IA pós-socialista chinesa é alternativa ao tecnoneoliberalismo ocidental

por Fabricio Solagna em 17 de fevereiro de 2025, Comentários desativados em IA pós-socialista chinesa é alternativa ao tecnoneoliberalismo ocidental

A corrida tecnológica pela liderança em tecnologias de IA está em curso e tem mobilizado big techs, financiadores e Estados-nação, que cada vez mais tem apostado no tema como forma de competir geopoliticamente. Recentemente, a nova administração Trump anunciou um investimento de US$ 500 bilhões do setor privado, com ajuda governamental. A China já está construindo cerca de 250 centros avançados de computação, com previsão de conclusão até o final de 2025, como infraestrutura para o desenvolvimento de IAs. Mas haveria alguma diferença da IA desenvolvida pela China e a dos outros países capitalistas, principalmente a dos EUA?

Qiaoyu Cai, filósofo e professor da Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara, propõe o conceito de uma “IA pós-socialista”, que vai além do paradigma dominante do informacionalismo neoliberal. O ensaio foi publicado como um artigo intitulado “The Cultural Politics of Artificial Intelligence in China”, na revista Theory, Culture & Society, referência internacional para estudos científicos inéditos na área de cultura e sociedade.

Segundo o autor, há uma complexa interação entre o apoio estatal, práticas governamentais locais e os investimentos de mercado na China, evidenciando objetivos político-econômicos que resistem à simplificação em um modelo universalizado de capitalismo neoliberal para se pensar o desenvolvimento econômico chinês. As IAs do outro lado do mundo, portanto, devem ser pensadas fora do paradigma neoliberal em que, segundo alguns, teriam nascido.

Uma evidência usada no ensaio é como o termo “popular” é bastante utilizado nos documentos (os whitepapers) no contexto chinês. Já o termo “engajamento cívico e político”, ao contrário, é frequentemente usado no modelo liberal de participação democrática. O conceito de “popular” no contexto chinês está intimamente ligado à supervisão pública, à inserção no regime e à participação controlada, mecanismos que são pilares da estrutura do partido-estado leninista-maoísta. A participação controlada parece ser a chave para entender como o governo compreende a incorporação das massas no desenvolvimento das IAs.

Os princípios ideológicos e organizacionais das instituições leninistas-maoístas estão profundamente enraizados na adoção entusiasmada da IA pela China, pois otimizam as estruturas e práticas políticas existentes para inclusão controlada”.

A grande questão levantada pelo trabalho de Cai é que o chamado “pós-socialismo” não seria só uma condição socioeconômica determinada de uma época, mas uma ordem cultural e política que incorporaria uma forma dominante de modernidade tecnológica. A subjetividade pós-socialista seria uma figura sociopolítica caracterizada por rupturas e continuidades com a era anterior do alto comunismo, algo análogo ao homo economicus do Ocidente no neoliberalismo.

Para examinar o desenvolvimento da IA na China, portanto, haveria a necessidade de não objetificar nem a IA (como essencialmente ocidental) nem a própria China (como um capitalismo de Estado, ou um socialismo neoliberal). Seria preciso dar atenção ao encontro interativo entre a “dimensão alienígena” do pensamento algorítmico e uma experiência distintamente chinesa de modernidade — ambas as quais “permanecem inassimiláveis à reprodução global da subjetividade neoliberal”, segundo o autor.

Link para o artigo: https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/02632764241304718

Lavits

Esta nota faz parte do projeto “Inteligência Artificial e Capitalismo de Vigilância no Sul Global”, financiado pela Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade e realizado pelo Labjor - Unicamp | Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo

Ajuda humanitária como pilar da colonialidade de dados

por Fabricio Solagna em 11 de fevereiro de 2025, Comentários desativados em Ajuda humanitária como pilar da colonialidade de dados

O Sudão do Sul e a Nigéria são muito diferentes. O primeiro é a nação mais jovem do mundo, tendo referendado sua independência em 2011 após uma longa guerra civil. O segundo é um dos países mais desenvolvidos da África, mas que ainda enfrenta grandes desafios para pacificar seus conflitos internos. O que os dois países têm muito em comum é que suas populações passam por deslocamentos internos, em decorrência da violência, das disputas territoriais e da intolerância religiosa.

Nesse contexto é que atuam as operações humanitárias em que ONGs e órgãos das Nações Unidas se dedicam a levar ajuda, principalmente nos acampamentos estabelecidos no nordeste dos dois países.

Vicki Squire e Modesta Alozie, ambas da Universidade de Warwick, em Coventry, no Reino Unido, realizaram uma pesquisa qualitativa com cerca de 80 pessoas em 2021, entre residentes, trabalhadores, gestores – incluindo doadores – e pessoas ligadas às ONGs e as agências das Nações Unidas que atuam nestes locais. O resultado do trabalho foi publicado em um artigo na revista Big Data & Society, com o título “Coloniality and frictions: Data-driven humanitarism in North-Eastern Nigeria and South Sudan”.

A análise do trabalho se concentra em compreender como as injustiças são perpetuadas na chamada “revolução de dados”, ou seja, como o advento da digitalização e da coleta de dados pessoais nessa situação de risco é ainda mais intensificada através da dinâmica paternalista associada à colonialidade do humanitarismo. Segundo as autoras, “a lógica de extrativismo estrutura o ecossistema de dados humanitários, a despeito do consentimento ou entendimento das populações sobre o uso das informações a seu respeito”.

Os dados biométricos são amplamente utilizados e auxiliam na distribuição de provisões básicas, na maioria das vezes usando cartões de identidade eletrônicos. Ocorre que essa coleta é muito mais orientada pela demanda de responsabilização ou acompanhamento dos doadores do que necessariamente uma necessidade primeira para as populações atendidas. Ou seja, as populações atendidas não estão em posição de perceber que o recebimento de mais ajuda está condicionado a entregarem suas digitais a um banco de dados estrangeiro, por exemplo.

Em muitos relatos coletados, percebeu-se um evidente descontentamento ao notarem que a maioria das demandas não são atendidas, ainda que a coleta e compartilhamento de dados e informações entre os atores da ajuda humanitária sejam passos necessários. Para além disso, nem sempre os critérios de consentimento são observados ou totalmente considerados. No limite, a ajuda é tão necessária para essas populações vulneráveis que se justificaria pular etapas sem que as pessoas pudessem compreender o porquê da necessidade de compartilhar seus dados.

“A análise mostrou como as pessoas que recebem assistência são sistematicamente desconsideradas como sujeitos de conhecimento com capacidade de conhecer e agir sobre os dados gerados sobre eles. Embora especialistas humanitários estejam cada vez mais cientes das práticas extrativas nas quais a colonialidade dos dados é fundamentada, uma série de atritos, no entanto, emerge em torno das disposições humanitárias, coleta de dados e a ética da assistência humanitária orientada por dados.

No centro da questão, evidencia-se que a coleta de dados se torna um pilar fundamental da colonialidade da ajuda humanitária, no sentido de que as organizações internacionais, ONGs e agências da ONU envolvidas no processo podem facilmente desconsiderar questões éticas ou de boas práticas em nome da ajuda humanitária. É bom ressaltar que essa ajuda não é algo opcional para as comunidades envolvidas, trata-se de receber uma barraca ou alimento para se estabelecerem em campos de refugiados internos aos países. Isso intensifica ainda mais a necessidade de pesquisas e complexifica a forma como a questão é abordada.


Para ler o artigo: https://doi.org/10.1177/20539517231163171

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Cidades inteligentes e vigilantes que só funcionam para os bairros ricos

por Fabricio Solagna em 7 de fevereiro de 2025, Comentários desativados em Cidades inteligentes e vigilantes que só funcionam para os bairros ricos

O termo “cidades inteligentes” se tornou badalado nas últimas décadas, principalmente nos discursos de quem tenta promover transformações tecnosolucionistas para os problemas das grandes cidades. Trata-se de uma abordagem que mistura exploração de dados, racionalização neoliberal e uma governança de novo tipo, num contexto de políticas públicas voltadas ao capitalismo tardio.

Imagem gerada por inteligência artificial generativa utilizando palavras-chave: vigilância, CCTV, câmeras

Na segurança pública essa abordagem encontra alavancagem. Há um farto mercado interessado em oferecer “soluções inovadoras”. Ao mesmo tempo, os gestores do eEstado tentam melhorar os indicadores de violência, oferecendo maior capacidade de controle e gestão de incidentes, principalmente em grandes metrópoles, como é o caso de São Paulo.

É sobre esse cenário que se debruça o artigo “Smart Security? Transnational Policing Models and Surveillance Technologies in the City of São Paulo”, que faz parte do livro Policing and Intelligence in the Global Big Data Era, da EditoraPalgrave Macmillan. Publicado por Alcides Eduardo dos Reis Peron e Marcos César Alvarez, pesquisadores paulistas da FECAP e USP, respectivamente, o estudo é parte de uma pesquisa etnográfica realizada entre 2018 e 2020. Os pesquisadores conversaram com associações de bairro, moradores, pesquisadores, policiais e empresários em regiões onde os programas City Cameras e Vizinhança Solidária foram implementados.

O City Cameras é um sistema de vigilância em nuvem que monitora espaços públicos e que pode se integrar com sistemas particulares, como casas ou empresas, oferecendo armazenagem, gerenciamento centralizado e produção de estatísticas, providos pela CompStat Software.

“Essas imagens podem ser acessadas tanto pelos proprietários das câmeras quanto pelos agentes de segurança pública e privada. Supostamente pretendem servir tanto como um mecanismo para dissuadir o crime quanto como uma ferramenta para a investigação policial.”

É, portanto, muito mais que um circuito de câmeras (CCTV) interconectado. É um modelo – técnico e operacional – em que residentes, comerciantes ou empresas de segurança podem seguir e assim fazer parte de um sistema mais amplo, provendo sua infraestrutura particular de vigilância eletrônica para o Estado, de forma compartilhada.

O programa Vizinhança Solidária tem raízes no modelo de policiamento comunitário da década de 1980 e foi adotado pelo governo municipal e estadual, além de instituições como bombeiros e Polícia Militar. Segundo o material oficial, o objetivo é promover a “mobilização social em prol do fortalecimento da cultura de paz”. Dentro das ações do programa, institui-se tutores locais, que são orientados pelos agentes de segurança e fazem uma intermediação e o que se denomina “prevenção primária”.

Na pesquisa de Reis e Alvarez, percebeu-se que o Vizinhança Solidária ajuda no reforço e legitimação do City Cameras para os residentes e empreendimentos dos bairros. Os autores chamam a atenção para um aspecto de descentralização das políticas. Bairros se tornam “esferas de segurança” ou “espaços comunitários”, onde atores públicos e privados, civis e militares, exercem a governança da segurança pública. Apesar de parecer, a princípio, que essa abordagem poderia trazer uma gestão mais democrática da segurança, o que a pesquisa avalia é que há uma transferência de certas responsabilidades para a esfera privada.

Ocorre que essa governança é muito diferente do que ocorre num bairro como Pinheiros e a periferia da cidade. Em especial na cidade de São Paulo, é notório o aumento da letalidade policial e a resistência do governador em utilizar amplamente as câmeras corporais dos agentes de segurança, como forma de inibir excessos e erros de conduta.

A tecnologia, no caso, ajuda a produzir uma cidade controlada, e atrativa para a iniciativa privada, apenas nos locais onde a política quer priorizar, com a colaboração de agentes privados para exercer funções que deveriam ser do Estado.

Leia o artigo completo em: https://doi.org/10.1007/978-3-031-68326-8_4

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“Explorador de dados” é o novo precário que alimenta as casas de apostas online

por Fabricio Solagna em 9 de dezembro de 2024, Comentários desativados em “Explorador de dados” é o novo precário que alimenta as casas de apostas online

Imagine um pequeno estádio de futebol num sábado ao meio-dia, onde ocorre um jogo da terceira divisão do campeonato estadual goiano. Não há um grande público, tampouco cobertura de imprensa ou transmissão ao vivo, mas duas pessoas registram dados do jogo freneticamente nos seus celulares: são dois data scouts ou exploradores de dados, que foram previamente contratados para fornecer dados da partida para serviços de apostas online.

Imagem gerada por inteligência artificial generativa utilizando palavras-chave: apostas online, futebol e IA

Para compreender esse fenômeno, o sociólogo Julio Souto Salom, professor de sociologia na Universidade da Bahia (UFBA), fez uma pesquisa entre os trabalhadores que fazem este tipo de coleta de dados, através de uma observação participante. O resultado foi publicado no artigo “Abasteciendo con datos las apuestas deportivas online: data scouts y extractivismo ampliado”, disponível na revista Athena Digital.

A pesquisa acompanhou o trabalho de alguns data scouts entre 2019 e 2020, cuja tarefa era extrair informações de jogos em diferentes campeonatos para alimentar os sistemas de apostas recorrentes, aquelas que permitem apostas enquanto o jogo acontece (in-play betting).

Há uma miríade desses serviços de apostas online e a todo momento elas invadem o horário nobre da televisão, patrocinam influenciadores, inundam as redes sociais com apelos constantes, tudo para convencer o público a “testar a sorte”. A cobertura de jogos e partidas é ampla, indo além do futebol. O explorador de dados é imprescindível para fazer girar a máquina, afinal “équem produz o fluxo de dados que move a anima o feed de dados da tela dos apostadores”, segundo Julio.

Com infraestruturas tecnológicas e apostando em persuasões psicológicas e culturais, esta modalidade influencia o comportamento do apostador. As plataformas de jogo permitem que a prática de apostas seja simultânea à visualização do evento. Isso modifica comportamentos e as motivações: em vez de considerar o resultado, o apostador confia mais na sua capacidade de analisar e prever eventos. Para manter a recorrência, torna-se imprescindível oferecer um catálogo infinito de partidas disponíveis para apostas ao vivo.

As plataformas de apostas online tiveram uma explosão no Brasil nos últimos anos. A liberação das bets se deu em 2018, por meio da lei nº 13.756, que na prática legalizou a exploração de apostas online sem pagamento de impostos e qualquer obrigatoriedade de retorno ao apostador. O tamanho do problema é tão relevante que um estudo do Banco Central identificou que os brasileiros chegaram a gastar mais de R$ 20 bilhões em apostas por mês neste último ano. Depois da repercussão, o governo federal publicou algumas normas adicionais a fim de estabelecer alguma regulação para atuação desse tipo de serviço. Uma CPI foi instaurada no Senado, depois que uma investigação policial envolveu artistas, influencers e as plataformas de apostas, em uma suposta lavagem de dinheiro.

O trabalho dos data scouts, não é recente, e está conectado a empresas estrangeiras, especializadas em dados, que contratam pessoas para coletar informações em campo e negociam os dados como atravessadores. Nos últimos anos, nomes como Perform Group, Sportsradar, Real Time Sports (RTS), Sportscast ou Genius Sports firmaram acordos os campeonatos, competições e, fundamentalmente, plataformas de apostas, com a tarefa de coletar, organizar, analisar e entregar dados desportivos em tempo real para sites como Bet365, Btwin, Sportingbet, Betfair, Betway e outras. Os data scouts é que fecham o elo e transformam as partidas em estatística, disponíveis em tempo real para os apostadores.

Os achados de Julio Salom demonstram que, em geral, os exploradores de dados têm empregos formais e o trabalho de dadificação é encarado como uma atividade secundária, ainda que os rendimentos desta operação possam facilmente superar os ganhos líquidos da sua fonte principal. Como os pagamentos são realizados em moeda estrangeira, o câmbio favorece. Cada jogo pode render até R$ 400,00 e facilmente uma pessoa pode cobrir dez jogos por mês. É um trabalho que exige habilidades mínimas em inglês para preencher os dados durante o jogo (ou para narrar acontecimentos, a depender de cada empresa). Praticamente todos os entrevistados possuem curso superior e uma relação longa no trabalho de dadificação. Em alguns casos, com histórico de quase uma década.

Diferente do que outros trabalhos em plataformas como Uber ou Ifood, o conhecimento prévio das necessidades desse tipo de trabalho faz diferença. Os data scouts se reportam a um coordenador direto e estabelecem laços de confiança, na medida que também podem propor jogos e/ou campeonatos para cobrir. Há uma certa organização geográfica para que não haja muita competição sobre quem irá cobrir as partidas numa mesma área. Por fim, a pesquisa também demonstra que há uma relação afetiva com o próprio esporte, ou seja, há um certo prazer em acompanhar as partidas e também receber por isso.

É interessante notar a especificidade desse trabalho. Ainda que a geração e coleta de dados sejam cada vez mais automatizados, seja por dispositivos vestíveis, seja pela capacidade transformação de vídeos em dados por meio de IAs cada vez mais precisas, ocorre que muitas vezes certas jogadas, características de certos jogadores ou da própria arbitragem, sejam mais facilmente interpretadas por esses olheiros que estão presencialmente nos locais. Além disso, alia-se a característica de que essa indústria precisa de uma imensa quantidade de dados de inúmeros jogos, muitos deles com pouca infraestrutura de transmissão, portanto exigindo o trabalho de campo.

O cenário pesquisado por Julio demonstra o que se categoriza por extrativismo expandido, no sentido de que todo e qualquer tipo de dado pode ser convertido, monetizado, a partir de sua exploração e disponibilização em plataformas. Os trabalhadores são uma ponta da cadeia, onde o objetivo é que cada vez mais pessoas depositem esperança em ganhar retornos na sua capacidade de predição no próximo acontecimento do jogo. É um jogo em que, no agregado, a banca sempre ganha e que ainda pode servir para trampolim de negócios mais escusos, como é o caso dos processos investigados no Brasil pela CPI.

Para os data scouts, continuam valendo as regras desse tempo de trabalho precarizado, de autogestão do tempo, da necessidade de dedicação e flexibilidade da jornada de trabalho e, obviamente, os laços precários, frágeis e os pagamentos pontuais.


Para ler o artigo da pesquisa, acesse: https://doi.org/10.5565/rev/athenea.3483

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“Só fiz a tecnologia”: setor privado estimula tecnovigilância na Índia

por Fabricio Solagna em 5 de dezembro de 2024, Comentários desativados em “Só fiz a tecnologia”: setor privado estimula tecnovigilância na Índia

A Índia possui uma indústria privada de tecnologias para vigilância que representa um mercado de US$ 2 bi e em crescimento exponencial. Estima-se que alcançará US$ 8 bi até 2028, fruto da maciça encomenda de soluções pelo Estado. É um misto de empresas já estabelecidas, inclusive estrangeiras, que atuam e produzem no país e, principalmente, numerosas startups que oferecem diversos serviços, como reconhecimento facial.

As parcerias público-privadas para coleta e tratamento de dados pessoais dos cidadãos não parecem algo corriqueiro para a população indiana, o que gera certa apreensão, principalmente entre especialistas, pesquisadores e lideranças da sociedade civil. Ao mesmo tempo, a abordagem do mercado tenta criar vínculos pessoais. As campanhas publicitárias das empresas e corporações envolvidas trabalham com sentimentos e até preconceitos para vender soluções que, em teoria, ajudariam a tornar a polícia mais eficiente e as cidades mais seguras.

Imagem gerada por inteligência artificial generativa utilizando palavras-chave: Índia, IA e segurança pública

É o que observa a pesquisadora Shivangi Narayan, engenheira, jornalista e socióloga com experiência em estudos do policiamento digital, participante do projeto AGOPOL (Algorithmic Governance and Cultures of Policing: Comparative Perspectives from Norway, India, Brazil, Russia, and South Africa).

Os resultados de sua pesquisa etnográfica, realizada entre 2021 e 2022, foram publicados no artigo “For Your Own Safety’: The Soft Push of Surveillance by the Private Sector in India”, que faz parte do livro Policing and Intelligence in the Global Big Data Era.

“A indústria cria uma demanda por tecnologias de vigilância tanto de forma aberta como dissimulada. Se apoia em ideias existentes no imaginário popular e em ideologias dominantes, além de apostar em crenças, ansiedades, dúvidas ou mesmo em superstições do seu público-alvo. Um exemplo é a manipulação dos receios em relação às religiões minoritárias na Índia, principalmente a muçulmana. Ou sobre a frustração com a eficiência do setor público, ou sobre a necessidade de ‘salvar a família’ ou proteger a ‘honra das mulheres'”.

Uma das empresas é a Hyperverge, que está envolvida com o sistema de reconhecimento facial fornecido para a polícia de Nova Deli. O sistema foi incorporado como forma de tornar o policiamento mais eficiente, com capacidade de detectar criminosos a partir de câmeras em locais públicos. Entretanto, as falhas de detecção são admitidas pela própria empresa fornecedora, cujos dispositivos não são capazes de diferenciar entre um menino e uma mulher caso a distância seja um pouco maior que alguns metros, por exemplo.

Apesar disso, no discurso das autoridades, alguns casos como a detecção e reconhecimento de pessoas envolvidas em protestos – e principalmente os que tem motivações políticas e religiosas em função do Islamismo -, são suficientes para justificar e atestar a efetividade das tecnologias.

Outra grande iniciativa implantada em toda a Índia foi a identificação única através da Autoridade de Identificação Única da Índia (UIDAI) ou Aadhaar. Trata-se de um sistema de 12 dígitos que funcionam como identificadores dos cidadãos, e que também permite a conexão com outros sistemas, como de pagamentos instantâneos com leitura biométrica, ou reconhecimento facial para uso nos aeroportos. “O Aadhar foi a porta de entrada do setor privado no setor público”, relata a pesquisa. Um dos fundadores da Infosys, que projetou esta tecnologia, Nandan Nilekani, tornou-se chefe da UIDAI e modelou boa parte das políticas públicas relacionadas à identificação digital no país.

O Aadhaar criou uma operação gigante, com todos os dados dos cidadãos, sendo operado por uma série de empresas privadas. Porém, a gigantesca população indiana acaba nem sempre tem a mesma qualidade de acesso aos serviços públicos em função de diversos problemas na implementação dessa transformação digital, seja por conta dos limites na infraestrutura ou mesmo pela cultura de uso envolvida nas novas tecnologias – semelhante o que retratou o filme inglês “Eu, Daniel Blake”, do diretor Ken Loach, numa comparação no contexto indiano. Se, contudo, confrontados com os efeitos colaterais causados pela implementação dos dispositivo, os executivos das empresas se eximem de responsabilidade.

“Quando questionados sobre o aspecto excludente do Aadhaar e outros, os executivos alegaram que apenas construíram a tecnologia e não tiveram nenhum papel na forma como ela foi usada”.

Como afirma a autora da pesquisa, as tecnologias utilizadas na segurança criaram um hype e expectativas que não tem a ver com a realidade dos produtos. Para além disso, há um vácuo de responsabilidade em que as empresas não se inserem no ecossistema de implementação, revisão e melhoramento das políticas das suas tecnologias, relegando esse papel ao Estado. Esse arranjo fica confortável para as empresas, que ficam com a tarefa de criar, vender e lucrar com as soluções, sem se preocupar com as consequências.

“O mais surpreendente é que a principal característica dessa indústria é a forma como ela insiste em não ser produto de uma determinada cultura, em não ser impactada pela cultura ou pela sociedade, ou então, a forma como se distancia repetidamente do próprio ambiente em que trabalha e que molda, situando-se fora da cultura e dentro de um ambiente puramente imaginário, racional, imparcial, neutro e tecnocrático.”

Imaginar que há relação com a operação de políticas de segurança que ajudam a decidir sobre vítimas e culpados, ou sobre quem tem acesso a alguns serviços do Estado, faz pensar que é preciso que as tecnologias estejam sob escrutínio democrático. Isso sugere a necessidade de processos de participação e transparência urgentes para a implementação destas políticas públicas, principalmente no Sul Global.

Para ler o artigo: https://doi.org/10.1007/978-3-031-68326-8_6

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Algoritimização da polícia em Kerala, Índia, desperta temores sobre um ciber-leviatã

por Fabricio Solagna em 28 de novembro de 2024, Comentários desativados em Algoritimização da polícia em Kerala, Índia, desperta temores sobre um ciber-leviatã

O leviatã é uma serpente marinha demoníaca, referenciada no Antigo Testamento. Também foi a criatura escolhida por Thomas Hobbes, no século XVII, para dar título a sua teoria pioneira sobre o contrato social. O Estado deveria ser uma entidade unificada e onipotente, que desperta medo nos humanos. Leviatã algorítimco é a expressão escolhida pelo sociólogo Ashwin Varghese para falar de sistemas de policiamento algoritimizados que encontrou em Kerala, Índia.

Kerala é um dos 28 estados que compõem a Índia e se destaca por ter o maior índice de desenvolvimento humano (IDH), além dos melhores indicadores de segurança pública.

Imagem gerada por inteligência artificial generativa utilizando palavras-chave: Índia, IA e segurança pública

Em 2019, a polícia de Kerala lançou um “recruta robô”, chamado de KP Bot .Mas ele não ganhou funções de patrulhamento avançado, como no filme Robocop. Suas tarefas eram circunscritas ao escritório da polícia e serviam para demonstrar a introdução de novas tecnologias aplicadas no policiamento pelo governo local.

Uma série de reformas tem buscado implantar tecnologias digitais para uma melhor governança administrativa, inclusive na área de segurança, em Kerala. Para além de digitalização de processos, recentemente a Inteligência Artificial foi incorporada como uma das iniciativas. Um novo software chamado iCOPS foi implantado para analisar o extenso volume de dados produzidos diariamente pelas polícias a fim de proporcionar a transição para um “policiamento inteligente”.

Foto do KP Bot em uso. Fonte: https://encurtador.com.br/oV9p4

Esse cenário é analizado por Varghese, no artigo “E-Governance and Smart Policing in Kerala, India: Towards a Kerala Model of Algorithmic Governance?”, publicado no livro Policing and Intelligence in the Global Big Data Era.

O pesquisador faz uma profunda imersão nas transformações políticas e econômicas das últimas décadas que influenciaram documentos, planos e normas da segurança pública de Kerala. Ele observa como a tecnologia foi utilizada como uma promessa para afastar a ideia de viés, de partidarização, ou mesmo de corrupção na polícia. A gerência pelos “especialistas” refletiria o sonho das reformas neoliberais a partir da década de 1980.

“A transformação tecnológica das instituições estatais tem sido o sonho de reformas tecnocráticas e neoliberais, através das quais a tecnologia é percebida como isenta de preconceitos, apartidária e impulsionada pelos especialistas, tornando assim as instituições estatais mais ‘eficientes’. A governança algorítmica sob a promessa de ‘eficiência’ também oferece a possibilidade de reforma através de conhecimentos especializados, isolados das pressões democráticas.”

Apesar disso, o suposto processo de modernização do policiamento tem diferentes camadas de percepção entre os agentes de segurança, segundo as entrevistas realizadas pelo pesquisador. A adoção de ferramentas digitais mais elementares não geraram receios, mas a algortitimização e o uso da inteligência artificial levanta questões relacionadas à privacidade e à discriminação introduzida nas tecnologias.

“Embora a digitalização como incorporação de tecnologia moderna (computadores, telefones e outros dispositivos digitais) não seja vista como uma ameaça à privacidade e ao aumento da vigilância, a adoção de infraestruturas algorítmicas é cada vez mais vista como tendo a possibilidade de violar a privacidade, aumentando a discriminação e a marginalização.”

Varghese conclui que as atuais infraestruturas algorítmicas estatais aplicadas ao policiamento preditivo têm sido alvo de consideráveis críticas pela falta de responsabilização ou escrutínio claro. Se, por algum lado, os sistemas poderiam prover alguma automatização, por outro facilmente poderiam se tornar um leviatã algorítmico, que produz uma governança apolítica sobre as ações de segurança. Em última instância, a falta de uma maior transparência sobre os recursos, softwares, modelos e algoritmos, estaria criando uma caixa preta, validada como aparelho de Estado, com capacidade de coerção social.


Para ler o artigo: https://doi.org/10.1007/978-3-031-68326-8_7

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Esta nota faz parte do projeto “Inteligência Artificial e Capitalismo de Vigilância no Sul Global”, financiado pela Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade e realizado pelo Labjor - Unicamp | Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo

O gerencialismo militarizado da distopia bolsonarista e seu fazer morrer

por Rafael Evangelista em 11 de novembro de 2024, Comentários desativados em O gerencialismo militarizado da distopia bolsonarista e seu fazer morrer

Brutal, mas recheado de uma retórica tecnicista, o governo Bolsonaro já foi fruto de análise acadêmica em diversos aspectos, em especial naqueles que levaram ao resultado de 2018. Entre esses fatores, a perseguição da mídia e do judiciário ao Partido dos Trabalhadores, o enfraquecimento da centro-direita, a crise econômica de meados dos anos 2010, o descontentamento dos militares com a investigação dos crimes da ditadura e a comunicação digital usada como estratégia eleitoral.

Imagem gerada por inteligência artificial generativa utilizando palavras-chave: Segurança pública, Rio de Janeiro e IA

Mas pouco foi escrito sobre o modo de funcionamento do governo bolsonarista, sobre como ele veio a ser, o que se tornou e como operou, essa mistura de um tecnicismo neoliberal com um desdém pelas decisões políticas somado a uma paixão pela eliminação e violência. Quem nos ajuda a entender isso é Bruno Cardoso, professor da UFRJ, no artigo, “Militarized Managerialism and the Bolsonarist Dystopia in Brazil”, publicado no livro Policing and Intelligence in the Global Big Data Era.

As políticas de policiamento e vigilância urbana implementadas no Rio de Janeiro são um elemento-chave na análise. Cardoso cria conceitos como o de “gerencialismo militarizado” para entender a lógica de apropriação militarizada do neoliberalismo feita pelos agentes do bolsonarismo, mesmo antes do governo vir à tona. “Um modelo de pensamento e gerenciamento do Estado”, escreve Cardoso.

O artigo baseou-se na pesquisa de campo do autor junto a dois Centros de Comando e Controle do Rio de Janeiro. Introduzidos durante os mega-eventos (a Copa de 2014 e as Olimpíadas do Rio, dois anos depois), esses centros foram anunciados pelo governo Dilma como o grande legado dos mega-eventos para a área de segurança. Cardoso argumenta que a herança, na verdade foi uma “lógica gerencial militarizada”.

“Discussões em torno de Comando e Controle introduziram consistentemente uma estrutura gerencial implicitamente enraizada nos princípios da New Public Management (NPM). A característica central da NPM envolve ver o Estado como uma empresa, enfatizando metas, técnicas de benchmarking, parcerias com o setor privado e prestação de contas, entre outros fatores”, escreve. Cardoso estudou também dois documentos apresentados como a fundação metodológica da intervenção militar no Rio de Janeiro, outro momento reputado como importante pelo autor, o Brazilian Army Excellence in Public Management Model [BAEPMM] e o System of Excellence in the Military Organization [SE-MO]. Ambos seriam bastante rudimentares e apresentam uma versão simplificada de algumas ideias e estratégias básicas da New Public Management.

O mito dos militares como bons gerentes, que estaria dando fundamento a intrusões dos militares no gerenciamento da saúde e da educação, seria baseado em diversas “ traduções” retóricas, aponta Cardoso. Entre elas estão ideias como: equivaler o autoritarismo a um bom comportamento; tomar a corrupção como fruto de ações individuais moralmente repreenssíveis; os militares como capazes de disciplinar e punir os maus indivíduos; entender os sistemas de comando e controle como extensões de boas práticas gerenciais; associar a corrupção apensa ao setor público e não ao privado; tomar os militares como técnicos não-políticos e isentar a tecnologia de ideologia. Esta, a ideologia, seria específica à esquerda/comunismo.

As tecnologias, em particular, são apresentadas como capazes de resolverem, de uma maneira ou de outra, problemas estruturais e históricos, na mesmo sentido do tecnossolucionismo descrito por Evgeny Morozov.

Contudo, Cardoso coloca que a perspectiva militarizada-gerencial, é um “ horizonte de ação” e não uma promessa cumprida. “Durante o governo Bolsonaro, a gestão catastrófica da pandemia, levando o país a bater recordes de taxas de mortes e infecções, fez exatamente o mesmo que a intervenção federal alguns anos antes no Rio (com os mesmos atores). Em ambos os casos, o aspecto gerencial do raciocínio militarizado-gerencial tornou-se, dia após dia, mais visível como mero militarismo, evocando, de forma grosseira e perversa, ideias de eficiência ao gerir violentamente a morte de uma parte da população”, conclui.


Para ler o artigo: https://link.springer.com/chapter/10.1007/978-3-031-68326-8_5

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Esta nota faz parte do projeto “Inteligência Artificial e Capitalismo de Vigilância no Sul Global”, financiado pela Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade e realizado pelo Labjor - Unicamp | Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo

Recolonização? IA é o novo desafio para os países da América Latina

por Fabricio Solagna em 6 de novembro de 2024, Comentários desativados em Recolonização? IA é o novo desafio para os países da América Latina

A corrida do ouro sobre a liderança em tecnologias de IA tem sido intensa entre as big techs. Ao mesmo tempo, os países tentam se acomodar, ora na plateia, ora tentando estabelecer as linhas do campo, apresentando alguma proposta de regulação ou de estímulo para o setor. No caso da América Latina, ainda carente de infraestruturas mínimas, o desafio é não ser recolonizada pelo Norte através de ondas “modernizantes” – que seriam, supostamente, inevitáveis.

Imagem gerada por inteligência artificial generativa utilizando palavras-chave: América Latina, IA e Sul Global

A difícil tarefa de desenhar a governança das IAs tem gerado algumas iniciativas. A União Europeia aprovou recentemente um ambicioso regulamento. O Brasil apresentou um plano governamental para os próximos quatro anos, prevendo investir cerca de R$ 23 bilhões, almejando se tornar referência mundial em inovação e eficiência no setor. Enquanto isso, o projeto de lei que regulamenta a matéria ainda patina no Senado Federal.

Tentando lançar um olhar mais amplo sobre o do continente latinoamericano, o cientista político Fernando Filgueiras publicou um artigo intitulado “Desafíos de gobernanza de inteligencia artificial en América Latina. Infraestructura, descolonización y nueva dependencia” na Revista del CLAD Reforma y Democracia.

Neste trabalho, ele estabelece um comparativo entre oito países da região, destacando, principalmente, as prioridades políticas e o desenvolvimento nos níveis técnico, ético e regulatório. Por fim, também se dedica a comparar se há algum instrumento de cooperação regional. Este último, infelizmente, está presente somente em dois países, na República Dominicana e na Colombia, demonstrando que há uma dificuldade em realizar trocas e aprendizados entre os vizinhos.

Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, México, Peru, República Dominicana e Uruguai divulgaram estratégias nacionais de IA que apontam para desafios comuns em relação ao desenvolvimento do nível técnico, com o fornecimento de infraestruturas digitais públicas que promovam e apoiem o desenvolvimento do IA. Exceto o Brasil, os demais explicam o desenvolvimento de infraestrutura em parceria com organizações privadas. No que diz respeito ao nível ético, o ponto comum em todas as estratégias é a definição de princípios, geralmente associados à divulgação de valores éticos pela OCDE e pela UNESCO. Finalmente, no que diz respeito ao nível regulatório, as estratégias nacionais na América Latina tendem a permanecer silenciosas ou a reproduzir temas comuns nas práticas de governança divulgadas por agências internacionais. A exceção é o Chile, que afirma claramente que a criação de sistemas para proteger o consumo, a privacidade e os dados dos cidadãos está mais claramente relacionada com o avanço da IA.”

O caso mais preocupante é o da Argentina, que estabeleceu um desenho da estratégia nacional de IA se parecendo uma “bricolagem”. Foram diversas revisões até se chegar em um consenso. Ao mesmo tempo, o governo criou uma parceria com a Meta para ofertar uma IA através do Facebook Messenger para políticas de saúde e proteção para mulheres grávidas. Não há qualquer estudo de impacto da implementação dessa parceria, tampouco os resultados mais qualificados sobre o uso das ferramentas pelas mulheres.

“A bricolagem que sustenta a política argentina de IA não dispõe de meios para criar ou controlar infraestruturas digitais, reproduzindo uma perspectiva colonial das matérias-primas (dados), sem qualquer possibilidade de controlar os riscos”.

A pesquisa aponta que, por enquanto, “todos os países estudados tendem a reforçar uma política de autoregulação por parte das empresas, enquanto defendem o desenvolvimento técnico e ético”. Ou seja, o cenário parece ambíguo e as iniciativas não estão exatamente alinhadas, o que, por fim, pode reforçar os mecanismos de dependência e de colonialismo de dados.

O desafio para a América Latina é não reproduzir novas formas de colonialismo que acabam tornando as pessoas vulneráveis à modulação das big techs. Na prateleira de IAs, não faltam opções do Norte para ofertar um espelho em uma mão e um chicote em outra. Ao mesmo tempo, criar uma solução genuína em meio às dificuldades e contingências históricas criadas no continente parece um horizonte quase impossível. Porém, iniciativas como a brasileira parecem ser um oásis no deserto de ideias. No entanto, a capacidade real de entregar algo diferente dependerá do esforço e da perseverança no desenvolvimento de tal plano, que não depende apenas de intenções de investimento. Será preciso acertar na política, que é um dos tópicos apontados pelo autor como significativo, mas com menos atenção pelos países estudados.

Para ler o artigo: https://doi.org/10.69733/clad.ryd.n87.a3

Lavits

Esta nota faz parte do projeto “Inteligência Artificial e Capitalismo de Vigilância no Sul Global”, financiado pela Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade e realizado pelo Labjor - Unicamp | Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo

Colonialismo nas plataformas na área de saúde modela novos médicos na África

por Fabricio Solagna em 4 de novembro de 2024, Comentários desativados em Colonialismo nas plataformas na área de saúde modela novos médicos na África

A Somalilândia é uma região no Chifre da África, parte oficialmente da Somália, mas que conquistou sua independência no início da década de 1990. Com um passado marcado por colonizações europeias, o país construiu frágeis instituições de saúde, muitas delas com auxílio de programas internacionais tocados por seus antigos colonizadores.

Imagem gerada por inteligência artificial generativa utilizando palavras-chave: médicos, plataformas, IA e África

Uma dessas iniciativas é o MedicineAfrica, uma plataforma digital privada, sem fins lucrativos, baseada em Oxford, na Inglaterra, que se propõe a conectar médicos do Reino Unido, que atuam como tutores, com estudantes de medicina na África. A plataforma é online mas foi adaptada para funcionar em contextos de baixa conectividade, como no caso da Somalilândia. Funciona com diferentes recursos, ferramentas e interfaces de interação, desde recursos de fórum (com textos e imagens) que funcionam offline e, mais recentemente, permitiu que áudio, vídeos e videoconferências sejam utilizados.

O objetivo da plataforma é levar conhecimento médico sobre procedimentos e técnicas para países que dispõem de pouca estrutura na formação de novos profissionais na área. Entretanto, essa troca de experiências pode gerar um resultado chamado “colonialismo epistêmico”, que significa reforçar o processo pelo qual o conhecimento anglo/eurocêntrico é transferido, introduzido e adotado como conhecimento científico legítimo nos locais onde é utilizado.

Três pesquisadores realizaram uma pesquisa qualitativa, entrevistando cerca de 40 estudantes que utilizaram a plataforma entre 2020 e 2021. O estudo se chama From ‘making up’ professionals to epistemic colonialism: Digital health platforms in the Global South e é assinado por Dimitra Petrakaki, professora da Universidade de Sussex Business School, na Inglaterra, Petros Chamakiotis, Professor da ESCP Business School, na Espanha, e Daniel Curto-Millet, Cientista da Computação e Cientista Social da Universidade de Gothenburg, na Suécia. Os resultados do trabalho foram publicados na Social Science & Medicine, que se dedica a assuntos sobre saúde e ciências sociais.

Segundo os achados da pesquisa, o colonialismo se manifesta inicialmente na língua, já que toda a comunicação na plataforma é realizada em inglês. Mas, também se reflete no choque entre as culturas ocidental e local, na forma de se pensar como a doença e a cura são percebidas, nas formas de comunicação recomendadas entre médicos e pacientes e, por último, na adequação na realização dos procedimentos ou exames ensinados, em virtude das disponibilidades de infraestrutura local.

“O que os tutorados aprendem sobre ser um bom médico nem sempre é aplicável o que acaba por frustrar ou alienar os profissionais de saúde da sua realidade quotidiana e das expectativas locais. É essa alienação nas relações de poder/conhecimento que constituem o núcleo do colonialismo epistêmico digital”, afirmam os autores da pesquisa.

Ainda assim, a relação não é apenas unidirecional. Durante as entrevistas, os pesquisadores também perceberam que há um certo nível de apropriação e uma negociação com a realidade local por parte dos tutorados, permitindo também a crítica sobre o próprio modelo da MedicineAfrica: “os dados das nossas entrevistas indicam que os estudantes não eram apenas receptores passivos do conhecimento que lhes era transferido. Em vez disso, tiveram a capacidade de refletir sobre essas diferenças e de serem seletivos sobre o que pretendiam adotar”.

Este tipo de pesquisa nos permite verificar que o colonialismo digital não se dá apenas por estruturas das grandes plataformas globais, mas também é incorporado e transmitido em relações de poder em serviços específicos e especializados.

Para ler o artigo: https://doi.org/10.1016/j.socscimed.2023.115787

Lavits

Esta nota faz parte do projeto “Inteligência Artificial e Capitalismo de Vigilância no Sul Global”, financiado pela Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade e realizado pelo Labjor - Unicamp | Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo

Colonialismo Digital na África: os cabos de Internet traçam mesmas rotas dos navios negreiros

por Fabricio Solagna em 1 de novembro de 2024, Comentários desativados em Colonialismo Digital na África: os cabos de Internet traçam mesmas rotas dos navios negreiros

Olaudah Equiano foi um marinheiro de origem nigeriana que viveu na metade final do Século XVIII em diversas colônias britânicas. Foi capturado e escravizado ainda criança e rebatizado de Gustavus Vassa na Virgínia, nos Estados Unidos. Conseguiu comprar sua própria liberdade já adulto e se tornou escritor, contando sua trajetória de vida, tendo um um papel relevante no movimento abolicionista inglês.

Foi exatamente o nome de Equiano que o Google escolheu para seu cabo de fibra óptica submarino, instalado em 2023, que passa por seis diversos países na costa da África. O porto das Ilhas de Santa Helena é um importante local de chegada de diversos cabos, no mesmo local que serviu como um porto de trânsito de escravos até a década de 1860.

A utilização de cabos submarinos é uma infraestrutura essencial para a conectividade global da Internet, muitas vezes chamados de “espinha dorsal”. São por eles que trafegam a maior parte dos dados da rede entre os continentes, muito embora haja também conexões por satélites, mas que não conseguem oferecer as mesmas velocidades. Entretanto, este tipo de infraestrutura é dominada por poucas e grandes empresas e, em muitos casos, em projetos patrocinados pelas principais big techs.

Há uma lógica colonial que se repete na instalação destes cabos na África, em especial nos casos de Google e Meta, que instalaram o cabo Equiano e o 2Africa, respectivamente. É o que as pesquisadoras Esther Mwema, Mestre na London School of Economics and Political Science, na Inglaterra, e Abeba Birhane, Professora Assistente na Escola de Ciências da Computação e Estatística na Trinity College Dublin, na Irlanda, demonstram em um artigo publicado na revista acadêmica First Monday, intitulado “Undersea cables in Africa: The new frontiers of digital colonialism”.

Um mapa que mostra as linhas de cabos submarinos do Google e da Meta ao longo da costa africana. Ilustração de uma das autoras deste artigo, Esther Mwema.

As autoras fizeram uma genealogia da história dos cabos submarinos desde os cabos teleféricos do século XVII até os atuais de fibras ópticas. Os argumentos em favor da conexão apresentados atualmente se colocam como um “salvacionismo branco”, pois a conexão à Internet rápida poderia pretensamente ajudar diminuir o fosso digital entre África e as nações desenvolvidas. As linhas de cabos submarinos de 2023 seguem as mesmas rotas que as linhas telegráficas submarinas de 1901, “beneficiando desproporcionalmente as potências ocidentais, enquanto as partes interessadas africanas têm pouca voz ou controle”, segundo as autoras.

Os cabos submarinos de Google e Meta são financiados e operados por outras empresas parceiras, em condições nem sempre transparentes, com detalhes desconhecidos. “A complexidade e a opacidade desses esquemas são fundamentais para proteger Google e Meta de escrutínio, supervisão e responsabilização”, alerta o estudo.

A falta de legislação dá ao Google e a Meta um controle quase ilimitado sobre o que fazer no continente. Ocasionalmente, os Estados africanos alteram as suas políticas para se alinharem com os modelos de negócio e objetivos definidos pelas empresas, organizações ou Estados ocidentais. O modelo de dívida, neste caso, manifesta-se de múltiplas formas: Espera-se que as estações de cabos paguem ao Google e a Meta para utilizarem os cabos, embora sejam instalados em águas africanas, ao mesmo tempo que criam múltiplas formas de dependência. Muitas vezes, os povos africanos não estão conscientes da sua exploração pelas políticas egoístas impostas pelas organizações ocidentais que comprometem a soberania e o desenvolvimento de África. A este respeito, o colonialismo tradicional espelha o colonialismo digital, pois é uma das fronteiras sobreviventes da dominação colonial que sustenta a dependência dos antigos países colonizados pelo Ocidente, através da importação de hardware, software, engenheiros, protocolos de informação e conhecimentos especializados.”

A governança pouco clara destas infraestruturas é um desafio. O Brasil anunciou um projeto, em 2022, de estender um cabo entre Ásia, Oceania e América do Sul, como uma política pública. Grandes potências no Norte Global definem prioridades para o controle dos cabos como uma questão de segurança nacional.

O colonialismo digital seria uma disputa do século XXI pela África em continuidade às políticas colonialistas do passado. Se estabelece assim um novo modelo que mantém as nações africanas sob dívida pela infraestrutura de conexão ofertada de forma privada.

A economia digital, que se baseia na extração e manipulação de dados, tornou possível às grandes tecnologias explorarem as infra-estruturas de informação e os dados africanos sem o consentimento e (muitas vezes a consciência) das pessoas. A infraestrutura orientada a dados está incorporada na colonialidade. A coleta de dados sobre informações populacionais e territoriais, usadas para para monitorar, controlar e gerir as populações locais foram práticas que surgiram no auge do colonialismo. Os britânicos, por exemplo, implementaram tais práticas para controlar a Índia colonial e o apartheid na África do Sul.”


Mwema e Birhane concluem que seria necessário revisitar as regras internacionais de implementação dos cabos submarinos – como, por exemplo, o International Cable Protection Committee (ICPC), que datam de séculos e não tem participação multissetorial — bem como regulamentar a questão nos estados nacionais africanos, como forma melhorar a governança e a soberania dos países. Não menos importante, citam como fundamental renomear o cabo Equiano pela Alphabet, para que se possa respeitar a história e as lutas de Olaudah Equiano.

Para ler o artigo: https://doi.org/10.5210/fm.v29i4.13637

Lavits

Esta nota faz parte do projeto “Inteligência Artificial e Capitalismo de Vigilância no Sul Global”, financiado pela Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade e realizado pelo Labjor - Unicamp | Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo