfrentamento dos desafios políticos. O intercooperativismo, entre atores do Norte e do Sul, parece ser uma estratégia promissora para fortalecer essas iniciativas.

Para ler o artigo: https://revista.ibict.br/liinc/article/view/7294/7073

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Vigilância e resistências entre trabalhadores especializados na China: “tenho receio de ser substituído por uma IA”

por Fabricio Solagna em 26 de maio de 2025, Comentários desativados em Vigilância e resistências entre trabalhadores especializados na China: “tenho receio de ser substituído por uma IA”

Os chamados “trabalhadores do conhecimento”, profissionais cujas atividades se baseiam em criar, compartilhar e gerir conhecimento especializado, ligados principalmente às áreas de tecnologia da informação (TICs) ou da indústria criativa, representam um volume considerável da massa laboral chinesa. O país é considerado o maior em crescimento no Sul Global e consolidou uma acelerada industrialização de ponta nas últimas décadas.

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Entretanto, o chamado “bem-estar laboral” se mostra um desafio, ainda que diversas medidas tenham sido implementadas nos últimos anos, como a jornada de trabalho de oito horas diárias. Mesmo assim, as dificuldades de fiscalização, a competitividade acirrada e a mudança de cultura corporativa geram insatisfações. Esses trabalhadores, mesmo tendo um elevado status (com melhor formação e com maiores salários), estão sujeitos à mesma lógica capitalista de extração de valor por meio do controle do tempo e do comportamento no trabalho. Aliado ao avanço das TICs, a vigilância se sofisticou em relação ao chão de fábrica. Agora há registros de presença, controle de produtividade via aplicativos, históricos de edição em documentos compartilhados e sistemas de monitoramento baseados em algoritmos, mesmo em trabalhos remotos. Este panorama se intensificou ainda mais no contexto da pandemia.

Nesse contexto, as professoras Weiming Ye, da Universidade de Pequim e Luming Zhao, da Universidade de Fundan, realizaram uma pesquisa qualitativa em profundidade questionando como os trabalhadores do conhecimento chineses percebem o trabalho, como é que a vigilância está interligada com esse significado e suas respectivas formas de resistências. Os resultados foram publicados no artigo “Knowledge Workers of the Digital World, Unite! Knowledge Workers’ Workplace Surveillance and Hidden Transcripts in China”, na revista acadêmica International Journal of Communication.

As autoras utilizam um conceito chamado “transcrições ocultas” para compreender as interações em que os trabalhadores se envolvem fora da vigilância direta. O termo designa uma metodologia que é utilizada para capturar discursos e práticas que podem confirmar, contradizer ou ressignificar o que é dito em público.

Uma parte da pesquisa foi realizada através de entrevistas semiestruturadas em profundidade com 13 trabalhadores entre 2022 e 2023, com idades entre 25 a 43 anos, todos trabalhadores em áreas do conhecimento. Outra parte do estudo foi feita através da análise de manifestações na rede social Weibo, um serviço de microblogging, de mensagens curtas. Alguns perfis foram selecionados e o foco de análise se deu principalmente na conta “Tui Na Bear” (que significa algo como “massagear o urso”, numa expressão cheia de trocadilhos, em chinês), com milhares de seguidores. Em 2022 foram mais de 300 postagens relacionadas ao tema de trabalho com mais de 30 mil respostas.

O crescente uso de redes sociais proporciona um ambiente onde é possível perceber como esse descontentamento é encarado, principalmente entre as gerações mais novas. Nos últimos anos, surgiram perfis críticos nas plataformas chinesas que atraem muito engajamento. Surgiram gírias como “996.ICU”, que se refere a jornada de trabalho de 12h em 6 dias por semana, ou “Fubao”, derivado de uma declaração do fundador da Alibaba, que sugeriu que os jovens deveriam encarar a cultura de longas jornadas como uma “enorme bênção”.

Apesar dos filtros e das restrições de termos adotados nas plataformas chinesas, as autoras consideram que a rede social proporciona um “backstage” para os trabalhadores “reproduzirem significados subversivos”, manifestando fofocas e críticas a cultura organizacional da empresas, ou seja, um lugar onde as transcrições ocultas estão mais manifestas, ainda que codificadas. Foram identificados diversos temas nessa amostra, que variam desde saúde, emoções e até questões relacionadas a direito previdenciário.

Sobre as percepções relativas ao significado do trabalho e relação com a vigilância, o estudo usou uma tipologia que distingue o trabalho como emprego, carreira ou vocação, na forma como o trabalho é visto pelos profissionais. Os sistemas de vigilância em geral combinam esforços humanos e algoritmos. Recursos originalmente destinados a aumentar a eficiência da comunicação tornaram-se mecanismos de vigilância através da utilização por colegas e líderes. Aquela sinalização que a mensagem foi visualizada ou que um arquivo foi aberto e editado são formas sutis de manejar a vigilância sobre a produção e a dedicação ao trabalho, conforme os relatos.

Da mesma maneira que os algoritmos vigiam, também podem ameaçar: “sinto uma sensação de crise em relação ao meu futuro, talvez um dia a inteligência artificial se desenvolva e me substitua”, conforme relatou um dos trabalhadores.

Sobre as horas extras, as pesquisadoras perceberam que há relatos de que há um “torneio até ao último sobrevivente”, onde os trabalhadores sentem-se obrigados a trabalhar por horas sob vigilância de aplicativos, por exemplo, mesmo na ausência dos seus líderes.

A observação das mensagens nas redes sociais proporcionou fértil um material sobre carga emocional envolvida, predominantemente negativas. As estratégias para enfrentar a vigilância podem ser de categorias do tipo de “fingir trabalhar”, com auxílio ou não de meios técnicos – como simular tarefas aleatórias no computador – ou fingir ignorância ou incompetência a fim de não se sobrecarregar de trabalho. São meios sutis de resistência frente ao monitoramento constante e que funcionam como válvulas de escape.

Um dos principais achados da pesquisa é que para quem considera o trabalho uma vocação, o controle cultural através da competitividade ou o cálculo racional entre custos e ganhos, está totalmente internalizado. Para quem considera o trabalho uma forma de estabelecer uma carreira, há um claro temor de ameaças, que podem ser a facilidade de ser substituído por outra pessoa ou por uma IA. Nesse sentido, as estratégias de vigilância perpetradas por algoritmos ou por processos técnicos acabam reforçando esses receios. Por fim, para os que interpretam o trabalho como um emprego, as estratégias de resistência costumam ser mais utilizadas.

Outro percepção do estudo é que essas práticas de resistência, apesar de sua criatividade, raramente se traduzem em uma ação coletiva. A resistência seria passiva e individualizada, revelando que a posição desses trabalhadores, na sua grande maioria de classe média, prefere não estabelecer um confronto político direto.

Ao mesmo tempo, isso revela o que as autoras consideraram uma “contradição estrutural” enfrentada por esses trabalhadores: ao mesmo tempo que são os agentes de um certo progresso digital, são o público que mais convive com diferentes estratégias de vigilância do seu trabalho cotidiano.

Para ler o artigo: https://ijoc.org/index.php/ijoc/article/view/21369/4668

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Cenário pós-pandemia indica aumento da capacidade de vigilância de corporações e Estados

por Maria Vitoria Pereira de Jesus em 20 de maio de 2025, Comentários desativados em Cenário pós-pandemia indica aumento da capacidade de vigilância de corporações e Estados

O contexto da Covid-19 foi, de modo geral, marcado pelo aumento de tecnologias de vigilância em diferentes âmbitos da vida social. Passamos a trabalhar e estudar em casa, realizar mais compras online, fazer consultas médicas remotas e inúmeras outras atividades. Tudo isso por meio de plataformas, gerando uma grande quantidade de dados que, ao serem coletados e analisados, possibilitam o controle sobre as nossas ações e comportamentos.

Imagem gerada por inteligência artificial generativa utilizando palavras-chave: cidade e vigilância digital

No período da pandemia, vimos aplicativos serem criados para monitorar quadros de saúde, contabilizar o número de casos, notificar usuários que tiveram contato com pessoas contaminadas e identificar as principais zonas de contágio. No Brasil, o aplicativo utilizado foi o Coronavírus-SUS, lançado em 2020, que pretendia reduzir a circulação da doença por meio do rastreamento de contatos. Outros foram lançados ao longo da pandemia, como o MonitoraCovid-19, pela Fiocruz.

Se, por um lado, os aplicativos para monitoramento da Covid-19 auxiliaram no controle da doença, por outro, aumentaram a capacidade de vigilância dos Estados e das empresas desenvolvedoras, que tiveram acesso a dados não só de saúde, como também pessoais. Em artigo publicado na Surveillance & Society, Elise Rancine, da Universidade de Oxford, afirma que o uso de aplicativos para o monitoramento da Covid-19 permitia o acesso a número de telefone, endereço, biometria facial e histórico de localização. Na pesquisa intitulada “The Far-reaching Implications of China’s AI-powered Surveillance State Post-COVID”, ela se debruça mais especificamente sobre o aplicativo Ali Health Code, desenvolvido pela empresa chinesa Alibaba. Segundo a pesquisadora, outros dados coletados pelos aplicativos podem ser utilizados para outras finalidades, assim como para fortalecer aparatos de vigilância, inclusive do próprio Estado, que pode aumentar as suas ferramentas de controle social.

No Brasil, o MonitoraCovid-19 foi estudado por pesquisadores da Universidade Federal da Bahia, Pontifícia Universidade Católica do Paraná e Fundação Getulio Vargas, que, no artigo “Smart Pandemic Surveillance? A NeoMaterialist Analysis of the ‘Monitora Covid-19’ Application in Brazil”, também alertaram sobre a coleta de dados pessoais sensíveis pelo aplicativo. De acordo com André Lemos, Rodrigo Firmino, Daniel Marques, Eurico Matos e Catarina Lopes, o acesso ao MonitoraCovid-19 era feito mediante o fornecimento de informações como nome completo, CPF, tipo de assistência médica, data de nascimento, nome da mãe, sexo, e-mail, telefone e endereço completo. Além disso, o seu pleno funcionamento dependia da concessão de permissão do aplicativo a dados de geolocalização, atividade física e SMS. Todos foram coletados sem a menor garantia de que estariam seguros e não seriam compartilhados com terceiros, ou utilizados para outras finalidades.

Segundo Rancine, na China, na cidade de Hangzhou, autoridades já consideram fazer uso do aplicativo para pontuação de saúde dos cidadãos a partir de informações como se são fumantes ou ingerem bebidas alcoólicas. Já na província de Henan, o aplicativo foi usado para restringir movimentos de alguns residentes após a ocorrência de protestos na região. Para a autora, esses outros usos do aplicativo podem não apenas aumentar as possibilidades de disciplina e controle sobre os corpos, como também fixar padrões de saúde com base em práticas de consumo e modos de vida. Além disso, esses usos revelam outras possíveis aplicações, que vão além da proposta original.

A autora do estudo cita outros países que também aplicaram metodologias parecidas, como o Zimbábue. A empresa local CloudWalk Technology utilizou a base de dados do governo com informações biométricas para desenvolver sua tecnologia de reconhecimento facial, sem o consentimento das pessoas envolvidas.

A despeito das preocupações sobre vigilância e possível manipulação política das populações, há uma clara gramática de colaboração entre governos e setor privado, em que dados populacionais são o grande ativo. No caso da China, seria essa cooperação com o Alibaba. No Brasil, seria com a Novetech. Por fim, no Zimbábue, seria com a CloudWalk. Em todos os casos não houve necessariamente uma supervisão legal clara ou uma discussão pública sobre riscos e as possíveis formas de mitigá-los.


Para ler o artigo: https://doi.org/10.24908/ss.v21i3.16111

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Financeirização digital e capitalismo de vigilância são duas faces da mesma moeda no Sul Global

por Fabricio Solagna em 12 de maio de 2025, Comentários desativados em Financeirização digital e capitalismo de vigilância são duas faces da mesma moeda no Sul Global

A financeirização digital é a nova fronteira de geração de lucro e controle no capitalismo de vigilância. A fusão dos reinos digital e financeiro tem tomado uma escalada cada vez maior, contando com a colaboração entre a burocracia estatal e o poder das big techs, principalmente no Sul Global, onde adquire caráter de colonização contemporânea.

Ghazal Mir Zulfiqar, pesquisadora da Universidade de Lahore University (UOL) do Paquistão, analisa esta perspectiva no artigo “Digital financialization and surveillance capitalism in the Global South: The new technologies of empire”, publicado na revista Organization, voltada para estudos de inovação. A autora argumenta que é essencial analisar como as novas tecnologias estão colonizando os espaços cotidianos no Sul Global, sob o pretexto de inclusão e desenvolvimento.

A financeirização digital está presente no cotidiano, seja na proliferação de fintechs, oferecendo serviços que antes eram exclusividade dos grandes bancos, seja na capacidade de outros intermediários realizarem transações financeiras, como o caso das carteiras do Google e da Apple que permitem pagamentos através do celular ou do smartwatch.

Mas há outras camadas que Zulfiqar alerta como um sinal de avanço do domínio colonial sobre o Sul Global. À medida que a financeirização digital é vendida como inclusão de pessoas desbancarizadas, como uma forma de realizar transações “modernas”, o Estado passa a promover as tecnologias de vigilância – controladas por empresas no Norte Global – a fim de que mais pessoas estejam aptas a participar da ciranda financeira. Essa campanha por “modernização” é perpetrada também por órgãos e agências internacionais como Banco Mundial, ONU e PNUD. Agências de desenvolvimento e os próprios Estados se transformam em indutores e implementadores destas políticas.

A autora cita dois casos bem concretos: um deles é a Índia, em que o Aadhar, um projeto de identificação digital, atingiu mais de um bilhão de pessoas. É uma sequência de 12 dígitos, vinculada a informações biométricas e demográficas, que torna possível o acesso aos serviços do Estado, como saúde e educação, mas também a realização de pagamentos. Uma questão semelhante já foi objeto de texto no site OplanoB “’Só fiz a tecnologia’: setor privado estimula tecnovigilância na Índia”, sobre um artigo que faz parte do livro Policing and Intelligence in the Global Big Data Era.

O outro caso é o próprio PIX brasileiro, uma pequena evolução da forma de transação financeira que permitiu que milhares de pessoas utilizassem o sistema bancário para pequenos pagamentos e recebimentos, se utilizando, principalmente, do telefone celular.

A crescente dependência dos países do Sul Global dessas tecnologias representaria um novo imperialismo digital, onde dados e identidades financeiras são integrados a redes globais de monitoramento e exploração. As ferramentas de vigilância, controle e, em última instância, repressão, se tornam mais integradas, cujos poderes tentaculares se estendem nos diferentes modos de vida.

Embora a inclusão de pessoas em sistemas de pagamento possa facilitar a vida das pessoas em muitos sentidos, o autor busca destacar o caráter pernicioso quando esta inclusão faz parte de um contexto em que grandes empresas monopolistas da tecnologia do Norte e os países do Sul submetem suas populações a novas formas de exploração.

“Situo as finanças digitais dentro do contexto mais amplo de “financiamento da pobreza” (…) No nível familiar, a financeirização da vida cotidiana explica como essas novas formas de dívida são cada vez mais usadas para financiar a reprodução social, à medida que os salários continuam a cair e a capacidade do Estado de fornecer bem-estar social diminui com os ajustes estruturais exigidos dos países do Sul por instituições multilaterais.”

A despeito de qualquer benefício sobre a financeirização digital, o autor ressalta que, durante o período colonial, bancos e mercados de crédito serviam principalmente aos interesses da metrópole, deixando a maior parte da população sem acesso aos seus serviços. A digitalização financeira estaria seguindo um padrão semelhante: grandes corporações e instituições utilizam a inclusão digital como uma forma de expandir mercados, perpetuando desigualdades históricas.

Ainda que mais pessoas participem dos mercados financeiro, só estariam incluídas a partir da monetização e exploração dos seus dados em outros círculos, por meio de corporações do Norte Global. Ainda assim, mesmo que haja uma pequena inclusão de novas pessoas nos mercados, isso significa, na prática, acesso a créditos de alto custo que resultam, na maioria das vezes, em mais endividamento familiar, ajudando a exponenciar os lucros das instituições financeiras.

Em resumo, Zulfiqar descreve as três principais características interconectadas que tornam a colonização digital possível: primeiro, as big techs e seu caráter monopolístico; segundo, a associação das big techs com agências de desenvolvimento para implantar infraestruturas de vigilância; e, finalmente, em terceiro lugar, as parcerias das big techs com os próprios setores de vigilância, para monitorar todos os passos e ações das pessoas. Essas três formas, combinadas, imporiam as novas formas de imperialismo econômico e sociopolítico do Norte ao Sul, abrindo a possibilidade de que os governos possam espionar seus próprios cidadãos com maior facilidade.

Para ler o artigo: https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/13505084231183033

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Esta nota faz parte do projeto “Inteligência Artificial e Capitalismo de Vigilância no Sul Global”, financiado pela Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade e realizado pelo Labjor - Unicamp | Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo

IAs interpretam emoções, plataformas modulam comportamentos. É possível uma subjetividade soberana?

por Fabricio Solagna em 23 de abril de 2025, Comentários desativados em IAs interpretam emoções, plataformas modulam comportamentos. É possível uma subjetividade soberana?

Cada vez mais as IAs se utilizam de técnicas algorítmicas para interpretar nossas emoções e influenciar nosso comportamento. Podem fazer isso a partir de sistemas de reconhecimento facial e de metodologias de designs opacos, para facilitar ou dificultar certas ações, como realizar uma compra ou retardar o cancelamento de um produto.

Imagem gerada por inteligência artificial generativa utilizando palavras-chave: IA, soberania e subjetividade

Não é por acaso que o debate sobre regulação é intenso, mas nem sempre suficiente. Para além das implicações políticas ou econômicas, parece haver uma questão mais profunda: como garantir soberania digital considerando a subjetividade dos sujeitos na sua relação com as máquinas?

A partir desta indagação, pesquisadores publicaram o artigo “IA emocional e design capcioso: a questão da soberania para a subjetividade” no periódico Liinc em Revista, numa edição especial voltada a refletir sobre questões de IA e soberania. A pesquisadora Fernanda Bruno, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, assina o estudo conjuntamente com outros três pesquisadores: Paulo Faltay (Universidade Federal de Pernambuco), Alice Lerner e Helena Strecker (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

A soberania é um termo comumente invocado para discutir questões de legitimidade sobre Estados nacionais, mas os autores do artigo traçam outro caminho “focalizando o modo como o sujeito e a subjetividade são interpelados pelas grandes plataformas, algoritmos e sistemas de inteligência artificial”.

Atualmente, as IAs seguem um paradigma conexionista, baseado em redes neurais que são capazes de aprender diretamente com o ambiente ou, mais especificamente, com a alimentação de enormes quantidades de dados, fazendo relações de probabilidades. É um paradigma aderente aos princípios da cibernética, que acabou se tornando hegemônico. Por isso a necessidade de processamento de gigantescas bases de dados, nas quais são estabelecidas relações e referências.

As tecnologias de reconhecimento facial são um exemplo. Elas têm se tornado uma tendência e são usadas desde aeroportos até na portaria dos condomínios. Elas permitem reconhecer, interpretar e até responder às emoções humanas, por meio de alguns sinais biométricos. Essas técnicas, na sua grande maioria, são baseadas em sete emoções básicas, tomadas como universais (que valeriam para todas as culturas), no Facial Action Coding System (FACS), modelo criado pelo psicólogo americano Paul Ekman.

Esses sistemas carregam uma certa limitação, na avaliação de muitos estudiosos, mas se tornaram muito úteis para a indústria, que viu uma possibilidade de padronização. Eles ignoram diversos sinais de contexto e o risco de reforçar tendências discriminatórias, principalmente se tratando de sistemas utilizados para segurança pública, relembrando práticas como a frenologia (pseudociência do século XIX que propunha ser possível determinar o caráter e as funções intelectuais de uma pessoa com base na forma e nas protuberâncias do crânio).

O desenvolvimento da chamada “IA emocional” (a que interpreta as expressões faciais e assim dispara uma ação cibernética, seja um aviso, uma outra imagem, etc) cada vez mais irá ampliar a complexidade de se lidar com estas tecnologias. Do ponto de vista jurídico, o estudo pontua como a União Europeia tem servido de referência, inclusive ao Brasil, desde a publicação do AI Act, que tenta classificar o que seriam sistemas de baixo, médio e alto risco ou definitivamente proibidos. No caso brasileiro, a proposta sobre o tema continua em tramitação legislativa depois de ter sido aprovada pelo Senado recentemente. A grande questão é como definir estas fronteiras, dada a capilaridade cada vez maior da IA emocional para guiar a ação de outras atividades sistêmicas.

Se o seu tocador de música sugerir uma música alegre, porque suas expressões faciais indicam felicidade, isso parece ser inofensivo. Mas, se imaginarmos que uma expressão de tensão em meio a multidão pode disparar um sinal de alerta a autoridades policiais, aliada a outros sinais como mãos suadas ou aumento da pressão arterial, sendo classificada como uma atitude suspeita, as implicações são outras. E pode levar a uma discriminação a partir de vieses, principalmente se a pessoa em particular for de uma minoria.

A detecção – ou inferência, como preferimos nomear – de emoções não é problemática apenas por ameaçar a privacidade dos indivíduos e coletar seus dados (…) Antes, é preciso perguntar como as inferências emocionais dos sistemas de IA produzem pretensas verdades sobre indivíduos e populações, e de que maneira isso afeta a vida das pessoas.”

Como pontua o artigo, os dados, mesmo aqueles resultantes de reconhecimento facial ou de outra origem biométrica, não são naturais, são produzidos pela tecnologia. À medida que se estabelecem com estatuto de verdade, por convenções universalistas avalizadas como cientificamente corretas, podem carregar distorções difíceis de serem contestadas. No mínimo, é um campo complicado de reivindicar soberania do sujeito frente à relação com a máquina.

O reconhecimento facial é uma das formas, ainda que em grande ascensão, em que a privacidade é comprometida a fim de que nossos dados estejam disponíveis para que as plataformas nos ofereçam respostas. Nesse campo também se aliam as técnicas de dark patterns ou deceptive patterns, que os autores chamam de “design capcioso” – num trocadilho com a tradução de “design malicioso”. Trata-se de um design opaco, que tenta “driblar a consciência” a fim de que o usuário seja manipulado para fazer o que uma plataforma ou sistema esteja buscando.

São técnicas que revelam a “virada comportamental” da indústria do marketing – e das big techs – que começaram a adotar um modelo mais performativo, capaz de intervir sobre as pessoas em tempo real enquanto elas usufruem dos sistemas. As inferências, antes tomadas a partir de dados obtidos através de feedbacks, como likes, compartilhamentos, avaliações ou textos, tornaram-se insuficientes. No capitalismo de plataforma, há uma necessidade de antecipar o futuro e o design capcioso tenta modular o comportamento e assim “antevê-lo” (ou, melhor dizendo, condicioná-lo ou emparedá-lo).

Agora, temos um segundo nível no qual as práticas evoluem para estratégias mais sofisticadas de modulação constante na arquitetura dos sistemas, que acontecem mais rápido do que somos capazes de perceber e afetam a experiência do usuário a longo prazo. Em suma, trata-se de um design capcioso que limita a autonomia do sujeito uma vez que direciona as escolhas e comportamentos de forma sutil, discreta e atraente.”

É o que ocorre exatamente quando uma compra é facilitada com apenas um clique, ou quando cancelar uma corrida parece exigir muito mais passos que o necessário. Dentro desse campo, para além de uma imagem ou um texto, há diversos outros elementos que estão sendo captados constantemente a fim de compor um perfil de uso e preparar a tela seguinte. Essa virada também revela uma mudança da concepção da forma como as pessoas são tratadas: se antes elas eram convidadas a se manifestar deliberada e conscientemente nos ambientes digitais, agora isso não é mais suficiente e é necessário condicioná-las.

(…) para evitar a regulação da coleta de dados, as agências de marketing argumentam que os usuários são indivíduos racionais e soberanos que cedem conscientemente seus dados em troca de ofertas “relevantes”; por outro lado, essas mesmas agências vendem para os seus clientes técnicas herdadas da economia comportamental que pressupõem os tais indivíduos previsivelmente irracionais (…)”

Assim, por um lado o usuário é tratado como racional e consciente para autorizar o compartilhamento dos seus dados com as plataformas; por outro, é mobilizado como irracional, a ponto de o design das ferramentas poderem guiá-lo, influenciando seu comportamento.

Há saídas para este cenário? Certamente não há respostas únicas, pois não há como simplesmente reivindicar uma soberania plena do sujeito, tampouco considerar que precisa ser tutelado. Qualquer um destes pólos falharia em seu ponto de partida: almejar uma solução exclusivamente individual. “É necessário construir coletivamente ecossistemas sociotécnicos que permitam negociação, contestação e revisão constantes, garantindo condições para dissenso e reconsideração de práticas, regras e normas”, afirmam os autores.

Destacando que os sistemas automatizados de inferência emocional – as ditas IAs emocionais – utilizam modelos reducionistas e controversos, e que podem levar a resultados imprecisos e injustos, o estudo lembra que a aplicabilidade não é só questionável, mas pode reforçar desigualdades.

A resposta, portanto, não residiria apenas em uma legislação garantista ou protetiva, porque há sempre limites, áreas cinzas, disputas sobre significados e, obviamente, insuficiências. O que não quer dizer que essas medidas não sejam necessárias. Mas, inspirando-se na perspectiva de tecnodiversidade, os autores do artigo propõe a pensar na importância de uma abordagem coletiva na construção da soberania digital e tecnológica, reconhecendo as complexidades na relação entre humanos e sistemas de IAs.

No entanto, as possíveis alternativas não retiram a possibilidade de se dizer o que não é admissível: os autores apoiam as propostas já existentes de moratória e banimento de sistemas automatizados de detecção emocional, principalmente aqueles manipulados por big techs, como forma primeira de incidir sobre o cenário.

Link para o artigo: https://revista.ibict.br/liinc/article/view/7311

Lavits

Esta nota faz parte do projeto “Inteligência Artificial e Capitalismo de Vigilância no Sul Global”, financiado pela Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade e realizado pelo Labjor - Unicamp | Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo

Quando vigiar comportamentos é parte do negócio (das big techs)

por Maria Vitoria Pereira de Jesus em 9 de abril de 2025, Comentários desativados em Quando vigiar comportamentos é parte do negócio (das big techs)

Economia de dados, economia da atenção, economia comportamental. Podemos dizer que, em todas elas, é o comportamento que possibilita o lucro e a acumulação de capital. Segundo Daniel Black, professor da Universidade de Monash, da Austrália, na economia comportamental o comportamento é a base das ações de empresas e corporações big tech, como Google e Meta. No artigo publicado no The Information Society: an journal international, o professor diz que os engenheiros da Google veem no comportamento o seu estoque de comércio, uma vez que possibilita a predição, modificação, monetização e controle da experiência humana.

Imagem gerada por inteligência artificial generativa utilizando palavras-chave: vigilância, comportamento, big techs e sul global

Com base em Black, é possível interpretar que existam diferentes formas pelas quais as empresas agem a partir dos dados comportamentais dos usuários. Embora não explicitamente categorizadas por ele, poderíamos identificar pelo menos três ações principais: (1) criação e oferta de produtos ou serviços, (2) estratégias para garantir maior tempo e permanência no ambiente online, e (3) modificação ou reforço de novos padrões comportamentais nos usuários.

De acordo com o autor, a atuação de empresas como o Google encontram-se diretamente apoiadas na teoria behaviorista de B. F. Skinner, que via o comportamento como a probabilidade de ações particulares serem analisadas e controladas através de alterações e estímulos do ambiente. Nesse sentido, a empresa, com as práticas de direcionamento de anúncios e conteúdos aos usuários, teria feito nada mais nada menos do que a aplicação desse conhecimento em sua plataforma.

O behaviorismo alegava que o comportamento humano poderia ser previsivelmente e confiavelmente influenciado por mudanças em estímulos ambientais, e assim seus princípios passaram a ser aplicados em prisões, escolas e reformatórios, e instituições para doentes mentais e deficientes.”

A relação entre a atuação das empresas Google e Meta com o behaviorismo também foi identificada pela professora Shoshana Zuboff no livro A Era do Capitalismo de Vigilância. Na obra, Zuboff critica reativação das ideias de Skinner, que haviam sido fortemente criticadas na década de 1970. No auge de sua fama, Skinner também conviveu com duras críticas, tanto de seus pares, bem como de membros do governo e de congressistas. Havia um temor que as “mudanças comportamentais” pudessem atingir liberdades civis e individuais.

Nos dias de hoje, as técnicas de reforço positivo e estímulos no ambiente são usadas pelas big techs para influenciar o consumo e práticas dos seus usuários, considerando os interesses dos anunciantes, que podem ser momentâneos e variam ao longo do tempo. Black ressalta que o o paradigma comportamentalista adotado por empresas como Google se destaca pela criação de comportamentos de consumo, que são só possíveis a partir de sistemas de vigilância que coletam dados de ações realizadas no ambiente online.


Para ler o artigo: https://doi.org/10.1080/01972243.2024.2342791

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Cosmolocalismo para evitar a vampirização de recursos pelas big techs

por Fabricio Solagna em 24 de março de 2025, Comentários desativados em Cosmolocalismo para evitar a vampirização de recursos pelas big techs

Os commons, ou os bens comuns, ressurgiram como paradigma na primeira década do novo século, principalmente pela sua aplicabilidade às redes digitais. Trata-se da ideia de que os recursos poderiam ser compartilhados – não seriam nem privados e nem estatais, mas públicos e de todos -, com governança específica, definidos pela comunidade envolvida. Na Internet, pode-se encontrar vários exemplos: a Wikipedia, o OpenStreetMap ou os inúmeros softwares livres. Mas também existem os commons não digitais, como o ar, os oceanos ou um terreno compartilhado. A grande questão que se faz atualmente é: os commons digitais conseguem sobreviver ao capitalismo de plataforma?

Tentando responder a uma parte desta questão, Yosuke Uchiyama, pesquisador no Instituto de Transporte da Universidade de Chulalongkorn, na Tailândia, publicou o artigo “Cosmolocalism Against Platform Capitalism: Evidence From Ridesharing” na revista TripleC, analisando alguns serviços de transporte compartilhado. Seu argumento é que a chave está no que convencionou chamar de “cosmolocalismo”, que mistura cooperativismo de plataforma com a capacidade de gestão de um commons digital.

Imagem gerada por inteligência artificial generativa utilizando palavras-chave: carona compartilhada, cosmolocalismo, big techs

Cosmolocalismo é um conceito teórico que enfatiza a integração de recursos digitais compartilhados globalmente com a produção física local. Defende um modelo de produção pós-capitalista através da ponte entre o espaço digital e o espaço físico. Este modelo procura promover um ecossistema mais sustentável e equitativo através de mecanismos de autogestão enraizados em redes P2P e comunidades locais, opondo-se à natureza centralizada e orientada para o lucro do capitalismo de plataforma. 

O pesquisador cita especificamente o caso do Nakatombetsu Rideshare, um aplicativo que atende a ilha Hokkaido, ao norte do Japão, com 5 milhões de habitantes. É uma plataforma social com apoio do governo local que se integra ao planejamento de transporte da região, cobrando pequenas taxas dos utilizadores. Seria o exemplo de integração de um cooperativismo de plataforma com o commons social e digital.

No trabalho, ele também compara outros três casos: o Grab, um concorrente das grandes plataformas no sudeste asiático, que funciona com uma estrutura muito parecida com outros serviços centralizados do capitalismo de plataforma; o La’Zooz, um aplicativo que funciona em Tel Aviv, em Israel, que é gerido a partir de um cooperativismo de plataforma; e, por fim, examina o Teshio Town Rideshare Transport Project, um sistema digital para áreas rurais de Hokkaido, também no Japão. Este último seria um projeto categorizado como um commons social que conta com apoio do governo local, porém não é exatamente uma prática de cosmolocalismo. A ideia do pesquisador foi, portanto, comparar diferentes tipos de serviços a partir da sua forma de gestão.

As cooperativas de plataforma têm se disseminado para ofertar diversos serviços a partir de uma lógica diferente das big techs. Aqui no Brasil surgiram iniciativas como a Federação Nacional das Cooperativas de Mobilidade Urbana, que lançou o aplicativo Liga Coop, na tentativa de congregar esforços de diversas cooperativas locais. Em pequenas cidades, proliferam-se serviços de aplicativos de transporte que oferecem condições de trabalho mais vantajosas aos motoristas. Isso sugere que há uma carência, ou espaços vazios, em que as big techs não conseguem preencher. Ao mesmo tempo, essas iniciativas apontam que há disposição para construir um sistema de governança menos verticalizado, ainda que enfrentem um problema de escala.

Muito embora os bens comuns não digitais operem fora da lógica do capitalismo é fato que o uso abusivo pode levar ao seu esgotamento. É o que o teórico Garrett Hardin chamava de “tragédia dos commons”. No entanto, ele defendia que o uso privado desses bens poderia gerar um uso mais racional, o que é contestado por outros teóricos. O que a história parece demonstrar é que cada vez mais os usos de bens comuns precisam de uma regulação mínima para que perdurem. Nos commons digitais a regra parece ser a mesma, principalmente com o advento das big techs e sua capacidade quase infinita de expansão e monopolização dos serviços na rede.

O que a Uchiyama alerta é que uma série de serviços se confundem em meio a diversos rótulos como economia do compartilhamento ou gig economy. A ascensão do capitalismo de plataformas teria monopolizado espaços digitais, explorando trabalhadores sob sistemas algorítmicos opacos em que empresas de transporte por aplicativo, por exemplo, utilizam modelos de negócios que visam lucro a despeito de direitos dos motoristas. Esse fenômeno estaria produzindo uma “tragédia dos commons” moderna, onde a busca incessante pela maximização de receitas estaria levando à monopolização dos recursos e a degradação da qualidade de vida dos envolvidos.

O compartilhamento de mobilidade pode significar a luta entre commons digitais e capitalismo de plataformas, segundo o estudo de Uchiyama. Ainda que no princípio as práticas de carona solidária promovessem a economia de recursos e a colaboração entre indivíduos, a introdução de plataformas teria distorcido seu propósito, tornando-se prejudicial àqueles que dependem dele para seu sustento.

Uma forma de resistir a essa exploração, segundo o autor, seria impulsionar as iniciativas de cooperativismo de plataformas, onde trabalhadores e usuários se tornam co-proprietários da infraestrutura digital. Mas, para além disso, seria necessário criar estratégias de regulação que limitem a tragédia dos commons digitais, pela expansão do capitalismo de plataformas.

O cosmolocalismo representaria, portanto, essa visão alternativa para um futuro mais sustentável ao combinar a riqueza dos commons digitais com a produção local, aliado a modelos de governança coletiva.

Link para o artigo: https://doi.org/10.31269/triplec.v23i1.1515

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A semelhança genética entre as big techs, suas plataformas e a financeirização informacional

por Fabricio Solagna em 5 de março de 2025, Comentários desativados em A semelhança genética entre as big techs, suas plataformas e a financeirização informacional

O fenômeno da globalização e financeirização econômica ajudou a desenvolver características dos processos de digitalização e plataformização: a aceleração, a predição de eventos e a necessidade inesgotável de expansão.

Imagem gerada por inteligência artificial generativa utilizando palavras-chave: financeirização, plataformização, big techs

É sobre isso que o pesquisador Edemilson Paraná lança algumas reflexões no artigo “Platform studies and the finance-technology nexus: For a ‘genetic approach’”, publicado na revista Platforms & Society. Ele é vinculado à Universidade de Tecnologia Lappeenranta-Lahti (LUT), na Finlândia. O artigo se baseia em sua pesquisa recente na América Latina sobre economia digital.

Por uma abordagem genética o autor se refere a uma investigação genealógica sobre o desenvolvimento das plataformas em relação às finanças, no sentido de inferir um “DNA compartilhado” entre as duas, na medida que evoluem juntas e até mesmo se espelham e se emulam em comportamentos específicos. “A financeirização e plataformização são uma forma de antecipar o futuro no presente”, escreve.

As finanças foram as primeiras a adotar as técnicas digitais. O mercado das bolsas de valores e seus comportamentos voláteis, na dimensão como são hoje, só são possíveis pelo desenvolvimento das redes cibernéticas. Paraná afirma que a platformização deve ser vista não apenas como um facilitador da convergência entre finanças e tecnologia mas como um produto de uma nova configuração desse relacionamento.

É nesse sentido que o autor defende que as redes digitais “mimetizam” o comportamento do mercado financeiro (e, talvez, vice-versa): especulativo, imediatista, desterritorializante e desregulamentado. Isso pode servir de gancho para compreender a dificuldade de se estabelecer padrões mínimos de regulação em temas como redes sociais e tecnologias de IA, que só funcionam a partir de fluxos de big data e de vigilância.

A aceleração informacional dos fluxos são o motor de uma rearticulação da produção, enquanto a circulação e o consumo, também cada vez mais acelerados, promovem uma descentralização técnico-operacional, ao mesmo tempo em que há uma crescente concentração econômica e política.

“Servindo como infraestruturas sociotécnicas, as plataformas atuam como condutores contemporâneos e prováveis futuros para esses processos, marcando uma mudança estratégica em direção à expansão da lógica capitalista para o digital por meio da privatização do conhecimento e da informação. Os estudos de plataforma ainda precisam abordar adequadamente essas dinâmicas.”

A proposta do autor para abordar o tema significa uma compreensão abrangente do nexo finanças-tecnologia. Mais especificamente, a respeito da teoria, propõe integrar as teorias de macroeconomia, sociologia e estudos de mídia. Do ponto de vista teórico, propõe investigar os modelos de negócios compartilhados como foco. Por fim, metodologicamente, defende a combinação de evidências qualitativas e métodos híbridos.

A sua conclusão é que a plataformização representa uma forma altamente avançada de capitalismo, onde a lógica imanente do capital é levada ao seu auge. Nisso, ele se contrapõe a ideias como a de que estamos vendo nascer um neofeudalismo.

Link para o artigo: https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/29768624241286779

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Parasitar o Norte para reconfigurar as tecnologias pelo Sul

por Fabricio Solagna em 20 de fevereiro de 2025, Comentários desativados em Parasitar o Norte para reconfigurar as tecnologias pelo Sul

A ficção científica proporciona diferentes narrativas para lidar com as curiosidades, incertezas e ansiedades sobre as tecnologias digitais, seja enaltecendo a sua capacidade de transformação ou destacando as possíveis ameaças.

Até pouco tempo havia um certo otimismo – quase consensual – em relação à capacidade de transformação da política em função da Internet. Hoje se estabeleceu uma apreensão sobre as big techs e as IAs e como podem tornar nosso mundo cada vez mais desordenado. No centro desse cenário invariavelmente está o empreendedor branco, masculino e do Norte Global como protagonista. Haveria uma forma alternativa de se pensar as possibilidades e consequências do uso das tecnologias digitais a partir do Sul Global?

Imagem gerada por inteligência artificial generativa utilizando palavras-chave: big techs, parasitismo, Sul e Norte global

É a partir daí que a pesquisadora Luisa Cruz Lobato, professora do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio propõe uma outra perspectiva, no artigo “‘South Fabricated’:Computing Stories of Global South Insecurity”, publicado na revista Contexto Internacional. A sua investigação explora a política das tecnologias digitais e o papel do digital na infraestrutura da democracia.

O ensaio se utiliza de dados etnográficos de pesquisa sobre o aplicativo Fogo Cruzado, coletados entre o ano de 2019 e 2021. O aplicativo foi originalmente foi concebido como um “Waze de balas” para produzir dados sobre tiroteios e ocorrências de pessoas atingidas por projéteis perdidos na cidade do Rio de Janeiro. A produção de dados é realizada colaborativamente, com ajuda dos usuários, sendo posteriormente checada e verificada antes da publicação. A iniciativa se transformou em um instituto e tem atuação em outras cidades, integrando um trabalho ativista mais amplo em segurança pública.

O artigo trabalha com a criação de uma fábula, reencenando a trajetória de uma bala que sai de um cano de revólver até se transformar em uma notificação de smartphone para “iluminar a forma como pensamos sobre a política do Sul Global”. Com isso, busca romper a ideia que as infraestruturas digitais são monolíticas e de que as histórias de inovação tecnológica precisam acontecer no Norte para assim se tornarem legítimas e válidas. O “Sul fabricado” interconecta a ficção científica e a fabulação especulativa para recontar histórias de tecnologias digitais.

A estratégia é desconstruir, em primeiro lugar, o “mito da garagem”, a visão de que indivíduos, pela sua capahttps://journals.sagepub.com/doi/10.1177/02632764241304718cidade extraordinária, poderiam criar tecnologias disruptivas a partir de sua casa e mudar o mundo – desvelando assim o aspecto neoliberal e do empreendedorismo de guerra, sobre o investimento e superação do soldado como forma de vitória, os dois sentidos incorporados nessas narrativas. Filmes como De Volta para o Futuro (1985) e A Rede Social são ótimos exemplos elencados pelo trabalho, que refletiriam esee mito no cinema.

Em segundo lugar estaria o mito do “computador universal”, representado no computador do Jornada nas Estrelas. Nesse caso, a tecnologia computacional seria a interface de acesso ao conhecimento ilimitado. É o papel que os algoritmos ocupam cada vez mais no nosso cotidiano, seja para fazer a curadoria das informações nas redes sociais ou nos ajudar nas tarefas mais cotidianas através da Alexa ou da Siri. Mas, na mesma medida que essas interfaces funcionam para nos apresentarem mais informações e conhecimentos, seus algoritmos são tratados como um segredo comercial, fruto da maestria do empreendedorismo de capital de risco, reforçando os aspectos do primeiro mito.

Em terceiro lugar figuraria a “IA maligna”, quando a tecnologia se voltaria contra as próprias pessoas, como foi representada no filme Eu, robô (2004) ou no documentário ativista Slaughterbots (2017). É por onde projetamos as ansiedades e temores de segurança, de perda de controle sobre as máquinas.

Essas três narrativas se entrelaçam no tempo e fornecem uma lente para especular como a tecnologia é vista e retratada. Da mesma maneira, essas camadas podem ser identificadas na produção acadêmica, em especial nas relações internacionais, à qual a autora dedica maior atenção.

O “Sul fabricado” é o estudo de caso do aplicativo Fogo Cruzado, em que a autora percebeu como as tecnologias das big techs são utilizadas para produzir um conhecimento negligenciado ou secundarizado, como a ocorrência de tiroteios ou pessoas atingidas nos territórios. Muitos desses locais onde o aplicativo identificava as ocorrências não tinham sequer mapeamento de geolocalização pelas tradicionais plataformas de mapas, por exemplo. O trabalho colaborativo se vale de relatos que os usuários fazem em mídias sociais (ou seja, também das big techs) e que são catalogadas e verificadas por outras pessoas envolvidas na iniciativa.

Nesse sentido, percebe-se como o poder tentacular de extração de valor do capitalismo de vigilância tem um alcance quase totalizante mas que, ao mesmo tempo, em configurações específicas, pode ser subvertido ou “parasitado” – nas palavras da pesquisadora – a fim de construir uma outra narrativa a partir do Sul.

O Fogo Cruzado é parasitário no sentido de que, primeiro, estabelece uma relação assimétrica de reciprocidade com o Google, tomando emprestado da infraestrutura deste último por meio de suas solicitações de API, enquanto o Google “come” os dados produzidos localmente para aperfeiçoar seu conhecimento do território. Portanto, o Fogo Cruzado não funciona contra o Google (ou outras empresas de tecnologia das quais pode tomar emprestado um ou dois recursos), mas com ele. Segundo, essa relação está sempre sendo modificada, adaptada com base nas necessidades dos criadores de aplicativos e de sua base de usuários.

A ideia de parasitismo e da possibilidade de contaminação abrem a perspectiva para pensar os limites e possibilidades inerentes a um mundo tomado por plataformas e que imprimem um modo de identidade e de representação da vida, como percebido pela autora nas narrativas sci-fi.

O projeto analisado certamente aborda uma das formas de resistência, da possibilidade de uso das tecnologias para além do imaginado pelo empreendedor. Ao mesmo tempo, na história recente, há inúmeros outros casos em que iniciativas de resistência foram sendo moldadas e incorporadas ao capital, como o desenvolvimento de tecnologias e softwares abertos, ainda que suas ideias e sua perspectiva política continuem atuais.

Para ler o artigo: https://www.scielo.br/j/cint/a/PRGJWwH3zkFCN6SzvX6mpjJ/

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