As plataformas remodelaram as relações de trabalho na última década e intensificaram a lógica neoliberal já existente. Agora, o fluxo e os processos de trabalho foram transferidos para os algoritmos, que determinam uma suposta melhor solução entre quem demanda e quem realiza uma corrida, uma carona ou uma entrega.

Imagem gerada por inteligência artificial generativa utilizando palavras-chave: trabalhadores, cooperativismo, IA e bigtechs
Os trabalhadores dependem das infraestruturas técnicas das big techs que, ao mesmo tempo, dificultam sua organização coletiva. Cada um passou a ser considerado um “empreendedor”, motivado a alcançar metas e objetivos que brotam na tela do celular.
Entretanto, há um recorte visível: enquanto no Norte as plataformas surgiram como uma renda complementar após a crise de 2008, no Sul elas se transformaram em uma alternativa (e muitas vezes a única forma) para inserção no mundo do trabalho. Um dos resultados é que na periferia o trabalho digital está mais concentrado em atividades menos qualificadas como entrega e transporte.
Nesse cenário é que tem surgido diversas iniciativas de cooperativismo de plataforma, soluções em que os trabalhadores são também donos e gestores das mesmas, controlando o processo algoritmo, sendo capazes de estabelecer suas próprias regras. O desafio é enorme, principalmente técnico, mas também de gestão e de convencimento do publico alvo em utilizar um novo aplicativo.
O pesquisador Felipe Gomes Mano, doutorando em Direito na Universidade Estadual Paulista (UNESP), se debruça sobre três experiências no artigo “Cooperativismo de plataformas e federações de cooperativas: unindo forças na busca por soberania digital e autonomia no trabalho no contexto Norte-Sul”, publicado no periódico Liinc em Revista, na edição especial que trata de questões de IA e soberania.
Seu objetivo foi comparar experiências na América Latina, com foco na Argentina e no Brasil, e o caso europeu da CoopCycle, uma federação de cooperativas de entregas espalhadas por doze países e que produziu diversos softwares em código aberto, disponíveis para outras cooperativas.
A CoopCycle nasceu na França após uma greve de entregadores. Atualmente, reúne mais de 70 coletivos e combina o trabalho de entrega com militância institucional a fim de influenciar os tomadores de decisão a criar leis e normas que proporcionem um melhor ambiente para o desenvolvimento de iniciativas similares. Uma das características da CoopCycle é exigir o uso exclusivo de bicicletas, condizente com seus valores de sustentabilidade. A experiência é uma das mais bem desenvolvidas no que se refere a federação de cooperativas, com regras bem definidas para alocação de recursos, com um sistema de decisão a partir de assembleias em que cada membro tem voto.
Na América Latina, o software da CoopCycle já teve projetos pilotos no Chile, Uruguai, México e Argentina. Lá, foi adotado pela FACTTTIC, uma federação de cooperativas de tecnologia, como forma de promover a experiência no país. Por meio de parcerias com universidades e apoio do poder público, conseguiu atacar desafios como desenvolver soluções territoriais de integração com meios de pagamento do país, adaptar mapas e resolver outras questões logísticas específicas. Em dois anos, conseguiu aglutinar 18 coletivos e cooperativas de entrega. Entretanto, um dos maiores desafios é o uso majoritário de motocicletas para entrega, ao passo que para o uso do Coopcycle é imperativo o uso de bicicletas. Atualmente, foram definidas algumas metas de migração da frota.
No Brasil, há a experiência da LigaCoop, formada por nove cooperativas de motoristas em sete estados. Eles têm seu próprio aplicativo, desenvolvido por uma empresa parceira. A federação já estabeleceu parcerias com universidades, órgãos públicos e busca criar um ecossistema sustentável para o transporte cooperativo. A Liga enfrenta os mesmos desafios estruturais das outras experiências no Sul, como a necessidade de recursos, dificuldades técnicas e dependências de algumas plataformas – principalmente do GoogleMaps. Ao mesmo tempo, é uma experiência bem consolidada e demonstra capacidade organizativa e de expansão.
Outro caso no Brasil é a Cooperativa de Sebos do Brasil, uma iniciativa ainda embrionária que ainda precisa desenvolver suas plataformas. O objetivo é enfrentar as dificuldades da monopolização de venda de livros usados pelas plataformas no país.
Mano considera que as federações de cooperativas de plataformas podem ser mecanismos para avançar em direção à autonomia e soberania no trabalho digital. No entanto, as experiências do Sul Global exigem adaptações aos territórios, como demonstram os casos estudados. O ajuste das soluções exige observar os contextos locais, considerando fatores culturais, regras e o enfrentamento dos desafios políticos. O intercooperativismo, entre atores do Norte e do Sul, parece ser uma estratégia promissora para fortalecer essas iniciativas.
Para ler o artigo: https://revista.ibict.br/liinc/article/view/7294/7073

Esta nota faz parte do projeto “Inteligência Artificial e Capitalismo de Vigilância no Sul Global”, financiado pela Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade e realizado pelo Labjor - Unicamp | Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo