Brutal, mas recheado de uma retórica tecnicista, o governo Bolsonaro já foi fruto de análise acadêmica em diversos aspectos, em especial naqueles que levaram ao resultado de 2018. Entre esses fatores, a perseguição da mídia e do judiciário ao Partido dos Trabalhadores, o enfraquecimento da centro-direita, a crise econômica de meados dos anos 2010, o descontentamento dos militares com a investigação dos crimes da ditadura e a comunicação digital usada como estratégia eleitoral.
Mas pouco foi escrito sobre o modo de funcionamento do governo bolsonarista, sobre como ele veio a ser, o que se tornou e como operou, essa mistura de um tecnicismo neoliberal com um desdém pelas decisões políticas somado a uma paixão pela eliminação e violência. Quem nos ajuda a entender isso é Bruno Cardoso, professor da UFRJ, no artigo, “Militarized Managerialism and the Bolsonarist Dystopia in Brazil”, publicado no livro Policing and Intelligence in the Global Big Data Era.
As políticas de policiamento e vigilância urbana implementadas no Rio de Janeiro são um elemento-chave na análise. Cardoso cria conceitos como o de “gerencialismo militarizado” para entender a lógica de apropriação militarizada do neoliberalismo feita pelos agentes do bolsonarismo, mesmo antes do governo vir à tona. “Um modelo de pensamento e gerenciamento do Estado”, escreve Cardoso.
O artigo baseou-se na pesquisa de campo do autor junto a dois Centros de Comando e Controle do Rio de Janeiro. Introduzidos durante os mega-eventos (a Copa de 2014 e as Olimpíadas do Rio, dois anos depois), esses centros foram anunciados pelo governo Dilma como o grande legado dos mega-eventos para a área de segurança. Cardoso argumenta que a herança, na verdade foi uma “lógica gerencial militarizada”.
“Discussões em torno de Comando e Controle introduziram consistentemente uma estrutura gerencial implicitamente enraizada nos princípios da New Public Management (NPM). A característica central da NPM envolve ver o Estado como uma empresa, enfatizando metas, técnicas de benchmarking, parcerias com o setor privado e prestação de contas, entre outros fatores”, escreve. Cardoso estudou também dois documentos apresentados como a fundação metodológica da intervenção militar no Rio de Janeiro, outro momento reputado como importante pelo autor, o Brazilian Army Excellence in Public Management Model [BAEPMM] e o System of Excellence in the Military Organization [SE-MO]. Ambos seriam bastante rudimentares e apresentam uma versão simplificada de algumas ideias e estratégias básicas da New Public Management.
O mito dos militares como bons gerentes, que estaria dando fundamento a intrusões dos militares no gerenciamento da saúde e da educação, seria baseado em diversas “ traduções” retóricas, aponta Cardoso. Entre elas estão ideias como: equivaler o autoritarismo a um bom comportamento; tomar a corrupção como fruto de ações individuais moralmente repreenssíveis; os militares como capazes de disciplinar e punir os maus indivíduos; entender os sistemas de comando e controle como extensões de boas práticas gerenciais; associar a corrupção apensa ao setor público e não ao privado; tomar os militares como técnicos não-políticos e isentar a tecnologia de ideologia. Esta, a ideologia, seria específica à esquerda/comunismo.
As tecnologias, em particular, são apresentadas como capazes de resolverem, de uma maneira ou de outra, problemas estruturais e históricos, na mesmo sentido do tecnossolucionismo descrito por Evgeny Morozov.
Contudo, Cardoso coloca que a perspectiva militarizada-gerencial, é um “ horizonte de ação” e não uma promessa cumprida. “Durante o governo Bolsonaro, a gestão catastrófica da pandemia, levando o país a bater recordes de taxas de mortes e infecções, fez exatamente o mesmo que a intervenção federal alguns anos antes no Rio (com os mesmos atores). Em ambos os casos, o aspecto gerencial do raciocínio militarizado-gerencial tornou-se, dia após dia, mais visível como mero militarismo, evocando, de forma grosseira e perversa, ideias de eficiência ao gerir violentamente a morte de uma parte da população”, conclui.
Para ler o artigo: https://link.springer.com/chapter/10.1007/978-3-031-68326-8_5
Esta nota faz parte do projeto “Inteligência Artificial e Capitalismo de Vigilância no Sul Global”, financiado pela Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade e realizado pelo Labjor - Unicamp | Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo