Parasitar o Norte para reconfigurar as tecnologias pelo Sul

por Fabricio Solagna em 20 de fevereiro de 2025, Comentários desativados em Parasitar o Norte para reconfigurar as tecnologias pelo Sul

A ficção científica proporciona diferentes narrativas para lidar com as curiosidades, incertezas e ansiedades sobre as tecnologias digitais, seja enaltecendo a sua capacidade de transformação ou destacando as possíveis ameaças.

Até pouco tempo havia um certo otimismo – quase consensual – em relação à capacidade de transformação da política em função da Internet. Hoje se estabeleceu uma apreensão sobre as big techs e as IAs e como podem tornar nosso mundo cada vez mais desordenado. No centro desse cenário invariavelmente está o empreendedor branco, masculino e do Norte Global como protagonista. Haveria uma forma alternativa de se pensar as possibilidades e consequências do uso das tecnologias digitais a partir do Sul Global?

Imagem gerada por inteligência artificial generativa utilizando palavras-chave: big techs, parasitismo, Sul e Norte global

É a partir daí que a pesquisadora Luisa Cruz Lobato, professora do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio propõe uma outra perspectiva, no artigo “‘South Fabricated’:Computing Stories of Global South Insecurity”, publicado na revista Contexto Internacional. A sua investigação explora a política das tecnologias digitais e o papel do digital na infraestrutura da democracia.

O ensaio se utiliza de dados etnográficos de pesquisa sobre o aplicativo Fogo Cruzado, coletados entre o ano de 2019 e 2021. O aplicativo foi originalmente foi concebido como um “Waze de balas” para produzir dados sobre tiroteios e ocorrências de pessoas atingidas por projéteis perdidos na cidade do Rio de Janeiro. A produção de dados é realizada colaborativamente, com ajuda dos usuários, sendo posteriormente checada e verificada antes da publicação. A iniciativa se transformou em um instituto e tem atuação em outras cidades, integrando um trabalho ativista mais amplo em segurança pública.

O artigo trabalha com a criação de uma fábula, reencenando a trajetória de uma bala que sai de um cano de revólver até se transformar em uma notificação de smartphone para “iluminar a forma como pensamos sobre a política do Sul Global”. Com isso, busca romper a ideia que as infraestruturas digitais são monolíticas e de que as histórias de inovação tecnológica precisam acontecer no Norte para assim se tornarem legítimas e válidas. O “Sul fabricado” interconecta a ficção científica e a fabulação especulativa para recontar histórias de tecnologias digitais.

A estratégia é desconstruir, em primeiro lugar, o “mito da garagem”, a visão de que indivíduos, pela sua capacidade extraordinária, poderiam criar tecnologias disruptivas a partir de sua casa e mudar o mundo – desvelando assim o aspecto neoliberal e do empreendedorismo de guerra, sobre o investimento e superação do soldado como forma de vitória, os dois sentidos incorporados nessas narrativas. Filmes como De Volta para o Futuro (1985) e A Rede Social são ótimos exemplos elencados pelo trabalho, que refletiriam esee mito no cinema.

Em segundo lugar estaria o mito do “computador universal”, representado no computador do Jornada nas Estrelas. Nesse caso, a tecnologia computacional seria a interface de acesso ao conhecimento ilimitado. É o papel que os algoritmos ocupam cada vez mais no nosso cotidiano, seja para fazer a curadoria das informações nas redes sociais ou nos ajudar nas tarefas mais cotidianas através da Alexa ou da Siri. Mas, na mesma medida que essas interfaces funcionam para nos apresentarem mais informações e conhecimentos, seus algoritmos são tratados como um segredo comercial, fruto da maestria do empreendedorismo de capital de risco, reforçando os aspectos do primeiro mito.

Em terceiro lugar figuraria a “IA maligna”, quando a tecnologia se voltaria contra as próprias pessoas, como foi representada no filme Eu, robô (2004) ou no documentário ativista Slaughterbots (2017). É por onde projetamos as ansiedades e temores de segurança, de perda de controle sobre as máquinas.

Essas três narrativas se entrelaçam no tempo e fornecem uma lente para especular como a tecnologia é vista e retratada. Da mesma maneira, essas camadas podem ser identificadas na produção acadêmica, em especial nas relações internacionais, à qual a autora dedica maior atenção.

O “Sul fabricado” é o estudo de caso do aplicativo Fogo Cruzado, em que a autora percebeu como as tecnologias das big techs são utilizadas para produzir um conhecimento negligenciado ou secundarizado, como a ocorrência de tiroteios ou pessoas atingidas nos territórios. Muitos desses locais onde o aplicativo identificava as ocorrências não tinham sequer mapeamento de geolocalização pelas tradicionais plataformas de mapas, por exemplo. O trabalho colaborativo se vale de relatos que os usuários fazem em mídias sociais (ou seja, também das big techs) e que são catalogadas e verificadas por outras pessoas envolvidas na iniciativa.

Nesse sentido, percebe-se como o poder tentacular de extração de valor do capitalismo de vigilância tem um alcance quase totalizante mas que, ao mesmo tempo, em configurações específicas, pode ser subvertido ou “parasitado” – nas palavras da pesquisadora – a fim de construir uma outra narrativa a partir do Sul.

O Fogo Cruzado é parasitário no sentido de que, primeiro, estabelece uma relação assimétrica de reciprocidade com o Google, tomando emprestado da infraestrutura deste último por meio de suas solicitações de API, enquanto o Google “come” os dados produzidos localmente para aperfeiçoar seu conhecimento do território. Portanto, o Fogo Cruzado não funciona contra o Google (ou outras empresas de tecnologia das quais pode tomar emprestado um ou dois recursos), mas com ele. Segundo, essa relação está sempre sendo modificada, adaptada com base nas necessidades dos criadores de aplicativos e de sua base de usuários.

A ideia de parasitismo e da possibilidade de contaminação abrem a perspectiva para pensar os limites e possibilidades inerentes a um mundo tomado por plataformas e que imprimem um modo de identidade e de representação da vida, como percebido pela autora nas narrativas sci-fi.

O projeto analisado certamente aborda uma das formas de resistência, da possibilidade de uso das tecnologias para além do imaginado pelo empreendedor. Ao mesmo tempo, na história recente, há inúmeros outros casos em que iniciativas de resistência foram sendo moldadas e incorporadas ao capital, como o desenvolvimento de tecnologias e softwares abertos, ainda que suas ideias e sua perspectiva política continuem atuais.

Para ler o artigo: https://doi.org/10.1590/S0102-8529.20244603e20220055