O Sudão do Sul e a Nigéria são muito diferentes. O primeiro é a nação mais jovem do mundo, tendo referendado sua independência em 2011 após uma longa guerra civil. O segundo é um dos países mais desenvolvidos da África, mas que ainda enfrenta grandes desafios para pacificar seus conflitos internos. O que os dois países têm muito em comum é que suas populações passam por deslocamentos internos, em decorrência da violência, das disputas territoriais e da intolerância religiosa.
Nesse contexto é que atuam as operações humanitárias em que ONGs e órgãos das Nações Unidas se dedicam a levar ajuda, principalmente nos acampamentos estabelecidos no nordeste dos dois países.

Vicki Squire e Modesta Alozie, ambas da Universidade de Warwick, em Coventry, no Reino Unido, realizaram uma pesquisa qualitativa com cerca de 80 pessoas em 2021, entre residentes, trabalhadores, gestores – incluindo doadores – e pessoas ligadas às ONGs e as agências das Nações Unidas que atuam nestes locais. O resultado do trabalho foi publicado em um artigo na revista Big Data & Society, com o título “Coloniality and frictions: Data-driven humanitarism in North-Eastern Nigeria and South Sudan”.
A análise do trabalho se concentra em compreender como as injustiças são perpetuadas na chamada “revolução de dados”, ou seja, como o advento da digitalização e da coleta de dados pessoais nessa situação de risco é ainda mais intensificada através da dinâmica paternalista associada à colonialidade do humanitarismo. Segundo as autoras, “a lógica de extrativismo estrutura o ecossistema de dados humanitários, a despeito do consentimento ou entendimento das populações sobre o uso das informações a seu respeito”.
Os dados biométricos são amplamente utilizados e auxiliam na distribuição de provisões básicas, na maioria das vezes usando cartões de identidade eletrônicos. Ocorre que essa coleta é muito mais orientada pela demanda de responsabilização ou acompanhamento dos doadores do que necessariamente uma necessidade primeira para as populações atendidas. Ou seja, as populações atendidas não estão em posição de perceber que o recebimento de mais ajuda está condicionado a entregarem suas digitais a um banco de dados estrangeiro, por exemplo.
Em muitos relatos coletados, percebeu-se um evidente descontentamento ao notarem que a maioria das demandas não são atendidas, ainda que a coleta e compartilhamento de dados e informações entre os atores da ajuda humanitária sejam passos necessários. Para além disso, nem sempre os critérios de consentimento são observados ou totalmente considerados. No limite, a ajuda é tão necessária para essas populações vulneráveis que se justificaria pular etapas sem que as pessoas pudessem compreender o porquê da necessidade de compartilhar seus dados.
“A análise mostrou como as pessoas que recebem assistência são sistematicamente desconsideradas como sujeitos de conhecimento com capacidade de conhecer e agir sobre os dados gerados sobre eles. Embora especialistas humanitários estejam cada vez mais cientes das práticas extrativas nas quais a colonialidade dos dados é fundamentada, uma série de atritos, no entanto, emerge em torno das disposições humanitárias, coleta de dados e a ética da assistência humanitária orientada por dados.“
No centro da questão, evidencia-se que a coleta de dados se torna um pilar fundamental da colonialidade da ajuda humanitária, no sentido de que as organizações internacionais, ONGs e agências da ONU envolvidas no processo podem facilmente desconsiderar questões éticas ou de boas práticas em nome da ajuda humanitária. É bom ressaltar que essa ajuda não é algo opcional para as comunidades envolvidas, trata-se de receber uma barraca ou alimento para se estabelecerem em campos de refugiados internos aos países. Isso intensifica ainda mais a necessidade de pesquisas e complexifica a forma como a questão é abordada.
Para ler o artigo: https://doi.org/10.1177/20539517231163171