“Se existe o nome, existe o bicho”: a história do colonialismo digital

por Fabricio Solagna em 21 de agosto de 2025, Comentários desativados em “Se existe o nome, existe o bicho”: a história do colonialismo digital

A crítica sobre o poder das big techs e seus efeitos econômicos, políticos e sociais tem se tornado cada vez mais presente nas pesquisas acadêmicas. O termo “colonialismo digital” é um conceito chave para compreender as transformações atuais, principalmente no Sul Global.

Toussaint Nothias, da Universidade de Nova York, propõe uma análise histórica do conceito e de suas variantes como tecnocolonialismo, colonialismo tecnológico, colonialismo de dados, entre outros, presentes desde as disciplinas de humanidades até a ciência da computação. No recente artigo “An intellectual history of digital colonialism”, publicado no Jornal of Communication, ele revisa os precedentes e o papel do ativismo na popularização destes termos.

Imagem gerada por inteligência artificial generativa utilizando palavras-chave: colonialismo digital

O autor destaca seis características que orbitam as concepções do colonialismo de novo tipo na era digital. Nas suas palavras:

A crítica do colonialismo digital tem como alvo o sistema social onde alguns atores-chave, por meio de tecnologias digitais, operam em escala global (concentração desigual de poder) e extraem lucros, dados, trabalho e recursos naturais (extração); garantem a dependência de seus produtos enquanto reproduzem, aceleram ou até mesmo criam novas formas de violência e impõem normas e valores culturais distintos (imperialismo cultural) em nome do progresso e inclusão digital como ajuda humanitária (benevolência).

São aspectos abrangentes que, ao mesmo tempo, se complementam na capacidade explicativa do desenvolvimento do capitalismo informacional plataformizado das últimas décadas, formando uma tipologia do colonialismo digital. Particularmente o Nothias traz referências de autores que se tornaram reconhecidos por desenvolver conceitos específicos. Ou seja, o trabalho apresenta um mapa, sem pretensão de ser exaustivo, do desenvolvimento teórico sobre o assunto.

Mas outro ponto importante abordado no trabalho é a historicidade desse tipo de crítica. Ela não é exatamente recente, ainda que tenha se tornado mais evidente nos últimos anos. Nothias resgata os seus precedentes e precursores.

Em 1976, o Movimento dos Países Não Alinhados lançou uma proposta para uma “Nova Ordem Internacional da Informação”. Naquele momento, se considerou necessário fazer uma ofensiva de decolonização na “história das ideias”.

Na década de 1980, desenvolveu-se o conceito de um “colonialismo eletrônico”, focado na dependência da infraestrutura dos meios de comunicação nos países periféricos.

Ao mesmo tempo, houve o surgimento da corrente de pensamento crítica ao desenvolvimentismo, principalmente na antropologia, que via na tecnologia um instrumento para a hegemonia dos valores ocidentais. A crítica pós-desenvolvimentista argumenta que a teoria do desenvolvimento era uma ideologia política que trabalhava com a ideia de modernização a partir de pressupostos elaborados pelos países dominantes.

Porém, nos anos 1990, houve a ascensão da perspectiva positiva e salvacionista das tecnologias digitais, principalmente com a expansão do uso da Internet e com as supostas potencialidades de uma comunicação mais horizontal e democratizante. Esse pensamento perdurou até a evidente monopolização da rede pelas big techs.

Além dos estudos acadêmicos, o pesquisador Toussaint Nothias destaca a importância do ativismo para popularizar o termo colonialismo digital em casos como os protestos dos indianos frente ao Internet.org, projeto do Facebook que pretendia para levar acesso “gratuito” – mas limitado a poucas plataformas – e que ganhou atenção global. Quando o projeto foi renomeado para “Free Basics”, na África, recebeu uma nova onda de críticas contundentes por ativistas e entidades da sociedade civil.

Poderia ser acrescentado o movimento software livre que teve sua efervescência na virada do século na América Latina. Em 2002, no Peru, houve uma proposta de lei para facilitar a adoção de software livre na administração pública. O caso se tornou notório, pois a Microsoft encaminhou uma carta para o seu proponente, o deputado Edgar Villanueva Nuñez. Ele respondeu publicamente os argumentos apresentados pela multinacional de forma eloquente. Naquele momento já existia a preocupação sobre o processamento e manipulação de dados pessoais e a necessidade de se construir autonomia frente às soluções tecnológicas estrangeiras. Em 2003 o Brasil também iniciou um processo de adoção de softwares livres no Governo Federal, que se tornou reconhecido mundialmente, principalmente depois que a mesma Microsoft criticou publicamente as iniciativas.

O ativismo por direitos e soberania digital emergiu em diversos países, por meio de uma teia de colaboração entre movimentos sociais e organizações do terceiro setor. Muitos desses militantes também circulam na academia e seus trabalhos também inspiram e são referência para outros pesquisadores. Tudo isso coloca mais combustível no desenvolvimento da crítica acadêmica. Para além dos termos inicialmente tratados por Nothias, há uma nova seara de conceitos sendo cotidianamente propostos como “criptocolonialidade”, “colonialidade de plataforama” ou “IA Decolonial”, apenas para citar alguns exemplos.

Trabalhos de síntese tem uma grande importância para situar obras, autores, fatos e trilhar caminhos de como conceitos potentes como o colonialismo digital nasceram e se desenvolveram.

A importância do conceito está na sua capacidade de diagnosticar os conflitos atuais que transpassam tecnologia, poder e cultura e traduz a síntese popular que “se existe o nome, existe o bicho”.

Para ler o artigo: https://doi.org/10.1093/joc/jqaf003

Lavits

Esta nota faz parte do projeto “Inteligência Artificial e Capitalismo de Vigilância no Sul Global”, realizado pelo Labjor - Unicamp | Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo. Conta com o apoio da Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade (LAVITS) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), pelo Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (Mídia Ciência).

No Douyn, o Tiktok “chinês”, criadores de conteúdos compram tráfego e negociam com os anunciantes

por Fabricio Solagna em 5 de agosto de 2025, Comentários desativados em No Douyn, o Tiktok “chinês”, criadores de conteúdos compram tráfego e negociam com os anunciantes

Utilizado por mais de 750 milhões de pessoas na China e pouco conhecido no ocidente, o Douyin é o irmão gêmeo do TikTok, uma plataforma de vídeos curtos criado pela mesma empresa, a ByteDance.

Seu sucesso local estrondoso também revela uma plataforma robusta para os chamados criadores de conteúdo – pessoas que produzem vídeos a fim de conseguir retorno financeiro. A plataforma conecta anunciantes e criadores e intermedeia essa relação, embolsando um percentual do negócio como lucro. Uma das consequências é a transformação da criatividade em uma “linha de montagem” de conteúdos, que tende a uma padronização. A plataforma se utiliza das mesmas estratégias de seus concorrentes – e do próprio irmão Tiktok – para manter os usuários gastando horas rolando vídeos na timeline. O importante é impulsionar os negócios, já que é possível fazer compras com apenas alguns cliques. Talvez a grande diferença de big techs estadunidenses seja que as ferramentas de recompensas geram um pouco mais de previsibilidade no Douyin.

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É o que aponta um estudo de Yang Huang e WeiMing Ye, ambos da Universidade de Pequim, publicado na revista acadêmica Convergence: The International Journal of Research into New Media Technologies. O artigo, intitulado “‘Traffic rewards’, ‘algorithmic visibility’, and ‘advertiser satisfaction’: How Chinese short-video platforms cultivate creators in stages” relata uma pesquisa em profundidade com 19 criadores de conteúdo da plataforma. Os autores também utilizam um uma abordagem de análise passo a passo da interface e se aprofundam nos mecanismos subjacentes ao seu funcionamento a fim compreender as trajetórias pelas quais o usuário é levado na sua jornada de trabalho enquanto criador de conteúdo.

O Douyin proporciona alguns caminhos na tarefa de produzir maior visibilidade dos conteúdos. Para usuários iniciantes, além da trivial sugestão de hastags há um ambiente de negociação de tráfego: a ferramenta Dou+. Para garantir duas mil visualizações a mais na publicação, o custo gira em torno de quatro dólares, por exemplo.

Os criadores recentemente registrados recebem uma recompensa de tráfego da plataforma que serve, segundo os pesquisadores, para incutir uma ideia possibilidade de receita a partir da produção ajustada às demandas definidas pelo algoritmo. No entanto, a maioria dos entrevistados relata que o tráfego inicial vai diminuindo após alguns meses e outras estratégias são ofertadas. Ao que tudo indica, o maior desafio não é exatamente a criatividade ou originalidade, mas ser capaz de seguir um modelo de conteúdo recompensado pelas regras da plataforma. Há, inclusive, um “Centro de Aprendizagem para Criadores” em que as pessoas são incentivadas a entender como melhor tirar proveito das características do serviço. É uma forma de moldar ou “cultivar” os criadores de conteúdos em alguns passos, dizem Huang e Ye.

Para usuários com mais de 10 mil seguidores é oferecida a ferramenta Start-Chart. É o mediador das transações entre anunciantes e criadores. Os anunciantes podem publicar pedidos para publicidade com instruções específicas. Também deixam claro o alcance mínimo de público que estão esperando, por meio de indicadores como visualizações, compartilhamentos etc.

Depois do aceite mútuo entre criadores e anunciantes, o sistema permite que os criadores enviem o roteiro do vídeo. A Douyin examinará o conteúdo com base no seu sistema de moderação e os anunciantes poderão verificar se a peça atende ao pedido. Pode haver até duas rodadas de aprovação, se necessário, e o vídeo só será publicado quando atender as necessidades do anunciante e as diretrizes da plataforma.

Se a tarefa for concluída com sucesso, o criador receberá o pagamento e a plataforma receberá uma comissão de 10%. Os anunciantes poderão acompanhar o desempenho das métricas ao longo da campanha. Um vídeo com 500 mil visualizações pode ser recompensado com um valor em torno de 800 dólares.

Os criadores de conteúdo acreditam que o Star-Chart é uma ferramenta que estabiliza o processo de transformação de criatividade em receita, que traz algum nível de transparência no jogo e que tornam os ganhos financeiros previsíveis ao longo do tempo do trabalho. Ao mesmo tempo, os pesquisadores também perceberam que há uma percepção dos criadores em que eles se consideram “caçadores de recompensas”, tendo que navegar entre os pedidos, agradar os anunciantes e a plataforma.

Assim, o Star-Chart pode ser considerado um espaço de uma troca bem-sucedida entre criadores ávidos por receita, anunciantes e o Douyin, onde ambos os lados parecem reduzir o efeito da incerteza.

Para os criadores de conteúdo, o impacto de suas criações depende muito menos dos seus seguidores e muito mais do atendimento às regras da plataforma. A pergunta “quantas pessoas vão curtir meu conteúdo?” está sendo gradualmente substituída por “como posso ser visto pela plataforma?”, segundo os resultados da pesquisa.

A produção de conteúdo se torna uma linha de montagem e não seria muito diferente do processo de trabalho dos entregadores, sugerem os pesquisadores, dando destaque ao caráter repetitivo para atender às demandas dos anunciantes. Além disso, a expressão individual e a criatividade fica subsumida à necessidade de vender algum produto ou promover alguma marca. Alguns dos entrevistados relataram que preferem não publicar vídeos pessoais, pois estão focados no trabalho de produzir as publicidades.

O sucesso do Douyin se deve também a práticas utilizadas em plataformas similares, como o TikTok. A recaligragem dos algoritmos por meio da coleta em massa de dados dos usuários é parte fundamental, ou seja, a vigilância é parte estruturante do modelo de negócio, mesmo que a ferramenta seja do Sul Global.

Para ler o artigo: https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/13548565231211117

Lavits

Esta nota faz parte do projeto “Inteligência Artificial e Capitalismo de Vigilância no Sul Global”, realizado pelo Labjor - Unicamp | Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo. Conta com o apoio da Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade (LAVITS) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), pelo Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (Mídia Ciência).

Sistema de identificação biométrica da Índia faz elo entre passado colonial e nacionalismo tecno-cultural

por Fabricio Solagna em 28 de julho de 2025, Comentários desativados em Sistema de identificação biométrica da Índia faz elo entre passado colonial e nacionalismo tecno-cultural

Usar as digitais como identidade na Índia não é algo novo, e remonta ao início do século passado. Já o Aadhaar, atual sistema de identidade digital, é talvez a maior experiência mundial de uso de tecnologias para identificação e reconhecimento de pessoas em diferentes níveis, integrando identidade civil, assinatura digital, autenticação bancária, entre outros. É elogiado pela ONU e pelo setor financeiro pela capacidade de inclusão de milhares de pessoas e por ser supostamente mais seguro.

Imagem gerada por inteligência artificial generativa utilizando palavras-chave: Índia, IA, reconhecimento biométrico, colonialismo digital

Entretanto, alimenta também uma narrativa de “nacionalismo tecno-cultural”, ainda que opere com uma lógica semelhante à dos sistemas do Norte Global. Há diversas preocupações sobre vigilância e controle, como esse sistema pode aprofundar outros tipos de exclusões ou repetir formas de colonialismo em processos de datificação.

O governo indiano promove um discurso contra a colonização de dados para afastar players estrangeiros e promover soluções locais – como o RuPay – como um serviço nacional. Isso seria um meio de produzir um sistema de extração de dados com base num ethos nacionalista.

Kavita Dattani, professora na Universidade de Washington em Seatle, afirma que o sistema reencena tendências coloniais do passado por meio de novos atores e mecanismos. Ela estuda a relação entre o Estado indiano, entidades corporativas e as fintechs que trabalham para promover – e até coagir – a população para uma financeirização digital obrigatória.

Ela publicou sua pesquisa no periódico Journal of Cultural Economy, no artigo intitulado “Spectrally shape-shifting: biometrics, fintech and the corporate-state in India”. Como metodologia, utilizou uma perspectiva hauntológica – de haunted, assombrado — para compreender como os fantasmas do passado colonial estão ressurgindo nestas novas tecnologias. Segundo ela, a pesquisa se utiliza de lentes anticoloniais.

É importante compreender como funciona o Adahar e a infraestrutura de software construída sobre ele, o India Stack, bem como a cronologia de sua implantação ao longo dos últimos anos.

O Adahar foi concebido pela Unique Identification Authority of India (UIDAI), uma autoridade governamental estabelecida em 2009, com o objetivo de criar um número de identificação única com 12 dígitos, biometricamente verificável, para todos os residentes da Índia. A biometria inclui a digitalização de impressões digitais, da íris e do rostofotografia, armazenadas em uma base de dados nacional e centralizada.

O India Stack é uma infraestrutura de software construída sobre a base de dados do Aadhaar, que funciona a partir de várias aplicações que se interconectam (APIs). Ele foi construído pela iSPIRT, um think tank digital ligado a um grupo consultivo governamental, composto por profissionais da indústria de software, que realizam esse trabalho de forma voluntária, como intuito de construir “bens públicos”.

O objetivo foi oferecer uma infraestrutura para facilitar a prestação de serviços sem presença, com capacidade de verificar autenticidade e eliminar a circulação de dinheiro. Por exemplo, o Digilocker armazena registros de saúde, o e-Sign permite a assinatura de documentos e o Unified Payments Interface (UPI) permite que os titulares de contas bancárias enviem dinheiro instantaneamente a partir dos seus smartphones, similar ao PIX brasileiro.

Embora a adesão ao Adhaar fosse opcional nos seus anos iniciais, foi gradualmente tornando-se obrigatório tanto para o setor privado – na obtenção de crédito, na verificação de identidade, por exemplo – como para o governo – para obtenção de benefícios ou acessar políticas públicas. Uma das justificativas para a adesão em massa ao Adhaar era o combate aos benefícios falsos ou duplicados. No entanto, a pesquisa mostra que os números apresentados eram exagerados, ainda que houvesse um pequeno percentual de falhas.

Em 2014, um programa nacional de inclusão financeira incentivou a abertura de milhares de contas bancárias, impulsionando o uso do cartão RuPay – uma alternativa indiana às bandeiras internacionais. Em 2016, a retirada de circulação repentina de notas de 500 e 1000 rupias forçou milhões de pessoas a usar as contas bancárias para trocar suas notas antigas e receber seus valores equivalentes, elevando o número das transações digitais. E finalmente, em 2017, o governo obrigou o pagamento de salários por transferências bancárias. Essas iniciativas empurraram a população indiana para uma financeirização em massa com a intermediação do Adhaar e do India Stack.

A Índia se tornou um grande terreno de testes para o uso da biometria no Sul Global. O sucesso da implantação do Adhaar tornou a experiência referência, recomendada por agências internacionais e replicadas em programas como o ID4Africa, por exemplo. Segundo a autora do estudo, é assim que o fantasma colonialista se reconstrói, pois adquire uma nova roupagem sob a justificativa que esses territórios seriam mais propensos a fraudes ou falsificações, precisando de uma tecnologia salvacionista.

Ao mesmo tempo, Adhaar e o India Stack estabelecem as condições para um “Estado de vigilância”, desestabilizando o equilíbrio de poder entre o cidadão e o Estado. A pesquisa cita casos em que o sistema de biometria foi supostamente utilizado para facilitar a exclusão de muçulmanos — com histórico de perseguição pelo atual governo — do acesso a determinadas políticas públicas.

Mas, além disso, uma das questões mais preocupantes é o caráter de “porta giratória” que funciona entre as agências governamentais relacionadas com o Adhaar, os executivos que trabalham “voluntariamente” no iSPIRT, e as fintechs que orbitam os serviços financeiros. Os especialistas e tecnocratas transitam entre os cargos do setor público e do setor privado, criando potenciais conflitos de interesse, segundo Dattani.

Uma das figuras centrais é o arquiteto do sistema, o bilionário Nandan Nilekani. Ele já foi presidente da agência que desenhou o Adhaar, o UIDAI. Srikanth Nadhamuni é CEO da Khosla Labs e ex-chefe de tecnologia da UIDAI. A National Payments Corporation of India é uma corporação conjunta do Reserve Bank of India e da Indian Banks Association, responsável por desenvolver o UPI do India Stack e vários dos seus executivos também já transitaram entre cargos públicos relacionados ao Adhaar. Há, portanto, uma apropriação de uma parte do Estado indiano por uma tecno-elite, que promove suas políticas, tecnologias e empreendimentos.

Atualmente o Adhaar também é vinculado aos dados de saúde pública, o que tem gerado preocupação sobre o acesso e controle de dados sensíveis da população por esse aparato tecnoburocrático, como o controle da vacinação, envolvendo startups privadas, para além dos órgãos governamentais oficiais.

O que Dattani conclui é que o complexo fintech-filantropia-desenvolvimento opera o Aadhaar e o India Stack como um meio de negócio, embora sejam defendidos como serviços públicos. O governo e os atores da indústria afirmam que os dados são uma ferramenta para empoderar os cidadãos, como uma iniciativa de desenvolvimento. Os criadores do India Stack, posicionam-se como voluntários do mundo da tecnologia, criando bens públicos, supostamente gratuitos. Ao fim, o arranjo produz valor através da datificação, financeirização e monetização de um imenso volume populacional.

A pesquisa mostra como o processo muda a relação das pessoas com o Estado e com suas políticas públicas, tendo agora como intermediador um novo aparato digital e tecnocrático. Aponta também como as narrativas e discursos em prol da eficiência podem ser mobilizadas para promover uma tecnoelite e, por fim, como a ideia de empoderamento e nacionalismo pode ser utilizada para construir uma reserva de mercado para certos atores específicos.

Para ler o artigo: https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/17530350.2023.2176340

Lavits

Esta nota faz parte do projeto “Inteligência Artificial e Capitalismo de Vigilância no Sul Global”, realizado pelo Labjor - Unicamp | Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo. Conta com o apoio da Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade (LAVITS) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), pelo Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (Mídia Ciência).

Luta de gigantes: a brutal distância entre o Norte e Sul nos investimentos para IAs

por Fabricio Solagna em 18 de julho de 2025, Comentários desativados em Luta de gigantes: a brutal distância entre o Norte e Sul nos investimentos para IAs

Uma forma de entender a periferia, a base, é olhar para o topo da pirâmide, onde estão e como se comportam os fluxos dos investimentos dos mais ricos. Nesse aspecto, os venture capital são um indicador de onde estão correndo os rios do ecossistema digital global. Portanto, olhar para as duas grandes potências – EUA e China – e suas maiores empresas e respectivos investimentos em IAs pode fornecer um termômetro como está a relação entre centro e periferia.

Imagem gerada por inteligência artificial generativa utilizando palavras-chave: EUA, China, capital flows, IA

Um bom lugar para verificar isso é a Crunchbase, uma plataforma que fornece informações sobre investimento de empresas, de propriedade da TechCrunch. Foi isso que fizeram os pesquisadores Bruno Prado Prates, doutorando em Economia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e Tulio Chiarini, vinculado ao Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Eles se concentraram em entender grandes investimentos de capital de risco (os tais venture capital) das grandes empresas de tecnologia dos EUA e da China.

Os resultados do estudo foram publicados no artigo intitulado “Dependência na Era Digital: um ensaio sobre a divisão centro-periferia em Inteligência Artificial”, disponível no periódico Liinc em Revista, na edição especial que trata de questões de IA e soberania.

O artigo demonstra que, enquanto as maiores big techs dos EUA e China investem pesadamente em IA e setores estratégicos como software, saúde e e-commerce nos seus respectivos países, para América Latina e África sobram alguns investimentos em setores mais tradicionais como o financeiro e comercial, com desenvolvimento limitado de IA. Essa assimetria aprofunda a dependência tecnológica dos países periféricos e perpetua padrões desiguais de inovação global, segundo os autores.

Ao mesmo tempo, as big techs norte-americanas investem pesadamente no mercado interno, enquanto as chinesas direcionam uma parte importante dos seus recursos – cerca de 40% – para os EUA. Uma parte da explicação é que empresas fortes chinesas como Tencent e Alibaba estabeleceram centros de pesquisa e desenvolvimento nos EUA.

É impressionante perceber que nenhuma empresa de IA na América Latina foi alvo de investimento de big techs e, ao mesmo tempo, quando há alguma aquisição é para uma estratégia extração de dados, como foi o caso da compra do Peixe Urbano pela Baidu. Um caso à parte é a Índia, que tem atraído mais da metade dos investimentos IA em relação ao resto dos países do Sul Global.

Os autores utilizam a perspectiva de centro-periferia de Celso Furtado para analisar e explicar a reorganização economica na Era Digital. Por esse olhar, a divisão internacional do trabalho se manifestaria entre países centrais, que apropriariam a maior parte do progresso tecnológico, e países periféricos, onde esse progresso beneficiaria amplamente os primeiros. O subdesenvolvimento não seria apenas uma etapa, mas como uma configuração que se reproduz a distintos níveis do crescimento, inclusive na área cultural e tecnológica. Os países periféricos assimilariam padrões culturais dos centrais sem a correspondente transformação social, perpetuando assim seu subdesenvolvimento. A escassez de capital de risco para empresas de IA nos países marginais refletiria esta ausência de desenvolvimento endógeno dessas tecnologias. Ao mesmo tempo, ocorre uma “sofisticação imitativa dos padrões de consumo” das economias centrais, reforçando sua dependência.

“Essa assimetria expõe um cenário de inovação desigual entre o centro e a periferia no contexto global da Era Digital. Embora a difusão da IA seja um fenômeno global, os padrões de investimento revelam disparidades regionais profundas, criando obstáculos para o desenvolvimento de trajetórias tecnológicas autônomas nos países periféricos. A perspectiva centro-periferia é uma abordagem valiosa para compreender a soberania em IA, evidenciando a contradição entre desenvolvimento e subdesenvolvimento. Essa visão permite identificar possíveis caminhos para que países periféricos se insiram na economia digital de forma mais soberana e menos dependente.”

O estudo de Prates e Chiarini tem suas limitações e eles mesmos fazem esse alerta. A principal é que há um certo viés da plataforma Chrunchbase por disponibilizar somente dados de um conjunto de empresas. É uma fotografia, uma amostra, mas não a totalidade. A outra característica que atrapalha é a impossibilidade de acessar os “valores exatos que cada plataforma digital investe em empresas ao redor do mundo”, ressaltam. Ainda assim, a análise apresenta uma ótima forma de verificar como os investimentos das principais empresas são direcionados, permitindo refletir como há uma grande diferença quantitativa e qualitativa dos recursos direcionados para a periferia, ou o Sul Global.

Link para o artigo: https://doi.org/10.18617/liinc.v20i2.7305

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Colonialismo Digital na Índia e no Paquistão e o embate entre soberania e vigilância

por Fabricio Solagna em 8 de julho de 2025, Comentários desativados em Colonialismo Digital na Índia e no Paquistão e o embate entre soberania e vigilância

O conceito moderno de soberania versa sobre a prerrogativa dos países terem suas fronteiras respeitadas, serem reconhecidos como politicamente iguais e administrarem seus próprios territórios, sem interferência externa.

Essa concepção foi moldada significativamente após o Tratado de Vestfália, assinado em 1648, e é considerada um dos marcos do início da Idade Moderna ocidental e das Relações Internacionais. O Tratado consistiu em uma série de acordos que encerraram a Guerra dos Trinta Anos na Europa, envolveu diversos países da região e foi motivado por disputas religiosas, políticas e territoriais.

Imagem gerada por inteligência artificial generativa utilizando palavras-chave: India, Paquistão, IA, colonialismo digital

Com a internet, as fronteiras pareceram tornar-se cada vez mais borradas. Os fluxos de dados podem transitar sem levar em conta as fronteiras nacionais. “Vocês não têm soberania sobre onde nos reunimos”, escreveu o ativista John Perry Barlow na Declaração de Independência do Ciberespaço, em 1994.

Entretanto, a ascensão das big techs nas últimas décadas fez emergir uma monopolização dos serviços e da infraestrutura da rede, trazendo de volta a discussão sobre fronteiras, agora para o mundo digital. Além disso, a vigilânciase coloca no centro das preocupações sobre justiça digital, dado seu funcionamento como motor da nova economia conectada. Por fim, muitos defendem que o colonialismo digital é uma forma repaginada de exploração e extração de valor por meio das grandes empresas de tecnologia dos países do Norte.

Nas últimas décadas, um novo aparato legal foi sendo construído com o objetivo de, ao menos, delimitar, ainda que minimamente, as fronteiras digitais no que se refere aos direitos humanos e à privacidade, bem como às obrigações que corporações transnacionais precisam cumprir em cada território. No artigo “From Sovereignty to Surveillance: The Legal Landscape of ‘Digital Colonialism’ in India and Pakistan”, publicado na revista Vietnamese Journal of Legal Sciences, o pesquisador Muhammad Imran Ali analisa o cenário da Índia e do Paquistão. Ele é vinculado à Universidade Lahore Leads, no Paquistão, e também realiza comparativos com países como Brasil, Vietnã e Nigéria em sua pesquisa.

Segundo o pesquisador, há uma forma moderna de colonialismo que se materializa na Índia e no Paquistão pela dependência tecnológica de corporações externas, como Google, Facebook, Amazon e outras big techs. Essas empresas exercem controle sobre recursos digitais desses países, gerem parte dos dados governamentais e são responsáveis por boa parte da infraestrutura digital local. “Dados estrangeiros armazenados em qualquer lugar do mundo permanecem acessíveis às autoridades policiais dos Estados Unidos por meio da Lei CLOUD Act, o que demonstra o conceito de soberania digital extraterritorial”, afirma Ali. O Cloud Act (Clarifying Lawful Overseas Use of Data Act) é uma lei dos EUA que permite às autoridades policiais estadunidenses obter acesso a dados armazenados por empresas americanas em qualquer lugar do mundo, mesmo que os dados estejam armazenados em outros países.

No caso da Índia, a governança digital se baseia principalmente em duas leis: o Information Technology Act, de 2000, e o Digital Personal Data Protection Act (DPDPA), instituído em 2023. Ainda que as normas prevejam que os controladores mantenham os dados pessoais armazenados no país, essas exigências seriam frágeis e exerceriam pouca influência sobre corporações estrangeiras que operam fora do território indiano, mesmo que continuem vendendo e extraindo dados dos cidadãos naquele país.

O governo indiano também está sujeito ao CLOUD Act estadunidense ao recorrer aos serviços da Amazon Web Services (AWS) e Microsoft Azure para hospedar seus sistemas. Isso ocorre principalmente no setor educacional, mas também se repete quando o país importa sistemas de linguagem de larga escala (LLMs) para operar serviços de IA. São esses os caminhos que percorrem o “colonialismo digital indiano”, segundo Ali.

O caso do Paquistão é ainda mais preocupante. Apesar de o país ter apresentado um projeto de lei sobre proteção de dados pessoais em 2023 (Personal Data Protection Bill), o texto ainda não foi aprovado pelo parlamento. Além disso, o governo opera ferramentas de monitoramento da rede e sistemas de identificação por biometria fornecidos por empresas estrangeiras.

A luta contra o “colonialismo digital” no Paquistão exigiria três camadas, segundo Ali: “um esforço de construção de capacidade tecnológica local, medidas de reforma regulatória e uma organização independente que monitore as empresas de tecnologia estrangeiras”. Medidas que, obviamente, demandam tempo, investimento e força política para que possam apresentar resultados. Por enquanto, o colonialismo digital no Paquistão continuaria sendo uma expressão do imperialismo tecnológico que compromete a independência nacional, segundo o pesquisador.

Mas haveria bons exemplos a partir do Sul Global? Ali considera que Nigéria, Brasil e Vietnã demonstram avanços importantes que poderiam ser copiados ou adaptados pelos países analisados por ele. As legislações de proteção de dados da Nigéria e do Brasil, respectivamente, poderiam inspirar formas para que Índia e Paquistão conquistassem mais autonomia, ainda que esses casos também apresente pontos fracos. O caso do Vietnã, com sua legislação de Cibersegurança de 2018, demonstra que pode haver formas de supervisionar a atuação das empresas, principalmente no que se refere aos dados pessoais.

É claro que essa equação — entre big techs imperialistas do Norte e sua ação extrativista e colonialista no Sul — não será reequilibrada apenas com dispositivos legais. A força da lei reflete as tensões e os limites em um sistema político e econômico mais amplo que, por ora, tem sido desvantajoso para os países periféricos. Entretanto, o que Ali demostra é que há alguns pequenos caminhos possíveis para a resistência, que podem proporcionar uma relativa autonomia nesse cenário.

Para ler o artigo: https://sciendo.com/article/10.2478/vjls-2025-0005

Lavits

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Esquemas de pirâmides em plataformas e a lógica da exploração perpétua

por Fabricio Solagna em 22 de junho de 2025, Comentários desativados em Esquemas de pirâmides em plataformas e a lógica da exploração perpétua

Os modelos de negócios baseados em marketing multinível ou marketing de rede não são novos e se tornaram mais populares depois da Segunda Guerra. No Brasil, há diversos tipos de empreendimentos e marcas que se utilizam deste modelo como Avon, Herbalife, Mary Kay, Jequiti, entre outras.

Em geral, são negócios que funcionam por meio de esquemas similares às pirâmides, onde um promotor de vendas, além de vender os respectivos produtos da marca, também é responsável por recrutar novos vendedores. Um percentual das vendas dos recrutados é revertido para o recrutador, formando assim uma cadeia em que na maioria das vezes vender o produto é uma pequena parte do processo. É necessário manter uma rede de pessoas atuantes, motivadas e mobilizadas, promovendo a marca e aliciando novos vendedores, formando uma exploração descendente em que, no final das contas, quem ganha mais é o controlador da marca.

Este tipo de negócio também entrou na era digital e se complexificou. Para além dos negócios relacionados a moda, beleza e utilidades domésticas, emergiram as pirâmides financeiras ou negócios de marketing multinível plataformizados, que prometem riqueza, liberdade e comunidade, mas, na verdade, organizam indivíduos em ciclos de extração de valor. Ou seja, não existe sequer um produto físico em jogo, o modelo de negócio é, supostamente, oferecer cursos e formação para obter ganhos no mercado financeiro. Mas exatamente para quem? Ou quem está ganhando dinheiro com isso?

Imagem gerada por inteligência artificial generativa utilizando palavras-chave: piramides, influencers, plataformas

Segundo os pesquisadores Jacob Ørmen, Andreas Lindegaard Gregersen, Anne Mette Thorhauge e Linea Munk Petersen, ambos vinculados ao Center for Tracking and Society da Universidade de Copenhague na Dinamarca, é uma rede complexa que envolve diversas plataformas, desde venda de serviços, perfis em redes sociais até plataformas afiliadas de pagamentos. Todos esses serviços online se relacionam e se complementam para formatar um “perfil empreendedor” e extrair o máximo de valor de pessoas empenhadas em investir tempo e dinheiro em construir um certo tipo de imagem, almejando obter retornos financeiros. Os dados da pesquisa estão disponíveis no artigo “Perpetual precarity: Cycles of value extraction in the platformised multi-level marketing scheme”, publicado na revista Platforms & Society.

O caso de estudo são players globais do setor como a iGenius, SER e IM Academy/IYOVIA. O artigo apresenta uma pesquisa empírica mais elaborada sobre a iGenius, uma plataforma que funciona principalmente no mercado dinamarquês, mas que tem atuação global. É interessante perceber como este mercado também depende de serviços e plataformas sediadas em países periféricos e do Sul Global. As plataformas de pagamento estão baseadas em paraísos fiscais, assim como as plataformas de criptomoedas, como Revolut e CoinZoom. Algumas plataformas de trading estão baseadas no Oriente Médio, tudo isso em função de regulamentações mais brandas ou menos obrigações de transparência.

O principal produto que estas plataformas revendem são pretensos cursos, ou material financeiro educativo, de qualidade questionável e sem valor prático, os quais geram uma subscrição, uma mensalidade, necessária para o aspirante entrar no “universo de investimento” e se tornar um trader. Essas mensalidades mantêm a principal extração de valor do público alvo e geram uma certa dependência da rede de marketing multinível entre promotores e novos recrutados. São caminhos para estabelecer outras redes de relações, mas, principalmente, solidificar vínculos com pessoas de pretenso sucesso na “arte dos negócios” de alto risco e de investimentos voláteis.

Os serviços pesquisados não se tratam de esquemas fraudulentos diretamente, ainda que muitos estejam em investigação em alguns países pela característica do modelo de negócio de pirâmide. O caso em questão não tenta enganar por completo, ainda que prometa muito mais do que realmente consegue entregar. A promessa é uma nova vida de sucesso na operação financeira, por lucros através da manipulação de um dinheiro que, em algumas situações, nem é da própria pessoa – mas a qual assume o risco da eventual perda. O resultado, na maioria das vezes, são gastos excessivos para se manter nestas plataformas, girando a roleta para tentar obter mais lucros na próxima negociação, numa dinâmica muito próxima de um jogo.

A iGenius, especificamente, atua em quatro níveis nos quais sua operação é quase que completamente externalizada. Num primeiro nível, perfis de redes sociais, no Instagram e no TikTok, são utilizados para recrutar potenciais clientes mediante narrativas aspiracionais de riqueza, liberdade e sucesso financeiro. Este primeiro nível serve como porta de entrada para chats privados – que geralmente acontecem em grupos de Telegram -, onde são oferecidos as oportunidades de ganhos através da plataforma própria. No segundo nível, opera a plataforma da própria iGenius, que promove educação financeira. Nesse nível é que o aspirante precisa fazer aportes mensais significativos para ser introduzido na rede de investidores. Num terceiro nível, há as plataformas afiliadas, em que é possível realizar o trading especulativo de alto risco, em que o aspirante usa seus próprios recursos ou de terceiros, mas como forma de empréstimo. No último nível estão as plataformas de pagamento e gestão financeira, onde estes ganhos são revertidos em moeda ou, na maioria das vezes, criptomoedas.

Há uma clara desigualdade de oportunidades e vantagens entre negociadores profissionais, institucionais, e o tipo de perfil aspirante que este tipo de mercado tenta recrutar. Não é só a experiência, há também diferença de taxas – desvantajosas para negociadores de curto prazo, por exemplo. No final das contas, essa massa de pessoas que adentra no mercado financeiro tentando obter lucros numa atividade altamente financeirizada e não produtiva, acaba servindo de uma espécie de colchão para outros perfis com mais conhecimento ou com estratégias de longo prazo. “Os traders profissionais, que são muitas vezes as contrapartes dos traders de varejo, prosperam com o influxo dos inexperientes como fornecedores de dinheiro burro nos mercados financeiros”, escrevem os pesquisadores.

Os esquemas de marketing multinível plataformizado operam pouco na esfera da extração de valor por meio de coleta e monetização de dados. A ação é mais tradicional, atuando no roubo de renda ou das reservas financeiras dos negociadores. Há uma dependência direta em tentar reverter investimentos iniciais – que são altos – num mercado volátil que sempre é desfavorável. Como forma de manter um controle social, as comunidades (grupos de Telegram, por exemplo), reforçam as aspirações e esperanças de ganhos futuros, para manter o seu público alvo motivado a fazer girar a roda. A relação aparente aqui com esquemas de BETs e Tigrinho, no caso brasileiro, não é só similar, como revela que as práticas e estratégias destes modelos de negócios são intercambiáveis, visando a dilapidação dos recursos financeiros dos aspirantes em nome de um modo de vida vendido em perfis de redes sociais dos recrutadores.

Esses modelos de negócio compartilham e escancaram uma precariedade de relações de trabalho não pago a partir de uma mobilização de aspirações, vendendo-se como uma oportunidade de melhora de condição de vida que, infelizmente, raramente se realiza.

Para ler o artigo: https://journals.sagepub.com/doi/epub/10.1177/29768624251335549

Lavits

Esta nota faz parte do projeto “Inteligência Artificial e Capitalismo de Vigilância no Sul Global”, financiado pela Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade e realizado pelo Labjor - Unicamp | Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo

Data centers instalados no Sul Global são a face concreta do colonialismo digital

por Fabricio Solagna em 14 de junho de 2025, Comentários desativados em Data centers instalados no Sul Global são a face concreta do colonialismo digital

Em 2024, o Rio Grande do Sul enfrentou uma das maiores cheias de sua história. A cidade de Eldorado do Sul, na região metropolitana de Porto Alegre, ficou 97% submersa. Um ano após a tragédia, um dos anúncios sobre sua recuperação foi a instalação de um projeto para transformá-la em uma “cidade de data centers”, prevendo o investimento de R$ 3 bilhões pela empresa norte-americana Scala Data Centers.

O complexo irá consumir pelo menos 4,75 gigawatts de energia elétrica quando em pleno funcionamento, além de um volume ainda não estimado de água para resfriamento. Trata-se de um volume de energia superior à produção da terceira maior hidrelétrica do país, a de Jirau, equivalente ao consumo residencial de 40 milhões de pessoas.

Imagem gerada por inteligência artificial generativa utilizando palavras-chave: datacenter, grande escala

Este é apenas um exemplo no Sul do Brasil. A estimativa é que a demanda de energia triplique no eixo São Paulo-Campinas até 2030 para alimentar os data centers, cada vez mais necessários para processar a alta demanda dos algoritmos de Inteligência Artificial. A grande maioria desses empreendimentos é controlada por empresas estrangeiras, inclusive pelas próprias big techs, o que levanta questões relacionadas à soberania, à dependência tecnológica e ao colonialismo digital.

Essa discussão é apresentada no artigo “Inteligência artificial, data centers e colonialismo digital: Impactos socioambientais e geopolíticos a partir do Sul Global”, escrito por Renato Guimarães Furtado e Simone Evangelista Cunha, ambos pesquisadores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). O trabalho foi publicado no periódico Liinc em Revista, na edição especial do dossiê sobre “IA e a Questão da Soberania”. Os autores analisaram o desenvolvimento dos data centers no país nos últimos 12 anos e perceberam que, mesmo os empreendimentos nacionais, têm sido facilmente incorporados por controladores estrangeiros, em geral norte-americanos.

No Brasil, há um aumento considerável da instalação desses parques, devido às características de produção de energia limpa. Segundo Furtado e Cunha, há um nível de greenwashing, em que esse tipo de empreendimento é vendido como “sustentável”. Entretanto, ocupam áreas cada vez maiores, consomem muita energia e geram grande volume de descarte tecnológico para sua manutenção. Além disso, empregam poucas pessoas e, na maioria das vezes, elas nem estão no país. É a parte nada artificial da IA, exigindo escassos recursos ambientais para seu funcionamento.

“O desconhecimento sobre o uso anterior do espaço agora ocupado por data centers normaliza, material e imaterialmente, a noção de que a natureza é um mero receptáculo destinado a abrigar as estruturas e as máquinas da economia digital”, ponderam os autores.

Do ponto de vista geopolítico, a atuação das big techs no Sul Global aprofunda a dependência tecnológica e a desigualdade digital. Esse fenômeno dificulta o desenvolvimento de alternativas tecnológicas próprias, além de influenciar a agenda política local. Essa seria uma face do atual colonialismo digital, enquanto o território agora é ocupado para fazer funcionar os servidores das corporações do Norte Global.

É por esse viés que o trabalho discute a soberania digital. Partindo do pressuposto de que soberania é a capacidade de um Estado em controlar dados, tecnologias e infraestruturas digitais, os autores destacam a necessidade de se construir políticas públicas específicas voltadas à instalação de data centers, assegurando a gestão e o uso equilibrado dos recursos ambientais no contexto da crise climática. Considerando que soberania só pode ser exercida em seu próprio território, a alocação de espaço físico e de recursos naturais para os data centers torna a questão bastante concreta e palpável.

Recentemente, o Governo Federal aventou a possibilidade de criação de um programa chamado Redata, cujo intuito seria estimular a instalação de data centers no país, por meio da isenção de impostos para importação de insumos e para exportação de serviços para os beneficiários. O programa ainda não é público. Sua origem é do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, mas foi recentemente assumido pelo Ministério da Fazenda. Esse primeiro movimento consistiu em uma rodada de visitas e conversas justamente com as big techs, com a intenção de abrir caminho e moldar a proposta para atrair esses possíveis parceiros. As preocupações com a sustentabilidade ambiental ou com a soberania digital, apesar de constarem nos estudos iniciais, não estiveram na pauta nas primeiras declarações sobre a possível política pública — ao contrário do que Furtado e Cunha sugerem como passo necessário.

O Brasil é um dos países que concentra a grande parte dos data centers da América Latina mas um número pequeno em relação aos existentes nos EUA ou na China. Porém, pode se tornar o local onde se estimula a monocultura tecnológica do século: os data centers que rodam os algoritmos das IAs das big techs.

Link para o artigo: https://revista.ibict.br/liinc/article/view/7272/7049

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As veias abertas do Sul Global: vigilância no centro da dominação racial e econômica na África do Sul

por Fabricio Solagna em 8 de junho de 2025, Comentários desativados em As veias abertas do Sul Global: vigilância no centro da dominação racial e econômica na África do Sul

O colonialismo sempre se valeu da vigilância para controlar e extrair o máximo de valor das populações e dos territórios conquistados. Na África do Sul, essas práticas estavam presentes nos últimos séculos, mas se perpetuaram em outros moldes por meio de estruturas de vigilância digital.

Imagem gerada por inteligência artificial generativa utilizando palavras-chave: Africa, IA, Internet e desigualdade

No princípio, se utilizavam “passes de papel” ou até mesmo marcas na pele em escravizados e indígenas, mas foi no regime do Apartheid que os computadores chegaram para ajudar na sistematização e categorização racial. Com a democratização, em 1994, esperava-se que as redes digitais pudessem inaugurar outros tempos, mas o que ocorreu foi o início a uma nova forma de dominação: o colonialismo digital. Em todos os casos, é notória a participação e colaboração das elites locais com as potências estrangeiras.

Esta análise histórica sobre as práticas de vigilância e como elas se remodelaram no que considera colonialismo digital é discutida no trabalho de Michael Kwet no capítulo “Surveillance in South Africa: From Skin Branding to Digital Colonialism”, publicado no livro The Cambridge Handbook of Race and Surveillance, de 2023.

O livro conta com 16 capítulos de diversos autores, que analisam diferentes situações e práticas vigilantistas das big techs ao redor do mundo. Kwet é doutor em sociologia pela Universidade de Rhodes na África do Sul, atualmente é pesquisador no Centre for Social Change na Universidade de Joanesburgo e no Information Society Project na Escola de Direito de Yale.

Computadores da IBM e da HP foram amplamente utilizados depois de 1948 para auxiliar na catalogação racial que sustentaram as políticas do Apartheid na África do Sul. As bases de dados organizadas foram fundamentais para que a segregação racial pudesse ser mantida. Hoje, corporações de tecnologia norte-americanas, como Google, Facebook, Microsoft e Amazon, passaram a dominar a infraestrutura digital da África do Sul, centralizando o controle de dados, comunicação e vigilância. Até mesmo os cabos de fibra óptica que alimentam os backbones de conexão do país à Internet são de propriedade ou alugados pelas big techs. Em outro trabalho, intitulado “Undersea cables in Africa: The new frontiers of digital colonialism”, publicado neste blog, as autoras Esther Mwema e Abeba Birhane analisam como os cabos de Internet traçam as mesmas rotas dos navios negreiros. Escreve Kwet:

Hoje, as veias abertas do Sul Global de Eduardo Galeano são as veias digitais que atravessam os fundos oceânicos, conectando um ecossistema tecnológico de propriedade e controlado por um punhado de corporações, em sua maioria sediadas nos EUA.”

O autor aborda o Projeto Vumacam como emblemático da nova era do colonialismo digital, principalmente por caracterizar um sistema de vigilância urbana em expansão. Trata-se de uma estrutura que centraliza o monitoramento da população, sobretudo em espaços públicos, operando por meio de algoritmos opacos e tecnologias de inteligência artificial, voltadas ao reconhecimento facial. Tais ferramentas, segundo o autor, têm o potencial de reproduzir formas contemporâneas de discriminação racial herdadas do regime do Apartheid, agora mediadas por um fetiche tecnológico.. O projeto promove a implantação em massa de câmeras de vigilância em Joanesburgo, viabilizado por meio de parcerias público-privadas, nas quais os direitos à privacidade são constantemente colocados em risco, principalmente por compartilhar com entes privados dados sensíveis e biométricos das pessoas.

Outro exemplo do colonialismo digital no país seria a “Operação Phakisa na Educação”, um projeto que permitiu a instalação de softwares da Microsoft e do Google em 26 mil computadores escolares em 2015, mesmo existindo uma lei que incentivava a adoção de softwares livres na administração pública, aprovada anteriormente. Kwet ressalta o quanto essa política reforça a dependência tecnológica e aprofunda a perda de soberania do país sobre a gestão dos dados educacionais. O trabalho alerta o quanto este tipo de prática acaba por normalizar o vigilantismo na área da educação.

Apesar disso, há possibilidades de resistência. Kwet cita o movimento Friends of a Free Internet, que tem entre suas bandeiras uma infraestrutura digital descentralizada, baseada em software livre, propriedade comunitária e acesso universal. Eles são críticos à vigilância imposta pelas big techs e tentam criar alternativas democráticas e soberanas a partir de arranjos digitais locais.

O caso da África do Sul é um exemplo de como a vigilância sempre esteve no centro dos projetos de dominação racial e econômica, a partir de interesses estrangeiros, mas contando com a colaboração de elites locais para executar suas políticas imperialistas, segundo o autor. A nova luta agora seria a emancipação digital para “quebrar as correntes do colonialismo digital”.

Para ler o artigo: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3677168

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Cooperativismo e federações podem ser um dos caminhos para um mundo pós big techs

por Fabricio Solagna em 3 de junho de 2025, Comentários desativados em Cooperativismo e federações podem ser um dos caminhos para um mundo pós big techs

As plataformas remodelaram as relações de trabalho na última década e intensificaram a lógica neoliberal já existente. Agora, o fluxo e os processos de trabalho foram transferidos para os algoritmos, que determinam uma suposta melhor solução entre quem demanda e quem realiza uma corrida, uma carona ou uma entrega.

Imagem gerada por inteligência artificial generativa utilizando palavras-chave: trabalhadores, cooperativismo, IA e bigtechs

Os trabalhadores dependem das infraestruturas técnicas das big techs que, ao mesmo tempo, dificultam sua organização coletiva. Cada um passou a ser considerado um “empreendedor”, motivado a alcançar metas e objetivos que brotam na tela do celular.

Entretanto, há um recorte visível: enquanto no Norte as plataformas surgiram como uma renda complementar após a crise de 2008, no Sul elas se transformaram em uma alternativa (e muitas vezes a única forma) para inserção no mundo do trabalho. Um dos resultados é que na periferia o trabalho digital está mais concentrado em atividades menos qualificadas como entrega e transporte.

Nesse cenário é que tem surgido diversas iniciativas de cooperativismo de plataforma, soluções em que os trabalhadores são também donos e gestores das mesmas, controlando o processo algoritmo, sendo capazes de estabelecer suas próprias regras. O desafio é enorme, principalmente técnico, mas também de gestão e de convencimento do publico alvo em utilizar um novo aplicativo.

O pesquisador Felipe Gomes Mano, doutorando em Direito na Universidade Estadual Paulista (UNESP), se debruça sobre três experiências no artigo “Cooperativismo de plataformas e federações de cooperativas: unindo forças na busca por soberania digital e autonomia no trabalho no contexto Norte-Sul”, publicado no periódico Liinc em Revista, na edição especial que trata de questões de IA e soberania.

Seu objetivo foi comparar experiências na América Latina, com foco na Argentina e no Brasil, e o caso europeu da CoopCycle, uma federação de cooperativas de entregas espalhadas por doze países e que produziu diversos softwares em código aberto, disponíveis para outras cooperativas.

A CoopCycle nasceu na França após uma greve de entregadores. Atualmente, reúne mais de 70 coletivos e combina o trabalho de entrega com militância institucional a fim de influenciar os tomadores de decisão a criar leis e normas que proporcionem um melhor ambiente para o desenvolvimento de iniciativas similares. Uma das características da CoopCycle é exigir o uso exclusivo de bicicletas, condizente com seus valores de sustentabilidade. A experiência é uma das mais bem desenvolvidas no que se refere a federação de cooperativas, com regras bem definidas para alocação de recursos, com um sistema de decisão a partir de assembleias em que cada membro tem voto.

Na América Latina, o software da CoopCycle já teve projetos pilotos no Chile, Uruguai, México e Argentina. Lá, foi adotado pela FACTTTIC, uma federação de cooperativas de tecnologia, como forma de promover a experiência no país. Por meio de parcerias com universidades e apoio do poder público, conseguiu atacar desafios como desenvolver soluções territoriais de integração com meios de pagamento do país, adaptar mapas e resolver outras questões logísticas específicas. Em dois anos, conseguiu aglutinar 18 coletivos e cooperativas de entrega. Entretanto, um dos maiores desafios é o uso majoritário de motocicletas para entrega, ao passo que para o uso do Coopcycle é imperativo o uso de bicicletas. Atualmente, foram definidas algumas metas de migração da frota.

No Brasil, há a experiência da LigaCoop, formada por nove cooperativas de motoristas em sete estados. Eles têm seu próprio aplicativo, desenvolvido por uma empresa parceira. A federação já estabeleceu parcerias com universidades, órgãos públicos e busca criar um ecossistema sustentável para o transporte cooperativo. A Liga enfrenta os mesmos desafios estruturais das outras experiências no Sul, como a necessidade de recursos, dificuldades técnicas e dependências de algumas plataformas – principalmente do GoogleMaps. Ao mesmo tempo, é uma experiência bem consolidada e demonstra capacidade organizativa e de expansão.

Outro caso no Brasil é a Cooperativa de Sebos do Brasil, uma iniciativa ainda embrionária que ainda precisa desenvolver suas plataformas. O objetivo é enfrentar as dificuldades da monopolização de venda de livros usados pelas plataformas no país.

Mano considera que as federações de cooperativas de plataformas podem ser mecanismos para avançar em direção à autonomia e soberania no trabalho digital. No entanto, as experiências do Sul Global exigem adaptações aos territórios, como demonstram os casos estudados. O ajuste das soluções exige observar os contextos locais, considerando fatores culturais, regras e o enfrentamento dos desafios políticos. O intercooperativismo, entre atores do Norte e do Sul, parece ser uma estratégia promissora para fortalecer essas iniciativas.

Para ler o artigo: https://revista.ibict.br/liinc/article/view/7294/7073

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Vigilância e resistências entre trabalhadores especializados na China: “tenho receio de ser substituído por uma IA”

por Fabricio Solagna em 26 de maio de 2025, Comentários desativados em Vigilância e resistências entre trabalhadores especializados na China: “tenho receio de ser substituído por uma IA”

Os chamados “trabalhadores do conhecimento”, profissionais cujas atividades se baseiam em criar, compartilhar e gerir conhecimento especializado, ligados principalmente às áreas de tecnologia da informação (TICs) ou da indústria criativa, representam um volume considerável da massa laboral chinesa. O país é considerado o maior em crescimento no Sul Global e consolidou uma acelerada industrialização de ponta nas últimas décadas.

Imagem gerada por inteligência artificial generativa utilizando palavras-chave: trabalhadores, digital, cidade

Entretanto, o chamado “bem-estar laboral” se mostra um desafio, ainda que diversas medidas tenham sido implementadas nos últimos anos, como a jornada de trabalho de oito horas diárias. Mesmo assim, as dificuldades de fiscalização, a competitividade acirrada e a mudança de cultura corporativa geram insatisfações. Esses trabalhadores, mesmo tendo um elevado status (com melhor formação e com maiores salários), estão sujeitos à mesma lógica capitalista de extração de valor por meio do controle do tempo e do comportamento no trabalho. Aliado ao avanço das TICs, a vigilância se sofisticou em relação ao chão de fábrica. Agora há registros de presença, controle de produtividade via aplicativos, históricos de edição em documentos compartilhados e sistemas de monitoramento baseados em algoritmos, mesmo em trabalhos remotos. Este panorama se intensificou ainda mais no contexto da pandemia.

Nesse contexto, as professoras Weiming Ye, da Universidade de Pequim e Luming Zhao, da Universidade de Fundan, realizaram uma pesquisa qualitativa em profundidade questionando como os trabalhadores do conhecimento chineses percebem o trabalho, como é que a vigilância está interligada com esse significado e suas respectivas formas de resistências. Os resultados foram publicados no artigo “Knowledge Workers of the Digital World, Unite! Knowledge Workers’ Workplace Surveillance and Hidden Transcripts in China”, na revista acadêmica International Journal of Communication.

As autoras utilizam um conceito chamado “transcrições ocultas” para compreender as interações em que os trabalhadores se envolvem fora da vigilância direta. O termo designa uma metodologia que é utilizada para capturar discursos e práticas que podem confirmar, contradizer ou ressignificar o que é dito em público.

Uma parte da pesquisa foi realizada através de entrevistas semiestruturadas em profundidade com 13 trabalhadores entre 2022 e 2023, com idades entre 25 a 43 anos, todos trabalhadores em áreas do conhecimento. Outra parte do estudo foi feita através da análise de manifestações na rede social Weibo, um serviço de microblogging, de mensagens curtas. Alguns perfis foram selecionados e o foco de análise se deu principalmente na conta “Tui Na Bear” (que significa algo como “massagear o urso”, numa expressão cheia de trocadilhos, em chinês), com milhares de seguidores. Em 2022 foram mais de 300 postagens relacionadas ao tema de trabalho com mais de 30 mil respostas.

O crescente uso de redes sociais proporciona um ambiente onde é possível perceber como esse descontentamento é encarado, principalmente entre as gerações mais novas. Nos últimos anos, surgiram perfis críticos nas plataformas chinesas que atraem muito engajamento. Surgiram gírias como “996.ICU”, que se refere a jornada de trabalho de 12h em 6 dias por semana, ou “Fubao”, derivado de uma declaração do fundador da Alibaba, que sugeriu que os jovens deveriam encarar a cultura de longas jornadas como uma “enorme bênção”.

Apesar dos filtros e das restrições de termos adotados nas plataformas chinesas, as autoras consideram que a rede social proporciona um “backstage” para os trabalhadores “reproduzirem significados subversivos”, manifestando fofocas e críticas a cultura organizacional da empresas, ou seja, um lugar onde as transcrições ocultas estão mais manifestas, ainda que codificadas. Foram identificados diversos temas nessa amostra, que variam desde saúde, emoções e até questões relacionadas a direito previdenciário.

Sobre as percepções relativas ao significado do trabalho e relação com a vigilância, o estudo usou uma tipologia que distingue o trabalho como emprego, carreira ou vocação, na forma como o trabalho é visto pelos profissionais. Os sistemas de vigilância em geral combinam esforços humanos e algoritmos. Recursos originalmente destinados a aumentar a eficiência da comunicação tornaram-se mecanismos de vigilância através da utilização por colegas e líderes. Aquela sinalização que a mensagem foi visualizada ou que um arquivo foi aberto e editado são formas sutis de manejar a vigilância sobre a produção e a dedicação ao trabalho, conforme os relatos.

Da mesma maneira que os algoritmos vigiam, também podem ameaçar: “sinto uma sensação de crise em relação ao meu futuro, talvez um dia a inteligência artificial se desenvolva e me substitua”, conforme relatou um dos trabalhadores.

Sobre as horas extras, as pesquisadoras perceberam que há relatos de que há um “torneio até ao último sobrevivente”, onde os trabalhadores sentem-se obrigados a trabalhar por horas sob vigilância de aplicativos, por exemplo, mesmo na ausência dos seus líderes.

A observação das mensagens nas redes sociais proporcionou fértil um material sobre carga emocional envolvida, predominantemente negativas. As estratégias para enfrentar a vigilância podem ser de categorias do tipo de “fingir trabalhar”, com auxílio ou não de meios técnicos – como simular tarefas aleatórias no computador – ou fingir ignorância ou incompetência a fim de não se sobrecarregar de trabalho. São meios sutis de resistência frente ao monitoramento constante e que funcionam como válvulas de escape.

Um dos principais achados da pesquisa é que para quem considera o trabalho uma vocação, o controle cultural através da competitividade ou o cálculo racional entre custos e ganhos, está totalmente internalizado. Para quem considera o trabalho uma forma de estabelecer uma carreira, há um claro temor de ameaças, que podem ser a facilidade de ser substituído por outra pessoa ou por uma IA. Nesse sentido, as estratégias de vigilância perpetradas por algoritmos ou por processos técnicos acabam reforçando esses receios. Por fim, para os que interpretam o trabalho como um emprego, as estratégias de resistência costumam ser mais utilizadas.

Outro percepção do estudo é que essas práticas de resistência, apesar de sua criatividade, raramente se traduzem em uma ação coletiva. A resistência seria passiva e individualizada, revelando que a posição desses trabalhadores, na sua grande maioria de classe média, prefere não estabelecer um confronto político direto.

Ao mesmo tempo, isso revela o que as autoras consideraram uma “contradição estrutural” enfrentada por esses trabalhadores: ao mesmo tempo que são os agentes de um certo progresso digital, são o público que mais convive com diferentes estratégias de vigilância do seu trabalho cotidiano.

Para ler o artigo: https://ijoc.org/index.php/ijoc/article/view/21369/4668

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Esta nota faz parte do projeto “Inteligência Artificial e Capitalismo de Vigilância no Sul Global”, financiado pela Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade e realizado pelo Labjor - Unicamp | Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo